"O estúdio onde eu ensaiava ficava em Botafogo, eu ia para casa a pé. Gosto muito de caminhar. As baterias dos meus carros sempre morrem antes que eles percam o cheiro de carro novo. Uma dessas caminhadas eu fiz no fim da da tarde de um dia especial. No Maracanã, Flamengo e Grêmio disputariam o título da Copa do Brasil. Passavam ônibus cheios de flamenguistas. Os que me reconheciam mandavam recados pouco amigáveis, extensivos a todos os habitantes do RS.
Assisti ao jogo sozinho, no apartamento escuro, só iluminado pela TV. A cidade, parada. Excepcionalmente silenciosa. Abrimos o marcador, Grêmio 1 a 0. Uma gritaria de vascaínos vinda dos prédios vizinhos dialogou com meus próprios gritos. Segue o jogo, 1 a 1. Euforia na noite carioca, só superada pelo carnaval de vozes que explodiu quando Romário virou o jogo. Flamengo 2 a 1. Faltando alguns minutos para terminar a partida, desliguei a TV. Sempre acho que, se eu não estiver assistindo ao jogo, o tempo passará mais lentamente. Mais tempo de jogo aumentaria as chances de acontecer o empate que daria o título ao Grêmio. Uma visão otimista da covardia da avestruz.
Tinha dúvida de que o gol aconteceria, mas tinha certeza de que, se acontecesse, a vizinhança vascaína me avisaria. Passava o tempo e eu não olhava para o relógio. A velha esperança de que, se não olhasse, o tempo passaria mais devagar. Silêncio total. Quantos minutos teriam passado? Mais silêncio, tempo demais. Por que ninguém gritava, nem vascaínos secadores nem flamenguistas campeões? Não resisto, ligo a TV. Já não estavam transmitindo o jogo. Toca o telefone, minha irmã, chorando desfaz o suspense: éramos campeões. Havia mais de quinze minutos! Os vascaínos devem ter ido dormir antes do fim do jogo. Sofri quinze minutos desnecessários, já campeão.
Futebol é uma bobagem, né? Vendo a vida como um maravilhoso quadro pontilhista, cada ponto em si é uma bobagem. Os pontos se misturam e se transformam. Lá vai a aranha tecendo sua inescapável tapeçaria. Minha irmã certamente não chorava só por um bando de caras com camisas iguais correndo atrás de uma bola. Projetamos muitas coisas sobre muitas outras coisas. Se misturam e se transformam."
Trecho de "Pra ser sincero - 123 variações sobre um mesmo tema" - Humberto Gessinger