O homem se apoiava com um dos cotovelos no balcão. Em sua outra mão, um copo de uísque. Sua maquiagem, borrada em alguns pontos, escorria e revelava sua falsa pele. Seu verdadeiro nariz jazia no chão. Não parecia triste. Apatia. Seus olhos encontravam cada traço em falso na madeira do balcão. Não sentia medo, não sentia fome. Encontrava-se naquele estado em que se chama a atenção por sua condição lastimável acima do que se passa por sua cabeça. Suas olheiras se misturavam a traços brancos de tinta barata. Parecia pensar em algo, causava tal impressão até a si mesmo, que não conseguia identificar do que se tratava. Imagens. Milhares de imagens, frames de milésimos de segundos, borrados, inidentificáveis, velozes, vis. Em contraste com sua pele maltratada e sua barba por fazer, seu sorriso era impecável. Era necessário. Não tinha certeza disso. Certeza. Certeza. Já não podia ter certeza sobre nada. Tinha um maço de cigarros barato em seu bolso. Ninguém fumava aquela marca. Normalmente teria vergonha de tirá-lo naquele local, mas o fez mesmo assim. Lembrou-se de que não podia fumar ali. A lei se preocupava que ele incomodasse os outros com banalidades. Olhou ao seu redor e várias pessoas estavam fumando, ainda assim. Ainda assim, perdeu a vontade de fumar. Estava ficando tarde, precisava ir pra casa. Seu copo dançava em sua mão. Acordaria cedo no outro dia. Olhá-lo era como olhar o mar. O garçom perguntou-lhe algo sobre uma mulher tê-lo abandonado. Não respondeu. Não estava absorto em pensamentos, mas estes sim se espalhavam em migalhas por cada porção de seu corpo. Precisava procurá-los em lugares que não a cabeça. Qualquer coisa era melhor que seu apartamento. Não dormiria se fosse preciso. Se preciso fosse, não estaria ali. Esqueceu o que era preciso. Uma última piada e, então, iria pra casa.
“Certa vez, conheci uma garota. Como era linda. Cada curva de seu corpo era deliciosa. Ia, porém, muito além disso. Ela sabia como libertar a cabeça de um homem. Convenceu-me de que poderia ser mais feliz dentre quatro paredes do que fora. Ia a festas sozinho, não conhecia pessoas, não bebia. Parava a admirar as luzes irregulares que se misturavam ao som e me faziam transbordar. Não precisava de nada, de ninguém. Não precisava de dinheiro ou roupas. Desconhecia marcas. Não fazia questão de minha consciência. A política era uma merda. Eu estava além das pessoas. Nada havia de errado com a vida vazia, que tudo significava se me sentisse bem com ela. As ruas mais sujas eram as mais belas. As mais vazias, as mais seguras. Quanto mais me encantava, mais me atraía. Quanto mais me atraía, mais transbordava. Eu era a única coisa que significava algo no mundo. Nós. Ela era parte de mim. Parte de toda esta complexidade que justificava o mundo, dava formas à vida. Cada lugar era apenas um detalhe, um esboço a ser preenchido por nós. Os músicos compunham somente para que montássemos nossas trilhas sonoras. Os escritores somente escreviam para que se identificassem conosco. As pichações nos muros eram apenas enfeites para fotografias. Os papéis eram apenas espaços para nossa benevolência em compartilhar experiências aos que tentavam entender por que existiam. Depois de um tempo, nem os usávamos muito. Não importava a qualidade dos cheiros e dos gostos, mas sua excentricidade. À música, bastava sua profundidade. Aos olhos, bastavam sua arrogância expressiva. As olheiras eram belos sinais de pensamento excessivo. Mas o que era ruim não torturava, apenas indicava o caminho do que era especial. Corríamos mais rápido do que a vida e, muito em breve, a alcançaríamos. Não exigiríamos explicações, porque já entenderíamos tudo. Apenas caçoaríamos dela, por sua pretensão em ser tão misteriosa. Debochávamos de tudo quanto fosse inferior, aumentando à medida de seu grau de inferioridade, até cessar em certo ponto, no qual atingisse o desprezível. No final, porém, era tudo um grande desprezo. Haver explicações