Estou na porta da casa da Júlia. Muito álcool.
Carol discute sobre como não liga para o que os outros pensam e como a fidelidade é boçal enquanto João, gritando como de costume (quando está bêbado), debocha dela.
Daniel discursa sobre como é emocionante ser flamenguista e o Flamengo é um time superior enquanto João, gritando como de costume (quando está bêbado), debocha dele.
Júlia não consegue parar de rir. Gargalha. Serve álcool para todos: “Mais ‘Balalouca’. Mais ‘Balalouca’”. Irrita-me muito quando chama “Balalaika” de “Balalouca”. Mas sorrio.
Cara, quando eu iria imaginar que reuniria essas pessoas? Estávamos todos sentados no meio da rua, poderíamos ser atropelados a qualquer momento (mas nenhum carro passaria, eu sabia disto), completamente bêbados; mas eu sorria.
“Algo grande vai acontecer hoje”. “O quê?”. “Você vai morrer”.
“Vamos roubar o carro do pai da Júlia?”, sugeri.
Daniel, João e Carol, no banco de trás, morriam de rir, compartilhando estórias nas quais eu estava envolvido. No volante, Júlia estava muito séria. No banco da frente, eu tinha uma garrafa de “Balalaika” em mãos.
Júlia passava dos 100km/h e a sensação era excelente. Ao contrário do que se pensa, a velocidade é um remédio anestésico e hipnótico. Desacelera o coração, tudo fica sereno, embaçado. É uma nova embriaguez.
“Errar é humano. Acertar é desumano”.
Na beirada da estrada, eu movia arbustos da forma como eu desejasse, como se fossem dedos de minhas mãos; prolongamentos de meu corpo.
“Errar é humano. Acertar é desumano”.
Dobrava as faixas amarelas da estrada, como se eu as formasse com a ponta de um lápis. Como se fossem vibrações das cordas de um violão; do meu violão.
“Errar é humano. Acertar é desumano”.
Abri a janela e fiz ventar muito forte em meu rosto, fechando os olhos. Já não mais ouvia a voz de ninguém. Virei-me para trás e notei que eles ainda conversavam. E riam muito. Virei-me para Júlia: ela ainda estava séria. Tentei fazê-la sorrir, mas não tinha controle sobre isto.
“Errar é humano. Acertar é desumano”.
Fechei os olhos e me vi, com os braços abertos e as pernas juntas e esticadas, em minha cama. Não podia me mexer, minhas mãos e pés estavam pregados.
“Errar é humano. Acertar é desumano”.
Abri os olhos e vi uma curva acentuada à frente. Do outro lado, um enorme e íngreme barranco.
“O carro atravessará a curva. Seus amigos não se machucarão. Você morrerá”.
Júlia pisou no acelerador e tentou virar o volante. Ela não parecia assustada, não sei se realmente pretendia escapar da curva. Talvez estivesse tão bêbada que nem compreendia que havia uma curva a nossa frente. Que se machucaria e poderia morrer se não a fizesse. Talvez nem percebesse que estava em um carro. Talvez nem estivesse pensando. O carro atravessou a curva, voando pelo barranco.
Suspenso no ar, o carro parou. O tempo parou.
Olhei para trás, todos estavam parados, em uma gargalhada congelada. Olhei para o lado, Júlia ainda estava séria.
Acho que agora eu deveria estar lembrando toda minha vida, mas na verdade, foda-se.
Em uma montanha-russa, a adrenalina não é completa porque no fundo tem-se a noção de estar seguro. Se eu não tivesse medo de morrer, aquela seria a melhor emoção de minha vida. Seria o meu momento. Valeria pelo que vivi e pelo que ainda viveria. Se eu não tivesse medo da morte. Não tenho medo da morte.
Dei uma golada da garrafa de “Balalaika”. “Queria poder fazer sexo agora”. Uma risada e o tempo voltou a andar.
Assisti ao carro ser inteiramente destruído, capotando infinitas vezes, sendo moldado à força do acaso. Sentia cada pancada nele em meu corpo, sem haver, porém, dor, como se estivesse anestesiado. Caímos em um local plano.
Eu estava vivo.
Saí do carro, este de cabeça para baixo. Pela janela, puxei Carol. Merda, enquanto a puxava, sua perna se rasgou na ferrugem. Ela estava horrível. Seu rosto todo roxo, inchado e repleto de cortes.
Puxei João. Porra, como era pesado. Algo havia penetrado em um de seus olhos, o qual sangrava muito.
Pela outra janela, tirei Daniel. Uma de suas pernas parecia quebrada, com algo que deduzia ser um osso se projetando em sua calça jeans, com muito sangue. Enquanto o puxava, seu osso agarrou na lataria. Náusea. Senti o vômito chegar à minha boca, mas o engoli. Um enorme corte procurava ênfase, se extendendo desde o início de sua barriga até a metade de seu peito.
Puxei Júlia e ela não parecia ferida. Seus olhos estavam abertos, mas estava morta. Todos eles estavam. Eu sabia disto.
Arrastando seus cadáveres, fiz com eles um círculo ao meu redor. Eu não respirava. Não havia vento, barulho, não havia nada.
Acendi um cigarro e o fumei até o fim, sem pensar em nada – também não havia pensamentos.