segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Letícia
É difícil compreender racionalmente o que outra pessoa sente ou vê. Mas se um dia você quiser entender o mínimo do que uma pessoa sente no instante em que ela está com você, tente respirar no mesmo ritmo que ela e aprecie o que você sente a partir disto. Nada mais.
Todas as pessoas ao meu redor, salve raras exceções, estão tentando se tornar algo e gritar ao mundo o que elas se tornaram, o que elas sempre foram. Quando eu penso em apedrejar minha existência medíocre em meio a isto, fechar os olhos e me trancar em algum lugar, várias imagens me vêm à cabeça.
O olhar de minha mãe, transbordando um amor tão puro que eu, pessoa tão corrompida e inferior, jamais serei capaz de compreender. O amor que estamos acostumados está tão infinitamente ligado à pura necessidade pessoal, mesmo aquele em que deixaríamos de viver por outra pessoa, que não é nada além da necessidade tão intensa que sentimos da outra. Como uma pessoa pode tão puramente abrir mão de si mesma por outras pessoas desta forma? Simplesmente amar outras pessoas acima de si mesma, mas de uma forma real. Amar tanto, que possa ser capaz de simplesmente deixar a outra pessoa ir embora, se este for o melhor pra ela.
O olhar severo de meu pai. Como algumas pessoas simplesmente são, sem tentar ser, de forma que sequer percebem o quanto poderiam enriquecer o mundo se externassem o que pensam. Não consigo concentrar quando vejo um filme com meu pai, porque simplesmente sei que nunca vou conseguir compreender o que está à minha frente de forma tão rica quanto ele. Ou olhar pro mundo. Por mais que eu me considere alguém que compreende bem as pessoas, quando penso em meu pai, me sinto mera criança, na ponta dos pés, tentando enxergar algo novo por uma janela.
Quando penso em praguejar contra nossa existência medíocre, me vem uma memória à cabeça: meu amigo, Túlio. Éramos muito pequenos, estávamos na primeira série, quando ele quebrou a perna de forma grave. Ele teve de usar um aparelho que mantinha suas duas pernas abertas por todo o tempo em que estivemos em contato. Ninguém o aceitava, ele era a piada do colégio. Tinha apenas dois amigos: Eu e Guilherme Henrique. Não estou aqui sendo hipócrita, mesmo porque eu talvez tenha sido o maior de todos. Era-me difícil também aceitá-lo, mas algo me dizia que eu devia estar do lado dele o tempo inteiro. Um dia, na Educação Física, estávamos treinando cobranças de pênaltis, o professor estava no gol e ninguém conseguia acertar a cobrança. Quando chegou a vez de Túlio tentar, todo mundo ria: se nem os melhores, com suas pernas perfeitas, suas vidas perfeitas, seus sorrisos perfeitos, conseguiam fazer o gol, como ele conseguiria? É algo que aconteceu, e ainda ninguém consegue explicar. Como é feliz presenciar uma sensação como essa: uma sensação inexplicável. Acho que nunca verei alguém tão feliz como o vi naquele dia. Consigo me recordar vividamente de nós três – eu, Túlio e Guilherme Henrique – pulando, abraçados, de forma completamente desengonçada (Túlio não podia pular direito com o aparelho em suas pernas), comemorando aquele gol. Todos sabem como amo meu time, Palmeiras, mas acho que nunca comemorei um gol como aquele dia.
Lembro-me de um ensaio para uma apresentação em um Festival de Inglês no colégio, já no terceiro ano. Eu namorava, já há um ano a essa altura, e nunca havia dado qualquer valor para o namoro até esse dia, quando meu namoro já estava em crise e eu já tinha errado tanto que a garota já não tinha qualquer dúvida de que seria melhor pra ela terminar comigo. Neste dia eu me sentei em um canto, tirei pela primeira vez minha aliança e fiquei ali, a girando em meus dedos e pensando. Só ali, tarde demais, percebi que amava aquilo que havia desprezado tanto. E desde este dia não há um momento sequer da minha vida que eu não tenha certeza do quanto amo o que mais desprezo em meu interior: a existência. Esta vida medíocre, sempre triste, com raros momentos simples e insuperáveis. É incrível como nunca sabemos que um momento é especial quando este está acontecendo, assim como sempre julgamos especial, no exato instante em que este se dá em nossas vidas, um momento que não significa nada. A existência pode ser tão sensacional, que ainda que sejamos muito medíocres, ela consegue nos superar e se manifestar em nossas vidas em momentos raros e cientificamente inexplicáveis. Por mais que possamos compreender todas as reações químicas que ocorrem em nosso interior e são responsáveis por tudo isso, não compreendemos perfeitamente por que elas ocorrem em determinados momentos, não compreendemos o momento, não compreendemos o fenômeno.
