segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

IX - O Diabo. A alucinação de Ivan Fiódorovitch.




IX
O Diabo. A alucinação de Ivan Fiódorovitch.

Não sou médico e, no entato, sinto que chegou o momento de fornecer algumas explicações sobre a doença de Ivan Fiódorovitch. Digamos imediatamente que estava na iminência de uma febre nervosa, tendo a doença acabado por triunfar de seu organismo enfraquecido. Sem conhecer a medicina, arrisco esta hipótese de que tinha ele talvez conseguido, por um esforço de vontade, conjurar a crise, esperando, bem entendido, a ela escapar. Sabia-se doente, mas não queria abandonar-se à doença naqueles dias decisivos em que devia mostrar-se, falar ousadamente, justificar-se a seus próprios olhos. Tinha ido ver o médico vindo de Moscou a chamado Iekaterina Ivánovna. Depois de havê-lo auscultado e examinado, conluiu o facultativo pela existência de um desarranjo cerebral e não ficou nada surpreso com uma confisão que Ivan lhe fez, no entanto, com repugnância. "As alucinações são muito possíveis no seu estado, mas seria preciso controlá-las... aliás o senhor deve tratar-se seriamente, senão isso se agravará.". Mas Ivan Fiódorovitch não deu importância a esse sábio conselho: "Tenho ainda força para andar. Quando eu cair, será diferente. Tratará de mim quem quiser!".
Tinha quase consciência de seu delírio e fixava obstinadamente certo objeto, em cima do divã, em frente dele. Ali apareceu de repente um indivíduo, que entrou Deus sabe como, porque não estava ele ali quando chegou Ivan Fiódorovitch, após sua visita a Smierdiákov. Era um senhor, ou uma espécie de cavalheiro russo, qui frisait la cinquantaine, como dizem os franceses, um pouco grisalho, os cabelos longos e espessos, a barba em ponta. Trazia um paletó marrom, evidentemente de casa de um bom alfaiate, mas já usado, datando de cerca de três anos e completamente fora de moda. A roupa branca, o comprido lenço de pescoço, tudo lembrava o cavalheiro elegante; mas a roupa, observada de perto, não estava lá muito limpa, e o lenço de pescoço bastante gasto. Suas calças de quadrados assentavam-lhe bem, mas eram demasiado claras e demasiado justas, como não se usam mais atualmente, da mesma maneira seu chapéu de feltro branco, malgrado a estação. Em sumna, um aspecto ao mesmo tempo decente e de quem estava em dificuldades financeiras. O cavalheiro parecia ser um desses antigos proprietários rurais que floresciam no tempo da servidão: vivera na sociedade, tivera outrora relações conservadas talvez até agora, mas pouco a pouco, empobrecido após as dissipações dajuventude e a recente abolição da servidão, tornara-se uma espécie de parasita de boa companhia, recebido em casa de seus antigos conhecidos por causa de seu gênio acomodatício e a título de homem decente, que se pode admitir à sua mesa em qualquer ocasião, embora num lugar modesto. Esses parasitas, de gênio afável, que sabem contar uma história, organizar uma partida, detestar as incumbências de que os encarregam, são em geral viúvos ou soleirões; por vezes têm filhos, sempre educados longe, em casa de alguma tia, a respeito da qual o cavalheiro quase nunca fala quando em boa companhia, como se se envergonhasse de tal parentesco. Acaba por se desacostumar de seus filhos, que lhe escrevem de longe em longe, por ocasião de seu aniversário ou do Natal, cartas de felicitações às quais ele por vezes responde. A fisionomia daquele visitante inesperado era mais afável que bonachona, pronta à amabilidade de acordo com as circunstâncias. Não tinha relógio, mas usava um lornhão de tartaruga, presto por uma fita preta. O dedo médio de sua mão direita estava ornado com um anel de ouro maciço com uma opala barata. Ivan Fiódorovitch mantinha-se em silêncio, resolvido a não travar conhecimento. O visitante aguardava, como um parasita que acaba de deixar o quato que lhe é reservado, à hora do chá, para fazer companhia ao dono da casa, mas que se cala, estando este absorvido em suas reflexões, pronto todavia a uma amável prosa, contanto que o dono da casa a comece. De repente seu rosto revelou preocupação.
-Escuta - disse ele a Ivan Fiódorovitch -, desculpa-me, quero somente lembrar-te: foste à casa de Smierdiákov, a fim de te informares a respeito de Iekaterina Ivánovna, mas vieste embora sem nada saber. Decerto te esqueceste...
-Ah! Sim! - disse Ivan preocupado. - Esqueci-me... Não importa, aliás, deixemos isso para amanhã. A propósito - disse ele, irritado, ao visitante -, era eu quem devia ter-me lembrado disso ainda há pouco, porque me sentia angustiado a respeito. Bastou que tivesses surgido para que acredite que essa sugestão partiu de ti.
