"Sabe essas histórias que ainda fazem acreditar que a humanidade é boa? Esta é uma delas. Como um tsunami, essa gente invadiu uma casa ainda com mofo, piso de cimento cru e pouca luz. Bateu, entrou e transformou. Iluminou todos os espaços, retirou o mofo, levou piso bonito, começou a pintar e fez aquele menino sobrevivente ter a certeza que nem tudo está perdido. A mãe do menino chora de alegria. Belisca-se. Vive um sonho. O menino, embasbacado e de olhos acesos, repete: “Eu sabia que alguma coisa boa ia acontecer”.
E aconteceu. Mas, afinal, que história é essa? Voltemos 48 dias no tempo. No sábado, 12 de junho, o Correio contou a luta de Lucas Neres Pereira, 13 anos, para sobreviver. E a luta que travara, desde que nasceu, para ser mais forte que as previsões médicas. Portador de uma grave enfermidade pulmonar, a bronquiolite obliterante (doença respiratória causada por um vírus que destrói o pulmão e pode afetar outros órgãos, como o coração).
Lucas nasceu no Hospital Regional de Planaltina (HRP). Com um mês de vida, os primeiros sinais da grave doença: muito cansaço para respirar. Numa ida de emergência ao HRP, um médico plantonista pediu um raios X. E foi incapaz de ver que metade do pulmão do bebê estava comprometido. Indicou nebulização. Era, segundo aquele homem e jaleco branco, apenas um resfriado.
No dia seguinte, o cansaço aumentou. Irani Neres Santana, então com 22 anos, a mãe, desesperou-se. Com os filhos nos braços, embarcou para a Rodoviária do Plano Piloto. Chorava e pedia para ele não morrer. Ao desembarcar ali, um carro da Polícia Militar levou mãe e filho para o Hmib. O médico de plantão, o intensivista neonatal Carlos Zacconeta, estava de saída.
Ainda assim, voltou para atender aquela criança que morria. Sorte que nem toda gente de jaleco branco é igual. Um raios X às pressas revelou: Lucas tinha uma lesão severa em dois terços do pulmão esquerdo. Ficou ali por 80 dias, na UTI neonatal. E, nesse período, momentos vários de incerteza, dor e angústia. Houve dias em que até os médicos achavam que chegara ao fim. Irani chorava agarrada aos santos de devoção.
Como milagre, o menino valente surpreendia. Mas seu estado ainda era grave. Do Hmib, foi transferido para o Hospital de Base (HBDF). Lá, ficou aos cuidados da pneumologista Rita Heloísa Mendes, que cuidou de Lucas com dedicação comovente. Nunca escondeu qualquer informação — nem nos momentos delicados.
Com 13 meses de vida, a primeira cirurgia, para retirar parte do pulmão esquerdo. Era só o começo. Aos 7 anos, a segunda e a mais radical: retirada total do órgão. Meses de internação, recaídas, lágrimas e oração da mãe. Idas e vindas ao hospital. Preocupação com o pulmão direito, que já apresenta sinais de falência — dois terços já estão lesados.
Corrente solidária
Há 48 dias, portanto, esta história foi contada. Lucas e a mãe moravam numa casa humilde em Arapoanga, bairro de Planaltina. O banheiro, cheio de mofo, era o pior inimigo para a saúde do menino. Na casa, humilde, faltava muita coisa. E a luta pela sobrevivência, a dificuldade em comprar remédios e o aparelho de que precisava com urgência, o oxímetro, que mede a saturação de oxigênio no sangue.
A reportagem comoveu Brasília. O telefone de Irani começou a tocar logo nas primeiras horas daquela manhã de sábado. “Toca até hoje”, agradece a mãe. Gente que não quis se identificar. Mas ajudou. Gente que foi lá, ligou, visitou. Conferiu a história de perto.
A ajuda chegou como milagre. E de todos os lugares. Uma atrás da outra. Veio o oxímetro, que custa R$ 1,6 mil. E uma história que arrancou mais lágrimas de Irani. O aparelho, novinho em folha, foi doação de uma mãe que perdera o filho. O menino também se chamava Lucas. “Mas eu não vou morrer, não”, decreta Lucas, o valente.