Minha tia Letícia. Não posso dizer que ela compreendia tudo isto perfeitamente, mas posso dizer que nunca conheci alguém que compreendesse tudo isto tão bem quanto ela. Ela era simplesmente genial, autodidata em todos seus conhecimentos, viveu sua vida inteira em Miraí, uma pequena cidade mineira, próxima ao estado do Rio de Janeiro. Cidade que teve enorme força cultural, embora esta venha se perdendo com o tempo. Seria hipócrita dizer que choro todos os dias por não a ter conhecido melhor, mas não há uma expressão artística minha que não esteja revestida de lágrimas de frustração por não tê-lo feito. Tive logo na ponta de meu nariz uma pessoa da grandeza de todos os escritores que leio e admiro nos dias de hoje e nunca me aproximei dela. Por muito tempo tentei compreender como uma pessoa como ela conseguiu por tanto tempo ficar em silêncio naquela cidade, uma pessoa que tinha tanta coisa a dizer. Hoje percebo que ela disse. Depois de muito tempo, aprendi uma lição extremamente valiosa com esta tão querida tia: Talvez seja realmente impossível mudar o mundo, mas talvez a vida sequer nisto consista. Há tanta coisa simples e bonita ao nosso redor, tantas pessoas que podemos amar de tal forma e de tal forma por elas sermos amados, que o mundo ao nosso redor talvez se transforme em outro mundo, um mundo sensacional, um mundo que todas as pessoas merecem conhecer e nele viver. Nunca realmente a conheci, mas a cada dia aprendo com minhas memórias sobre ela, minhas suposições sobre ela, o que realmente é a vida.
O que me dói é que, neste momento, deixo o texto de lado e passo a observar o a natureza viva que movimenta a cortina, minha caneca de água, o teclado sujo de meu notebook. Minhas crenças religiosas me impossibilitam de acreditar que um dia, quando eu morrer, poderei me sentar com você em um lugar lindo e conversar sobre tudo o que sempre quis conversar com você depois de sua morte. E me recordo de minha irmã recebendo aquele telefonema e que, antes de ela dizer qualquer coisa, eu já tinha a certeza de que você havia falecido. Tudo o que me resta é minha imaginação, e eu sou capaz de construir um momento com grande parte das pessoas que passaram por minha vida sem grandes dificuldades. Mas a verdade é que você era realmente uma escritora talentosa enquanto eu, apenas um pseudoescritor medíocre, fraco e arrogante. Nunca serei capaz de reproduzir você em meus pensamentos, e por mais que a natureza esteja agora viva em minha sala, eu me sinto completamente sozinho.
“Nessas alturas já entardecia e a mata já se tornava escura. Minha mãe, coitada, era só cansaço. Foi aí que resolvemos voltar. Quem sabe se outro dia retornamos e mais bem informados encontramos o lugar, consolávamos. Ela, conformada, resolveu aderir e novamente nos pusemos a caminho, de volta à casa.
E o diabinho lá, me azucrinando de novo:
- Podem voltar, hahaha! Podem voltar se quiserem, mas àquele tempo nunca mais!
Raios! Pensei em minha mãe e olhei-a de soslaio. Até que ela estava animada e corada de satisfação. Comentava a beleza do passeio e a oportunidade de rever as pessoas e lugares conhecidos. Ela não se decepcionara nem um pouco. Aquele era um novo momento vivido. Para ela a fonte da juventude tinha sido aquele chafariz antigo que a fizera menina de novo.
Também os amigos que reencontrara e com quem comungara belos momentos distantes. O resto fazia parte de outros momentos já vividos e que restavam bem arquivados em sua memória.
Mas para mim, que agora viajava pensativa, a imaginação ainda teimava em regredir no tempo em busca de tudo que minha mãe contava de sua infância e que eu não conhecia. Lá estavam bem direitinhos, perfilados e em posição de sentido, em vidrinhos rotulados pelos nomes, todos os crioulinhos e de mais personagens, nas prateleiras de minha memória.
Aguardando revista eu via o "Jeremias", "Natanael", "tia Toca", "Sinhá Peituda", "Zé Luiz", "Mariinha", "Manoel Abranches" e outros mais. Até o português Marsal, que roubou a tia Rosa para se casarem. Todos eles, todos esperando o renascer da Terra Prometida que se perdera no emaranhado dos anos.
Sim, ela se perdera de fato! Não porque não a encontramos, mas porque o tempo não se repete. Se teimávamos em encontrar-nos lá no horizonte longínquo com aquelas figuras inatingíveis, debalde, pois agora elas só existiam mesmo em nossa imaginação fértil.
Aos poucos quedei-me vencida e cansada, me dando conta de que todos os momentos de nossas vidas são impares e únicos. Não se repetem nunca...
E ai de nossa ilusão perdida que se desfaz em busca de um hipotético horizonte onde ela se evapora após uma caminhada inglória. O horizonte está lá onde o céu encontra a terra e parece ao alcance de nossas mãos. Podemos até tentar uma nova caminhada em sua busca, mas cada momento será bem diferente.
E, se buscássemos esse horizonte como ponto final de nossa jornada, verificamos que ele é feito de outros horizontes e que nossa busca se torna eterna.
Ao atingi-lo, o céu nos foge às mãos e lá se vão nossos castelos, nossos reis, nossos leões, virgens e querubins, produtos de nossa imaginação fantasiosa. E aí nos damos conta de que nossos pés continuam ali em terra firme enquanto se erguem em vão ao infinito nossos braços.
E nós nos perguntamos mais uma vez: Existirá esta Terra Prometida? Onde estará esta Avalon longínqua?”
Trecho de “Terra Prometida” – Letícia Maria Recipute (25/01/2003)