-Pois bem! não o creio - e o cavalheiro sorriu com ar amáve. - A fé não se impõe. Aliás, neste domínio, as provas, mesmo materiais, são ineficazes. Tomé acreditou porque queria acreditar, não por ter visto o Cristo Ressuscitado. Assim, os espíritas... gosto muito deles... imagina que acreditam servir à fé, porque o Diabo lhes mostra seus chifres de vez em quando. "É uma prova material da existência do outor mundo." O outro mundo demonstrado materialmente! Que idéia! Enfim, isto provaria a existência do Diabo, mas não a de Deus. Quero passar para uma sociedade idealista, a fim e fazer-lhes oposição.
-Escuta - disse Ivan Fiódorovitch, levantando-se -, creio que estou delirando, conta o que quiseres, pouco me importa! Não me exasperarás como antes. Somente, tenho vergonha... Quero andar pelo quarto... Por vezes deixo de vert-te, de ouvir-te, mas adivinho sempre o que queres dizer, porque "sou eu quem fala e não tu!" Mas não sei se dormia, na derradeira vez, ou se te vi realmente. Vou aplicar na minha cabeça um guardanapo molhado, talvez assim te dissipes.
Ivan foi buscar um guardanapo e fez como dizia, depois do que pôs-se a andar para lá e para cá.
-Causa-me prazer nos tratarmos por "tu" - disse o visitante.
-Imbecil, acreditas que vou tratar-te por "vós"? Sinto-me disposto... se pelo menos não tivesse dor de cabeça... mas não me venhas com tanta filosofia como na última vez. Se não podes ir-te embora, inventa pelo menos algo de engraçado. Conta-me mexericos, porque não passas de um parasita. Que pesadelo tenaz! Mas não te temo. Acabarei vencendo-te. Não me internarão!
-C'est charmant! parasita. é meu papel, com efeito. Que sou eu na terra, senão um parasita? A propósito, surpreende-me ouvir-te; palavra, começas a tomar-me por um ser real e não pelo produto apenas de tua imaginação, como o sustentavas da outra vez.
-Nem um instante tomo-te por uma realidade - exclamou Ivan, com raiva - És uma mentira, um fantasma de meu espírito doente. Mas não sei como desembaraçar-me de ti, vejo que será preciso sofrer algum tempo. És uma alucinação, a encarnação de mim mesmo, de uma parte apenas de mim... de meus pensamentos e de mus sentimentos, mas dos mais vis e dos mais tolos. A este respeito, poderias mesmo interessar-me, se tivesse tempo para perder contigo.
-Com licença, vou confundir-te: ainda há pouco, perto do lampião, quando deste com Aliócha, gritando-lhe: "Soubeste-o por ele? Como sabes que ele vem ver-me?", era a meu respeito que falavas. Portanto, acreditaste um instante que eu existo realmente - disse o cavalheiro com um sorriso delicado.
-Sim, era um fraqueza... mas não podia acreditar em ti. Talvez te tenha visto somente em sonho, e não na realidade, na derradeira vez.
-E por que foste tão duro com Aliócha? Ele é encantador, sinto-me culpado para com ele, por causa do Stáriets Zózima.
-Como ousas falar de Aliócha, lacaio! - disse Ivan, rindo.
-Injurias-me rindo, bom sinal. Aliás, estás bem mais amável comigo do que da última vez e compreendo por quê: essa nobre resolução...
-Não me fales disto - gritou Ivan furioso.
-Compreendo, compreendo, c'est noble, c'est charmant, vais amanhã defender teu irmão, tu te sacrificas... c'est chevaleresque...
-Cala-te, senão, toma cuidado com os pontapés!
-Em certo sentido, isso me causará prazer, porque meu objetivo será atingido; se ages assim, é que crês na minha realidade, não se trata um fantasma a pontapés. Basta de brincadeiras! Podes injuriar-me, mas vale mais a pena ser um pouco mais delicado, mesmo comigo. Imbecil, lacaio! Que expressões!
-Injuriando-te, injurio-me! Tu és eu mesmo, mas com outro focino. Exprimes meus próprios pensamentos... e nada podes dizer de novo!
-Se nossos pensamentos se encontram, isto me causa honra - disse graciosamente o cavalheiro.
-Somente tu escolhes meus pensamentos mais estúpidos... És besta e vulgar. És estúpido. Não posso suportar-te! Que fazer, que fazer?! - murmurou Ivan entre os dentes.
