terça-feira, 24 de agosto de 2010

Feche os olhos e dance

Todos já foram a uma festa que simplesmente não poderia ser descrita. Do tipo com poucas pessoas, do tipo que a banda se perde em músicas que nunca tocaria em uma festa comum. Em um lugar ordinário, no qual nunca se imaginaria uma festa, mas que se transforma no lugar perfeito pra uma na mente de todos os que nela estiveram presentes.
A banda tocava “O caminho do bem”, mas não era um cover perfeito. A música havia se tornado única, própria, como uma composição de todos os corpos que se deixavam embalar por ela. A pouca iluminação especial do lugar vibrava com todas as mãos pro alto, pessoas que dançavam como se aquele fosse o único lugar vivo no planeta, ao menos naquele instante. As cabeças dançavam ritmadas, mesmo aquelas que não estavam acostumadas a seguir a música.
Dentre tantas cabeças, uma se destacava, como se fosse natural. Parecia ter sido criada para aquele ambiente. Cabelos chanel, muito escuros, aparentemente pintados. Olhos delineados e castanhos, aparentemente muito velhos, mas os mais jovens olhos daquela noite. Os olhos não pertenciam à noite, a noite pertencia aos olhos. De pele muito clara, usava uma blusa folgada, de alças estreitas, caindo leves ao corpo, deixando a um top a incumbência de esconder os seios. Era baixa – ainda que usasse um salto considerável, o qual não parecia atrapalhar a dança - e magra, talvez até magra demais. Longas meias escuras subiam por bonitas pernas até encontrar o que parecia interessar os diversos homens que dançavam ao seu redor. Uma saia alcançava a parte superior de seus joelhos. Dançava lentamente, de forma sensual e ao mesmo tempo nada vulgar, apesar de deixar transparecer na inocência daquela mulher algo de muito misterioso. Era uma dança tão sutil – e ao mesmo tempo bem composta – que parecia fazer parte daquela melodia, mas da forma certa. Não era um solo, era algo que dava à música um ambiente e permitia que ela alcançasse as pessoas. Seus olhos se fechavam e abriam a todo tempo, como se, apesar de às vezes longe daquele ambiente, estivessem sempre atentos, à espreita, procurando algo. Não sabia o que era, mas sabia que precisava encontrar algo, e não era algo convencional. Fechava os olhos e olhava para o alto, para as luzes, para as teias de aranha abandonadas nas junções da parede com o teto.
Piscou e olhou para a varanda, onde um homem destoava daquele lugar, olhando a rua vazia. Não era, porém, descartável ao ambiente. De repente era como se tudo pudesse desmoronar se não houvesse aquela peça incomum em um canto. Como se o ambiente pudesse novamente se tornar comum, impróprio para uma festa. Como se a música pudesse voltar a ser apenas um cover normal e, como se imagina, inferior ao próprio Tim Maia.
Parou de dançar e puxou um dos homens ao seu redor. A música pareceu ter diminuído seu volume, como se alguém em algum lugar estivesse gravando uma cena ao redor daquela mulher, querendo que todos os que estivessem atentos pudessem ouvir suas palavras.
-Você conhece aquele cara? – apontando para o homem na varanda.
-É o Rafael. – sorriu – Ele é estranho deste jeito, mesmo.
A mulher então voltou a dançar, se aproximando lentamente do homem. Colocou suavemente sua mão na parte interior da coxa de quem, aparentemente, conhecia muito mal aquele rapaz que não parecia querer participar da festa. A mão da mulher estava próxima ao lugar onde ele desejava que ela estivesse, mas não tão próxima quanto ele esperava. A mulher então o beijou nos lábios e, aproximando-se de sua orelha, disse:
-Obrigada, querido.
Começou, então, a caminhar em direção à varanda, deixando o homem no que se supunha ser uma pista de dança, ainda com os olhos fechados.
Rafael havia acendido mais um cigarro e parecia ainda olhar para o mesmo ponto da rua vazia, como se não estivesse realmente ali. A mulher apoiou seus braços nas grades da varanda e, tirando um cigarro de sua bolsa, dirigiu-se a ele:
-Posso fumar do seu lado?
Rafael não respondeu. Aparentemente sequer ouvir o que aquela mulher havia lhe dito.
-Meu nome é Sofia.
Seguiu-se um silêncio constrangedor. A pergunta seguinte está implícita, aquele homem, porém, parecia estúpido, ou morto. Sofia pôs-se a pensar e percebeu que ele talvez não devesse realmente responder àquela pergunta convencional. Já sabia o nome dele, por que perguntou? Por que as coisas devem seguir estes roteiros simplesmente estúpidos? Não poderia simplesmente começar a conversar com o homem, já se referindo a ele com seu nome? É provável que isto o assustasse, é verdade, mas era melhor do que o tédio. Qualquer coisa é melhor do que o tédio, por mais horrível que ela possa parecer, ao menos a princípio, antes que a experimentemos.
-Você dança, Rafael?
Rafael, porém, não só não se assustou, como não esboçou qualquer reação àquela fala. Sofia cogitou que a rua fosse para ele uma memória, uma memória mais interessante que qualquer coisa nova que pudesse acontecer àquele homem. Talvez fosse uma rua vazia apenas para ela, enquanto pra ele fosse um filme, fosse sua cena favorita do cinema. Lembrou-se de repente de Uma Thurman dançando “Girl, you’ll be a woman soon” em "Pulp Fiction". Como adorava aquela cena. Se ela estivesse sendo reproduzida agora em uma televisão em algum canto deste bar, era provável que ela se dirigisse até ele e a assistisse até o fim, sem querer ser incomodada. Havia, porém, algo de impulsivo que a forçava a incomodar aquele homem. Talvez fosse ele o que ela deveria encontrar naquele dia. Talvez ela estivesse apenas sendo muito tola, imaginativa, infantil.