Chegou também uma bala de oxigênio portátil, no valor de R$ 600, que lhe dará liberdade até para viajar. Cestas básicas, leite da dieta especial e dinheiro em conta. “Paguei tudo o que devia na farmácia”, diz Irani. E não parou por aí. Dois irmãos, comerciantes de Taguatinga, assumiram a reforma do banheiro cheio de mofo. Um major da PM deu as tintas.
E, no dia seguinte à publicação da reportagem, no domingo 13, uma turma do barulho — gente de todos os cantos do DF, homens, mulheres e até crianças — invadiu a casa do menino. Ele não sabia. Chegaram entoando o hino de guerra. O menino engasgou.
A Mancha Verde de Brasília, torcida organizada do Palmeiras, levou solidariedade e esperança para Lucas. Assumiu a reforma total da cozinha, da área externa e do novo quarto do garoto — com direito até a faixa do time na parede. Levaram também cestas básicas e uniforme completo do Verdão.
Como a torcida chegou ali? Na matéria de 12 de junho, numa única frase perdida no meio do texto, informou-se que o menino era torcedor do Palmeiras. Não havia outra menção. Foi o suficiente para tamanha mobilização. “Meu pai, palmeirense como eu, me acordou no sábado e disse: ‘Leia essa matéria. Precisamos fazer alguma coisa. Ele é palmeirense...’ Eu tava dormindo, nem escutei direito”, conta o assistente administrativo Bruno Liporoni, de 32 anos.
Ao acordar, Bruno leu o jornal. “O leite até esfriou na xícara. Liguei pra três amigos da Mancha Verde e decidimos que iríamos fazer alguma coisa.” E-mails foram disparados. No dia seguinte, Bruno e seu exército verde estavam lá, naquele lugar muito distante de onde todos vivem. Seguiu-se uma corrida para fazer o bem. “Percebi que quem recebe ajuda ganha menos do que aquele que pode ajudar. Fomos nós quem ganhamos”, emociona-se o rapaz.
Quarenta e oito dias se passaram. Visitas de integrantes da torcida, para acompanhar a obra (feita pelo tio de Lucas, o pizzaiolo Hidevá Neres, 30, que nas horas vagas se torna pedreiro) tornaram-se constantes. Na manhã de ontem, lá estava parte deles. Vieram até dois torcedores de Cuiabá (MT), para conhecer Lucas.
O menino que desafiou a medicina — muitos pacientes morrem antes dos 2 anos de vida — comoveu a torcida mais uma vez. “Essa é uma corrente do amor. Só quero agradecer a todos que me ajudaram”, disse, com sorriso de vida. Evângelo Franco, 45 anos, diretor do Centro de Ensino Especial 2 de Brasília e diretor de imprensa e mobilização da Mancha Verde, ouviu o que aquele menino disse.
Tentando esconder a emoção, ele admitiu: “A gente tinha obrigação de fazer isso. E que possa servir de exemplo para outros torcedores, outras ONGs. A filha de Franco, a adolescente Ana Luíza, 12, acompanhou o pai. Ao se deparar com realidade tão diferente da sua, refletiu: “Se todos fizessem um pouco, o mundo estaria melhor”. Ricardo Leal, 23, estudante de serviço social, resumiu: “É uma atitude cidadã”.
E o povo cantou. Bradou. Carregou-o. Marcou um superchurrasco na casa nova dele, assim que a pintura externa ficar pronta. Ele sorriu como se fosse a pessoa mais feliz do mundo. E é. Quem vive de forma surpreendente com apenas um quarto do pulmão direito (o transplante não lhe é indicado em função da anatomia do tórax) e obrigou uma gente de jaleco branco a rever tudo que pensava saber tem direito à felicidade.
Ele sabe disso. Tanto sabe, que faz planos. “O meu sonho é conhecer o Marcão (goleiro do Palmeiras).” Alguém duvida de que ele vai conseguir? A vida é engraçada. Um detalhe, perdido no meio de um texto, pode mudar a vida de alguém com a mesma velocidade de um gol. Daqueles que arrebentam a rede. Foi um golaço!"
Fonte: Correio Braziliense (www.correiobraziliense.com.br)
Por Marcelo Abreu
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É verdade: o único produto do futebol é a violência.