-Meu amigo, quero, no entanto, permanecer um cavalheiro e ser tratado como tal - disse o visitante com certo amor-própri, aliás conciliante, bonachão. - Sou pobre, mas... não direi muito honesto, mas... admite-se geralmente como um axioma que sou um anjo decaído. Palavra, não posso imaginar como pude, outrora, ser um anjo. Se o fui em algum dia, foi há tanto tempo que não é um pecado esquecê-lo. Agora, atenho-me apenas à minha reputação de homem decente e vivo como posso, esforçando-me por ser agradável. Gosto sinceramente dos homens: caluniaram-me muito. Quando me transporto aqui para a Terra, entre vocês, minha vida toma uma aparência de realidade, e é o que mais me agrada. Porque o fantástico me atormenta como a ti mesmo, de modo que gosto do realismo terrestre. Entre vocês, tudo é definido, há fórmulas, geometria; entr nós, só equações indeterminadas! Aqui, passeio, sonho (gosto de sonhar). Torno-me supersticioso, não rias, peço-te; a superstição me agrada. Adoto todos os hábitos de vocês; gosto de ir aos banhos publicos, imagina, estar na estufa com os comerciantes e os popes. Meu sonho é encarnar-me, mas definitivamente , em algum comerciante obeso e partilhar de todas as suas crenças. Meu ideal é ir à igreja e lá acender uma vla, de todo o coração, palavra! Então meus sofrimentos terão fim. Gosto também dos remédios de vocês; na primavera havia uma epidemia de varíola, fui vacinar-me. Se soubesse como estava eu contente! Dei dez rublos para "nossos irmãos eslavos"!... Não me ouves. Não estás no teu estado normal, hoje... - O cavalheiro fez uma pausa. - Sei que foste ontem consultar aquele médico... pos bem! como vais? Que te disse ele?
-Imbecil!
-Em compensação, tens tanto espírito! Invectivas de novo. Não é por interesse que te perguntava isso. Podes não responder. Eis meus reumatismos que se apoderam de mim de novo.
-Imbecil!
-Continuas? Lembr-ome ainda de meus reumatismos do ano passsado.
-O Diabo com reumatismo?
-Por que não? Se m encarno, tenho de suportar todas as consequências. Satana sum et nihil humani a me alienum puto.
-Como, como? Satana sum et nihil humani... Nao está mal para o Diabo!
-Sinto-me feliz por ver que afinal te causo satisfação.
-Isto não aprendeste de mim - disse Ivan, surpreso - isto jamais me ocorreu. É estranho...
-C'est du nouveau, n'est-ce pas? Desta vez agirei lealmente e te explicarei uma coisa. Escuta. Nos sonhos, sobretudo durante os pesadelos que provêm dum desarranjo de estômago ou de outra coisa, o homem tem por vezes visões tão belas, cenas da vida real tão complicadas, atravessa tal sucessão de acontecimentos, de peripécias, inesperadas, desde as manifestações mais altas até as menores bagatelas, que, juro-te, o próprio Liev Tolstói não as imaginaria. Entretanto, esses sonhos ocorrem não aos escritores, mas a pessoas comuns: funcionários, jornalistas, popes... Um ministro chegou a confessar-me que suas melhores idéias lhe vinham quando dormia. é o mesmo agora; digo coisas originais, que nunca te vieram ao espírito, como nos pesadelos, entretanto, não sou senão tua alucinação.
-Mentes. Teu fim é persuadir-me de que existes e eis que tu mesmo pretendes ser um sonho.
-Meu amigo, escolhi hoje um método particular que te explicarei em seguida. Espera um pouco, onde estava eu? Ah! sim! Resfriei-me, mas não entre vocês, lá mesmo...
-Lá mesmo, onde? Dize, pois, demorarás ainda muito tempo? - exclamou Ivan, quase desesperado. Parou, sentou-se sobre o divã, pgou de novo a cabeça entr as mãos. Arrancou o guardanapo molhado e atirou-o fora com despeito.
-Estás com os nervos doentes - observou o cavalheiro com ar displicente, mas amigável. - Estás com raiva de mim porque me resfriei, entretanto aconteceu da maneira mais natural. Conrria eu para uma festa diplomática, em casa duma grande dama de Petersburgo, que manejava a seu gosto os ministros. De casaca, gravata branca, enluvado, no entanto estava ainda Deus sabe onde, e para chegar à Terra era preciso transpor o espaço. Decerto, não é senão um instante, mas a luz do Sol leva oito minutos e, imagina, de casaca e de colete aberto. Os espíritos não gelam, mas quando me encarnei... em suma, agi descuidadamente e aventurei-me; no espaço, no éter, na água... faz um frio, nem se pode mesmo chamar isso de frio, imagina: cento e cinquenta graus abaixo de zero. Conhece-se a brincadeira de jovens aldeãs: quando gela a trinta graus, propõem a algum simplório lamber um machado; a língua gela instantaneamente, o simplório arranca a pele e são apenas trinta graus. A cento e cinquenta graus, bastaria, penso, tocar um machado com um dedo para que este desapareça... se pelo menos houvesse um machado no espaço...
-Mas será possível? - interrompeu, distraidamente, Ivan Fiódorovitch. Lutava com odas as suas forças para resistir ao delírio e não afundar na loucura.
-Um machado? - repetiu o visitante com surpresa.
-Mas sim, que será feito dele lá? exclamou Ivan com uma obstinação colérica.
-Um machado no espaço? Quelle idée! Sese encontrar bem longe da Terra, penso que se porá a girar em torno sem saber por quê, à maneira de um satélite. Os astrônomos calcularão quando se levantará e quando se porá. Gatsuk pô-lo-á nno seu almanaque, eis tudo.
-És estúpido, horrivelmente estúpido! Prega mentiras mais espirituosas, ou não te darei ouvidos. Queres convencer-me pelo realismo de teus processos, persuadir-me de tua xistência. Não creio nela!