ou significados era tudo uma besteira que estava abaixo de nossos pés. Flutuávamos no mundo que criávamos para nós sem sequer percebermos. As paredes se tornavam mais grossas, esquecíamos o que era o mundo real. Sorríamos ao seu lado vil como malucos, ignorávamos seu lado bom por o considerarmos vulgar demais perante a nossa criação. Nossas cores escuras brilhavam mais do que qualquer colorido de qualquer tecido rasgável, triturável, obsoleto. Nossas mentes tinham nojo de compartilhar qualquer sentimento com essas mentes mesquinhas de preocupações chulas dos demais seres humanos. Qualquer simples conversa – um pedido em um balcão de padaria ou uma pergunta profissional – nos causava náuseas. A única coisa que odiávamos era este pequeno elo indestrutível que nos ligava à vida comum por questão de sobrevivência. Alternávamo-nos entre empregos banais sempre sorrindo, pensando no quanto cuspíamos na humanidade por sermos tão talentosos e não fornecermos qualquer tipo de progresso. Achamos a cura e queríamos que todos os outros queimassem na doença, pra que ainda houvesse arte. Se todos fossem como nós, tudo seria desespero. Precisaríamos encontrar outro caminho. Éramos um universo indivisível, indisponível. Duas pessoas em um corpo estrangeiro inserido em meio a uma raça fétida”.
A medida que desenvolvia a piada, um estranho brilho acendia nos olhos do homem. Já não parecia mais estar encostado em um balcão, em um bar. À sua frente, uma cortina se abria em uma enorme janela, e o céu escuro contrastava com o intenso brilho das estrelas.
“Com o tempo, algo pareceu estar errado. O universo se dividia, como se nos castigasse. Lembrava-nos de que éramos humanos. Apenas um de nós podia saber toda a verdade, compreender tudo. O outro deveria ser mero espectador, sentir-se feliz pela oportunidade de estar ao lado de alguém que a tudo compreendia, que reunia em si o significado de tudo. Voltávamos um contra o outro, e eu era a parte mais fraca do dueto. Em muito pouco tempo, sucumbi, tornei-me um escravo. Meu desespero era apenas uma questão de tempo, até que eu me tornasse alvo de pena. Era apenas questão de tempo até que fosse abandonado. Foi o que aconteceu. O vazio que sempre estivera em mim, comprimido como uma pequena e poderosa esfera maciça e negra, agora se expandia lentamente, imprimia violenta força a meus órgãos, encurtava meus pensamentos, desfazia minha lógica. Escapava em sangue, em indiferença ardida. Os objetos que antes ignorava, cavava com unhas em busca de qualquer conteúdo que se perdera no tempo. Vagava pelas ruas cabisbaixo, esperando que em uma falha de sentido, trombasse com ela, também cabisbaixa, perdida sua arrogância, e ela voltasse a me possuir, me ajudasse a reconstruir o que antes havia de tão grandioso e eu já não me lembrava. Meus olhos eram tomados de tal vazio, que tinha a sensação de não fazer diferença olhar ou não a um objeto. Fechá-los ou abri-los. Minhas perspectivas esvaziaram-se até que não fizesse diferença sonhar ou manter-se lúcido e acordado. Minha vontade era tão curta que a voluntariedade de meus movimentos perdia seu propósito. A cortina se fechava a minha frente, mas não queria terminar o show. Apenas não sabia como continuá-lo.”
O brilho que antes se acendia atordoante nos olhos do homem, agora descendia progressivamente. A cortina fechava-se a sua frente, sem provocar qualquer reação. Procurava em seu pano algum detalhe que pudesse prender sua atenção, em vão. Já os conhecia de cor.
“Foi assim que conheci a infelicidade. Assim me apaixonei por ela. Assim ela me abandonou".
Com uma golada, o homem terminou mais um de seus incontáveis copos, que seria ainda um grão de areia diante dos muitos que viriam. Percebeu que havia se esquecido de dar à sua história qualquer graça, pra que ao menos pudesse arrancar de terceiros os sorrisos que já não podia acender espontaneamente. Mas isso não importava. Não estava em horário de serviço.