domingo, 16 de outubro de 2011
A manhã de um miserável
Acorde. A luz grita pela janela, fazendo seu cérebro pulsar, como quem conta o tempo em dor. Você dormiu no sofá de novo. Levante-se, olhe ao seu redor. Duas garrafas de vinho no chão, uma câmera ao seu lado, poucas recordações. Objetos ordinários. Você está em apartamento qualquer, mas o conhece melhor do que gostaria. Todos aqueles objetos que todas as pessoas precisam pra sobreviver, muitos os quais você conhece melhor do que conhece as pessoas. Seus detalhes são mais identificáveis que suas utilidades. As pessoas, você as quer conhecer, sabe que todas são individualmente racionais e interessantes, apesar de os homens se tornarem meros animais ao saírem de suas casas, algo que você não suporta. Mas não se pode pular etapas. Ninguém confiará o bastante em você para simplesmente entrar em seu apartamento, fugir de todos os outros, sem antes ter te conhecido. Você abre sua janela e então se lembra do porquê de manter as cortinas sempre fechadas. Olha para seus vizinhos, para as janelas, para as luzes, sabendo de cor tudo o que eles farão em suas rotinas medíocres. Observa, então, que sua mão treme. Há quanto tempo não come? Pega sua câmera e, filmando o chão, vai até a geladeira. Todos os tipos de congelados, aparentemente saborosos. Mas isto não importa. Você simplesmente precisa comer, pra que seu corpo pare de perturbá-lo. O gosto da comida já lhe é indiferente há muito tempo. Uma produção em massa de animais para que simplesmente sejam mortos e postos em sua geladeira. Unicamente porque o homem é mais forte, mais esperto. Estes animais, nascidos em cativeiros fétidos, sem dispor de tempo pra sequer imaginar em que consista suas vidas, eram, ainda assim, mais felizes que você. Seu maço de cigarros. Cujo gosto há muito já perdeu sua graça. Já não acalmam. Você o mantém fechado. Estragam seus dentes, você precisará deles pra entrevistas de emprego futuramente. Vá ao espelho, arrume-se dignamente. Percebe então, ao ver seu reflexo pelas lentes de sua câmera, o corpo sem sonhos que é. Por opção própria, como todas as pessoas. Preferimos sempre esquecer que a existência é curta, mergulhar na futilidade de uma vida ordinária e deixar para reclamar sobre a incompletude quando a velhice nos roubar os escapismos da juventude. Você se lembra, então, que não gosta de ser filmado. Lembra-se de como as pessoas se sentem desconfortáveis quando sua câmera está em suas mãos. De certa forma, você as compreende. Mas não pode ter certeza disto. E nem faz questão, aborrecido como está pelo começo de mais um dia. Dê mais um passeio por seu apartamento, com a câmera na mão. Iluda-se de que tudo será melhor quando você puder se mudar com frequência, nunca parar no mesmo lugar. Mas você sabe que todos esses objetos ao seu redor seguem um padrão – bem como as tradições - e ainda que acorde em diferentes apartamentos, em diferentes cidades, em diferentes países com diferentes culturas, acordará rodeado por pessoas iguais, patéticas. Como você. O padrão é intragável.