-Mas não estou mentindo, tudo iso é verdade. Infelizmsnte, a verdade quas nunca é espirituosa. Vejo que esperas de mim algo de grande, talvez de belo. É lamentável, porque só dou o que posso...
-Não me venhas com filosofia, pedaço de asno!
-Como posso eu filosofar, quando estou com todo o lado direito paralisado, obrigando-me a gemer? Consultei a faculdade; sabem diagnosticar maravilhosamente, explicam-nos a doença, mas são incapazes de curar. Havia lá um estudante entusiasta: "Se o senhor morrer", dizia le, "conhecerá exatamente a natureza de seu mal!". Têm a mania de dirigir-nos a especialistas: nós nos limitamos a diagnosticar, vá ver fulano, ele o curará. Não se encontra mais absolutamente o médico à moda antiga, que tratava todas as doenças. Agora só há especialistas, que fazem publicidade. Para uma doença no nariz enviam a gente a Paris, ao consultório de um especialista europeu. Ele examina o nariz da gente. "Não posso", diz ele, "curar senão a narina direita, porque não trato as narinas esquerdas, não é minha especialidade. Vá a Viena; há lá um especialista para as narinas esquerdas." Que fazer? Recorri aos remédios de curandeiras, um médico alemão aconselhou-me que esfregasse no corpo, após o banho, mel e sal. Fui aos banhos só por prazer e me besuntei em pura perda. Em desespero de causa, escrevi ao Conde Mattei, de Milão; enviou-me um livro e umas bolnhas. Que Deus lhe perdoe! Imagina que o extrato de malte de Hoff curou-me. Tinha-o comprado por acaso, tomei um frasco e meio e tudo desapareceu radicalmente. Estava resolvido a publicar uma declaração nos jornais, porque a gratidão falava dentro de mim, mas foi outra história, nenhuma redação a aceitou! "É demasiado reacionária", dizem, "ninguém acreditará nisso, le Diable n'existe point. Publique isso anonimamente." Mas de que vale uma declaração anônima? Brinquei com os redatores: "Ser reacionário", dizia-lhes, "é crer em Deus em nossa época, mas eu, eu sou o Diabo". "Decerto, toda gente crê no Diabo, contudo é impossível, poderia isso prejudicar o nosso programa. alvez... sob uma forma humorística..." Mas então, pensei, não seria espirituoso. E minha declaração não apareceu. Isto ficou-me pesando no coração. Os melhores sentimentos, tais como a gratidão, estão formalmente proibidos para mim, por causa de minha posição social.
-Voltas a cair na filosofia? - disse Ivan, de dentes cerrados.
-Deus me livre! Mas a gente não pode imperdir-se de queixar-se por vezes. Sou caluniado. Tu m tratas a todo momento de imbecil. Vê-se bem que és um homem jovem. Meu amigo, só há o espírito. Recebi da natureza um coração bom e alegre, "também compus vaudevilles". omas-me, creio, por um velho Khlestakov, mas meu destino é bem mais sério. Por uma espécie de decreto inexplicável, tenho por missão "negar", e no entanto sou visceralmente bom e inapto para a negação. "Não! tens de negar! Sem negação, não há crítica, e que seria das revistas sem a crítica? Só restaria uma hosana. Mas isto não basta para a vida, é preciso que esse hosana passe pelo cadinho da dúvida, etc." Aliás, não me meto em tudo isto, não fui eu quem inventou a crítica, não sou o responsável por ela. Pois bem! teno servido de bode expiatório, obrigaram-me a fazer crítica e a vida começou. Compreendemos essa comédia; quanto a mim, aspiro ao nada. Não, é reciso que vivas, dizem-me, porque sem ti nada existiria. Se tudo fosse razoável na Terra, nada se passaria nela. Sem ti, nada de acontecimentos; ora, são precisos os acontecimentos. Cumpro, pois, minha missão, bm a contragosto, para suscitar acontecimentos, e realizo o irracional, cumprindo ordem. As pessoas levam essa comédia a sério, malgrado todo o seu espírito. Para elas é uma tragédia. Sofrem, evidentemente... em compensação, vivem uma vida real e não imaginária, porque o sofrimento é a vida. Sem o sofrimento, que prazer ofereceria ela? Tudo se assemelharia a um Te-Deum interminável; é santo, mas bastante tedioso. E eu? Eu sofro e, no entanto, não vivo. Sou a incógnita de uma equação. Sou o espectro da vida, que perdeu a noção das coisas, e esqueço até o meu nome. Ris?... Não, não ris, zangas-te de novo, como sempre. Ser-te-ia preciso sempre inteligência; ora, repito-te, daria toda essa vida sideral, todos os graus, todas as honras, para encarnar-me na pele duma vendedora obesa e ir queimar velas na igreja.
-Tu também não crês em Deus - disse Ivan, com um sorriso cheio de ódio.
-Como dizer, se falas seriamente...
-Deus existe ou não existe? - insistiu Ivan encolerizado.
-Ah! é sério, então? Meu caro, Deus é-me testemunha de que não sei de nada, não posso dizer melhor.
-Não, tu não existes, tu és eu mesmo e nada mais! Não passas de uma quimera!
-Se queres, tenho a mesma filosofia que tu, é verdade. je pense, doc je suis, eis o que é certo; quanto ao resto, quanto a todos esses mundos, Deus e o próprio Satã, tudo isso não me é provado. Têm eles uma xistência própria, o serão apnas emanação de mim, o desenvolvimento sucessivo de meu "eu", que existe temporal e pessoalmente... mas detenho-me, porque tenho a impressão de que vais bater-me.
-Farias melhor se me contasses uma anedota!
-Eis uma, precisamente no quadro de nosso tema, isto é, mais ma lenda que anedota. Tu me censuras minha incredulidade. Mas, meu caro, não sou eu só assim: entre nós, todos estão agora perturbados por causa das ciências de vocês. Enquanto havia os átomos, os cinco sentidos, os quatro elementos, a coisaia bem ainda. Os átomos já eram conhecidos na Antiguidade. Mas vocês descobriram "a molécula química", o "protoplasma", e o diabo sabe ainda o quê! Aprendendo isso, os nossos baixaram a cauda. Foi a barafunda; sobretudo a superstição, os mexericos proliferaram; fica sabendo que temos disso, tanto quanto voc~es, talvez mesmo um pouco mais, e afinal tamb´m as declarações: há igualmente entre nós uma seção em que recebemos certas "informações". Pois bem, essa lenda de nossa Idade Média, da nossa, não da de vocês, não merece nenhum crédito, exceto entre gordas vendedoras, as nossas, não as de vocês. Tudo quanto existe entre vocês existe também entre nós; revelo-te este mistério por amizade, se bem que seja proibido. Essa lenda fala, pois, do paraíso. Havia na terra certo filósofo que negava tudo, as leis, a consciência, a fé, sobretudo a vida futura. Morreu pensando entrar nas trevas do nada e ei-lo em presença da vida futura. Espanta-se, indigna-se: "Isto", diz ele, "é contrário às minhas convicções". E foi condenado por isso... Desculpa-me, transmito-te esta lenda como ma contaram... Portanto, foi ele condenado a percorrer nas trevas um quatrilhão de quilômetros (porque contamos também em quilômetros, agora), e quando tiver ele acabado o seu quatrilhão, as portas do paraíso se abrirão diante dele e tudo lhe será perdoado...
-Que tormentos há no outro mundo, além do quatrilhão? - perguntou Ivan com estrnaha animação.
-Que tormentos? Ah! não me fales! Outrora, havia-os para todos os gosto; agora, é sempre mais o sistema das torturas morais, "os remorsos da consciência" e outras pataratas. Devemos isso à "doçura dos costumes" de vocês. E quem tira proveito disso? Somente os que não têm consciência, porque zombam dos remorsos! Em compensação, as pessoas decentes, que conervaram o sentimento da honra, sofrem... Eis o que acontece com as reformas operadas em terreno malpreparado e copiadas de instituições estrangeiras. São deploráveis! O fogo de outrora valia melhor. O condenado ao quatrilhão olha, pois, em redor de si, depois se deita atravessado na estrada: "Não ando, por princípio recuso!" Pega a alma de um ateu russo esclarecido e mistura-a com a do profeta Jonas, que se aborreceu três dias e três noites na barriga de uma baleia, e obterás o nosso pensador recalcitrante.
-Sobre que se estendeu ele?
-Havia certamente alguma coisa sobre a qual se estenderia. Não estás brincando?
-Viva! - exclamou Ivan, com a mesma animação. Escutava com uma curiosidade inesperada. - Pois bem! Continua ele deitado?
-Mas não, ao fim de mil anos, levantou-se e pôs-se a andar.
-Que asno! - Ivan deu uma risada nervosa e pôs-se a refletir. - Não será a mesma coisa ficar deitado eternamente ou marchar um uatrilhão de verstas? Mas perfaz isso um bilhão de anos?
-E até mesmo mais. Se houvesse um lápis e papel, poder-se-ia calcular. Faz muito tempo que ele chegou, e é aqui que começa a anedota.
-Como? Mas onde arranjou ele um bilhão de anos?
-Passa sempre na nossa Terra atual! A Terra reproduziu-se talvez um milhão de vezes; gelou-se, fendeu-se, desagregou-se, depois decompôs-se em seus elementos, e de novo as águas recobriram a terra. Em seguida, ofi novamente um cometa, depois um sol donde saiu o globo. Esse ciclo se repete talvez uma infinidade de vezes, sob a mesma forma, até o mínimo detalhe. É mortalmente aborrecedor...
-POis bem! Que aconteceu quando ele acabou?
-Assim que ele entro no paraíso, dois segundos, de relógio na mão, não se tinham passado (se bem que seu relógio, na minha opinião, deve ter-se decomposto em seus elementos durante a viagem) e já exclamava que, por aqueles dois segundos, bem valia fazer não só um quatrilhão de quilômetros, mas um quatrilhão de quatrilhões, à quatrilhonésima potência! Em suma, canto hosanas, exagerou mesmo, a ponto de pensadores mais dignos recusarem estender-lhe a mão nos primeiros tempos; tornara-se demasiado bruscamente conservador. É o temperamento russo. Repito-o, é uma lenda. Eis as idéias que têm em curso entre nós a respeito dessas matérias.
-Apanhei-te! - exclamou Ivan com uma alegria quase infantil, como se lhe voltasse a memória. - Fui eu mesmo que inventei essa anedota do quatrilhão de quilômetros! Tinha então dezessete anos, estava no ginásio... Contei-a a um de meus camaradas, Koróvkin, em Moscou... Essa anedota é muito característica, tinha-a esquecido, mas lembrei-me dela inconscientemente; não foste tu que a contaste! É assim que uma multidão de coisas nos volta à memória, quando marchamos para o suplício... ou quando sonhamos. Pois bem, não passas de um sonho!
-A violência com que me negas assegura-me que, apesar de tudo, crês em mim - disse o cavalheiro jovialmente.
-Absolutamente! não creio em ti nem uma centésima parte!
-Mas uma milésima cês. As doses homeopáticas são talvez as mais fortes. Confessa que crês em mim, pelo menos uma décima milésima parte...
-Não! - gritou Ivan irritado. - Aliás, gostaria bem de crer em ti!
-Eh! eh! eh! Por fim, confessou! Mas sou bom, vou ajudar-te. Fui eu que te apanhei! Contei-te de propósito, essa anedota para desenganar-te definitivamente a meu respeito.
-Mentes. O fim de tua aparição é convencer-me de tua existência.
Precisamente. Mas as hesitações, a inquietação, o conflito entre a fé e a dúvida constituem por vezes tal sofrimento para um homem escrupuloso como tu, que melhor vale enforcar-se. Sabendo que crês um pouco em mim, contei-te essa anedota para entregar-te definitivamente à dúvida. Conduzo-te entre a fé e a incredulidade alternativamente, não sem um fito. É um novo método; quando cessares completamente de crer em mim, pôr-te-ás a ssegurar-me que não sou um sonho, que existo verdadeiramente, conheço-te; então meu fito será atingido. Ora, meu fito é nobre. Depositarei em ti um minúsculo germe de fé que dará nascimento a um carvalho, um carvalho tão grande que será teu refúgio e quererás fazer-te anacoreta, porque é teu vivo desejo em segredo, nutrir-te-ás de gafanhotos, prepararás a tua salvação no deserto.
-Então, miserável, é para minha salvação que trabalhas?
-É bem preciso praticar aguma vez uma boa obra. Tut e zangas, pelo que vejo!
-Palaço! Jamais tentaste aqueles que se nutrem de gafanhotos, rezam dezessete anos no deserto até ficarem cobertos de musgo?
-Meu caro, não faço outra ocisa senão isso. A gente esquce o mundo inteiro por uma alma assim, porque é uma jóia de preço, uma aritmética. A vitória é preciosa! Ora, certos solitários, palavra de honra, valem tanto quanto tu, do ponto de vista intelectual, se bem que não o creias; podem contemplar simultaneamente tais abismos de fé e de dúvida que parece por vzes, na verdade, que basta apenas um cabelo para que eles sucumbam.
-Pois bem! Tu te retirarias de nariz bem comprido!
-Meu amigo - observou o visitante, sentencioso -, mais vale ter o nariz comprido do que não ter nariz nenhum, como dizia ainda recentemente um marquês doente (devia ter sido tratado por um especialista), confessando-se a um padre jesuíta. Asssisti a isso, era encantador. "Entregai-me meu nariz!", e batia no peito. "Meu filho", insinuava o padre, " tudo é regulado pelos decretos insondáveis da Providência, um mal aparente traz por vezes um bem oculto. Se uma sorte cruel o privou de seu nariz, o senor ganha com isso pelo fato de ninugém mais doravante ousar dizer-lhe que o senhor tem o nariz comprido." "meu padre, não é isto um consolo!", exclamou ele desesperado. "Ficarei, pelo contrário, encantado por ter cada dia o nariz mais comprido, contanto que ele esteja no seu lugar!" "Meu filho", disse o padre, suspirando, "não se podem pedir todos os bens ao mesmo tempo, e já é murmurar contra a Providência, que, mesmo assim, não o esqueceu; porque, se o senhor grita, como ainda há pouco, que seria feliz toda a sua vida por ter seu nariz comprido, seu desejo será satisfeito indiretamente, porque, tendo perdido seu nariz, pelo fato mesmo, tem o senhro o nariz comprido..."
-Ora! Que coisa estúpida! - exclamou Ivan.
-Meu amigo, eu queria fazer-te rir, juro-te que tal é a casuística dos jesuítas e que tudo isso é rigorosamente exato. Esse caso é recente e causoume bastantes preocupações. De volta para casa, o desgraçado rapaz estourou os miolos naquela noite; não o deixei até o derradeiro instante... Quanto aos confessionários jesuíticos, são na verdade meu divertimento agradável nas horas de tristeza. Eis uma historieta destes últimos dias. Uma jovem normanda, loura, de vinte anos, chega è casa de um velho padre. Uma beleza! Que corpo! Era de fazer vir água à boca. Ajoelha-se, murmura seu pecado através da grade. "Omo, minha filha, você recaiu no pecado?... Ó sancta maria, que ouço eu? Já é outro? Até quando durará isso? Não tem você vergonha?" "Ah! mon père", responde a pecadora arrependida, "ça lui a fait tant de plaisir et à moi si peu de peine!" Considera essa resposta! É o grito da própria natureza, vale isto mias que a inocência! Dei-lhe a absolvição e voltei-me para retirar-me, quando ouvi o padre marvar-lhe um encontro para aquela noite. Por mias resistente que tenha sido o velho, sucumbiu logo à tentação. A natureza, a verdade desforraram-se! Por que fazes careta? Eis-te de novo zangado? Não sei mais que faze para te ser agradável...
-Deixa-me, tu me obsedas como um pesadelo - gemeu Ivan, vencido pela sua visão. - Tu me aborreces e me atormentas. Daria muito para escorraçar-te.
-Repit, modera tuas exigências, não xijas de mim o grande e o belo e verás como seremos bons amigos - disse o cavalheiro com um tom sugestivo. - Na verdade, tens razão de querer-me mal porque não apareci em meio duma duma nuvem vermelha, entre o trovão e os raios, com as asas avermelhadas, mas me apresentei com traje tão modesto. Em primeiro lugar, teus sentimentos estéticos estão melindrados, depois teu orgulho: tão grande homem receber a visita de um diabo tão comum! Há em ti aquela fibra romântica de que zombou Bielínski! Que fazer, rapaz? Ainda há pouco, no momento de vir à tua casa, pensei, para brincar, em tomar a aparência de um conselheiro de Estado aposentado, condecorado com as ordens do Leão e do Sol, mas não ousei, porque ter-me-ias batido: como, pôr no peito as placas do Leão e do Sol, em lugar da Estrela Polar ou de Sírio?! E insistes em chamar-me estúpido. Meu Deus, não pretendo ter a tua inteligência. Mefistófeles, aparecendo a Fausto, afirma que quer o mal e não faz senão o bem. Bem, isso é lá com ele, comigo é o contrário. Sou talvez o único ser no mundo que ama a verdade e quer sinceramente o bem. Estava presente quando o Verbo crucificado subiu ao céu, levando a alma do bom ladrão; ouvi as exclamações jubilosas dos querubins cantando hosana! e os hinos dos serafins, que faziam tremer o universo. Pois bem, juro-o pelo que há de mais sagrado, quis juntar-me aos coros e gritar também hosana! As palavras iam sair de meu peito... sabes que so bastante sensível e impressionável do ponto de vista estético. Mas o bom senso - a mais desgraçada de minhas faculdades - reteve-me nos justos limites e deixei passar a hora propícia! porque, pensava e então, que aconteceria se eu cantasse hosana? Tudo se extinguiria no mundo, não se passaria mais nada. Eis como os deveres de meu cargo e minha posição social obrigaram-me a repelir um impulso generoso e a permanecer na infâmia. Outros arrogam-se toda a honra do bem: não me deixam senão a infâmia. Mas não invejo a honra de viver às custas de outrem, não sou ambicioso. Por que, entre todas as criaturas, sou eu só votado às maldições das pessoas honestas e mesmo aos pontapés debotas, pois, encarnando-me, evo suportar tais consequências? Há aí um mistério, mas a preço algum querem revelar-mo, com medo de que entoe eu hosana e tão lgoo edsapareçam as imperfeições necessárias, reine a razão no mundo inteiro: seria naturalmente o fim de tudo, até mesmo de jornais e revistas, porque quem os assinaria então? Sei que por fim eu me reconciliaria, farei também eu o meu quatrilhão e conhecerei o segredo. Mas, à espera, amuo-me e cumpro a contragosto minha missão: perder milhões para salvar um só. Quantas almas , por exemplo, foi preciso perder e quantas reputações macular para obter um só justo, Jó, do qual se serviram outrora para me pregarem bem má peça. Não, enquanto o segredo não for revelado, existem para mim duas verdades: a lá de baixo, a deles, que ignoro totalmene, e a outra, a mnha. Resta ver qual é a mais pura... Dormes?
-Penso bem - gemeu Ivan - em tudo o que há de animal em mim, tudo o que desde muito tepmo digeri e eliminei como uma sujeira, tu mo trazes como uma novidade!
-Então, não fui bem sucedido! Eu que pensava encantar-te com minha eloquência! Esse hosana no céu, na verdade, não estava mal, não é? Depois aquele tom sarcástico a Heine, não é?
-Não, jamais tive esse espírito de lacaio! Como pôde minha alma produzir um lacaio de tua espécie?
-Meu amigo, conheço um encantador jovem russo, amador de literatura e de arte. É o autor dum poema que promete, intitulado: O grande inquisitor... Era unicamente ele uqe eu tinha em vista.
-Proíbo-te de falar do Grande inquisitor - exclamou Ivan, rubro de vergonha.
-E o cataclismo geológico, lembras-te? Que poema!
-Cala-te o eu te mato!
-Matar-me? Não, é preciso que eu me explique em primeiro lugar. Vim cá para oferecer a mim mesmo esse prazer. Oh! quanto amo os sonhos de meus jovens amigos, fogosos, sedentos de vida! "Ali vive gente nova!", dizias tu na última primavera, quando te preparavas para vir aqui, "eles querem tudo destruir e regressar à antropofagia. Não me consultaram, os estúpidos. Na minha opinião, não é preciso destruir nada, a não ser a idéia de Deus no espírito do homem: eis por onde é preciso começar. Oh! os cegos, não compreendem nada! Uma vez que a humanidade inteira professe o ateísmo (e reio que essa época, à maneira das épocas geológicas, chegará a seu tempo), então, por si mesma, sem antropofagia, a antiga concepção do mundo desaparecerá, e sobretudo a antiga moral. Os homens se unirão para retirar da vida todos os gozos possíveis, mas neste mundo somente. O espírito humano se elevará até um orgulho titânico, e isto será a humanidade deificada. Triunfando sem cessar e sem limites da natureza pela ciência e pela energia, o homem por isso mesmo experimentará constantemente uma alegria tão intensa que ela substituirá para ele as esperanças das alegrias celestes. Cada qual saberá que é mortal, sem esperança de ressurreição, e resignar-se-á à morte com uma altivez tranquila, como um deus. Por altivez, abster-se-á de murmurar contra a brevidade da vida e amará seus irmãos duma maneira desinteressada. O amor só procurará gozos breves, mas o próprio sentimento de sua brevidade reforçar-lhe-á a intensidade tanto quanto outrora la se disseminava nas esperanças de um amor eterno, além-tumular"... e assim por diante. É encantador!
Ivan tapava os ouvidos com as mãos, olhava para o chão, termia da cabeça aos pés. A voz prosseguiu:
-A questão consiste nisto, sonhava meu jovem pensador: será possível que essa época chegue algum dia? Na afirmativa, tudo está decidido, a humanidade se organizará definitivamente. Mas como, diante da estupidez inveterada da espécie humana, não se venha isso a realizar talvez nem dentro de mil anos, é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo lhe é permitido. mais ainda: mesmo se essa época nunca chegar, como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único do mundo a viver assim. Poderia doravante, de coração leve, libertar-se das regras da moral tradicional, às quais estava o homem sujeito como um escravo. Para Deus, não existe lei. Em toda parte onde Deus se encontra, está em seu lugar! Em toda parte em que me encontrar, será o primeiro lugar... tudo é permitido, um ponto, é tudo! Tudo isso é muito gentil; somente, se se quer trapacear, de que serve a sanção da verdade? Mas nosso russo contemporâneo é sasim feito: não se decidirá a trapacear sem essa sanção, tanto ama ele a verdade...
O visitante deixara-se arrebatar pela sua eloquência, elevava cada vez mais a voz e olhava com ironia o dono da casa; mas não pôde acabar. Ivan agarrou de repente um copo em cima da mesa e atirou-o no orador.
-Ah! mais, c'est bête enfin - exclamou o outro, erguendo-se vivamente e enxugando as gotas de chá que lhe caíram na roupa; lembou-se do tinteiro de Lutero! - Quer ver em mim um sonho e lança copos contra um fantasma! Isso é digno dma mulher! Bem suspeitava de que fingias tapar os ouvidos e que estavas escutando...
Nesse momento, bateram na janla com insistência. Ivan Fiódorovitch levantou-se.
-Estás ouvindo? Abre então - exclamou o visitante. - É teu irmão Aliócha que vem anunciar-te uma notícia das mais inesperadas, garanto-te.
-Cala-te, impostor, sabia antes de ti que era Aliócha, pressentia-o, e decerto não vem à toa, traz evidentemente uma "notícia" - exclamou Ivan exaltado.
-Abre então, abre-lhe. Está lá fora uma tempestade de neve e é teu irmão quem bate. Monsieur sait-il le temps qu'il fait? C'est à ne pas mettre un chien debors...
Continuavam a bater. Ivan quis correr à janela, mas sentiu-se como que paralisado. Esforçava-se por partir os laços que o prendiam, mas em vão. Batiam cada vez com mais força. Por fim os laços se romperam e Ivan Fiódorovitch levantou-se. As duas velas acabavam de consumir-se, o copo que havia atirado contra seu visitante estava sobre a mesa. Sobre o divã, ninguém. As pancadas na janela persistiam, mas bem menos fortes do uqe lhe tinham parecido, bem discretas até.
-Não é um sonho! Não, juro que não era um sonho, tudo isso acaba de ocorrer.
Ivan correu à janela e abriu o postigo.
-Aliócha, eu te havia proibido de vir - gritou ele, com raiva a seu irmão. - Em duas palavras: que queres? Em duas palavras, ouves-me?
-Há uma hora Smierdiákov enforcou-se - disse Aliócha.
-Sobe o patamar, vou abrir a porta - disse Ivan.


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Capítulo IX, "O Diabo. A alucinação de Ivan Fioódorovitch", da obra "Irmãos Karamazov" de Dostoievski.