Virou-se de costas ao homem e começou, então, a dançar lentamente muito próxima a ele. Estava realmente muito sensual. Até seu perfume barato parecia ter-se transformado em um perfume francês, que exalava de seu pescoço suado ao ponto certo - como se, naquele momento do que mal era um diálogo, já estivesse no ápice de uma relação sexual – e bem próximo do rosto de Rafael. O homem então virou-se para que a mulher pudesse ficar mais próxima dele e, aproximando-se de seu ouvido, finalmente disse algo:
-Eu costumava esperar a madrugada, para que as ruas, que eu via movimentadas todos os dias, estivessem vazias e eu então pudesse caminhar por elas e pensar livremente. Hoje, já não há mais propósito nisto. Nesta época, as pessoas eram vazias, mas ainda havia tesão, e eu as via como madeiras ocas, esteticamente agradáveis. Agora, é como se a madrugada fosse como o dia. As ruas estão sempre vazias e eu estou sempre sozinho.
Sofia então levou as mãos ao cabelo e, após quase agachar-se, levantou-se lentamente, inclinando para a frente, arrastando as nádegas pela perna do rapaz, até atravessar a virilha e chegar próximo à barriga, inclinando-se então para trás, pondo seu pescoço nos ombros do homem que, apesar de magro, os possuía largos. Era sua vez de aproximar sua boca a um dos ouvidos do homem e preencher o silêncio. Não tinha certeza se o queria fazer. Sentia uma enorme excitação naquele homem silencioso, como se em suas poucas palavras repousasse algo que a deixasse confortável o suficiente para ficar nua ali mesmo, em meio àquela multidão.
-Quer dizer então que você não pode me ajudar a encontrar o que estou procurando?
Rafael, de repente, sentiu-se despertar. Não fazia idéia de como havia chegado ali. Olhou ao seu redor e ninguém dançava, todos estavam parados, o observando fixamente, com olheiras profundas. No palco, restara apenas o baixista. Nunca havia presenciado algo daquele tipo: a banda inteira retirar-se do palco e restar apenas o baixista. Seus dedos percorriam o instrumento levemente, e não da forma agressiva como se costuma ver nos solos de baixo desacompanhados de outros instrumentos. As notas eram suaves, não tremiam nem um pouco, mas eram, apesar de tranqüilas, sinistras. Havia algo de macabro naquilo tudo. O baixista possuía as olheiras mais profundas do lugar e o observava de forma agressiva, como se quisesse matá-lo e então comer toda sua carne, até que não restasse qualquer vestígio seu no mundo. Parecia nervoso, cansado daquilo tudo, como se estivesse ali por obrigação apenas, esperando que ele terminasse logo com Sofia e a cortina pudesse, então, abaixar-se no palco. Correu os olhos pela festa e todos haviam voltado a dançar normalmente. “Foi um delírio momentâneo”, pensou. “É um daqueles sonhos novamente”. Sentiu, então, uma vontade incontrolável de vomitar.
-Meu pau ainda sobe, se é o que você quer saber. Só não estou tão certo se ele pode proporcionar a mim o mesmo prazer que pode proporcionar a você. Preciso ir ao banheiro.
Com seus braços, removeu Sofia de sua frente. Tirou a jaqueta de couro que trajava e a jogou no chão. Parecia uma jaqueta cara e o homem não aparentava ter dinheiro o suficiente para comprar outra daquela no dia seguinte, mas simplesmente não se importava. Usava apenas uma regata branca por baixo. Partiu apressadamente para o banheiro, empurrando as pessoas que se posicionavam na sua frente. A maioria delas sequer percebeu o gesto agressivo; outras o encararam, mas voltaram a dançar segundos depois.
Sofia sentiu-se ofendida com as palavras. Percebeu então o quanto havia sido vulgar nestes últimos momentos. Fechou os olhos e tentou esquecer aquele curto momento estúpido. Interpretou a fala de Rafael como um convite e decidiu segui-lo ao banheiro. Não sabia bem o que estava fazendo, mas estava determinada a fazê-lo.
Já na entrada do banheiro, Rafael percebeu que a mulher o seguia e a esperou. Puxou-a pela mão para o banheiro masculino. Sofia realmente esperava que aquilo acontecesse no banheiro feminino, sentir-se-ia menos constrangida desta forma. Percebeu, então, que o queria tanto que mal conseguia sentir o constrangimento. Estava naquele estado em que se pode contornar qualquer coisa depois, o que importava é que aquilo acontecesse.
Rafael não foi nada sutil, a puxou pelos braços e a empurrou para uma das cabines, onde nem se preocupou em levantar sua blusa ou qualquer coisa do tipo. Abaixou seus jeans apertados e, pressionando a mulher contra a parede, colocou suas mãos por baixo de suas saias e abaixou sua calcinha. Levantou-a, escorando-a na parede, e a penetrou de forma violenta. Sofia passou os braços pelos ombros de Rafael e tentou segurar-se para não gritar. Rafael não produzia qualquer som e não parecia segurar-se para não fazê-lo. No entanto, parecia muito excitado. Estava preso em seu mundo. Não queria que Sofia dissesse nada. Também não queria dizer nada.
Sofia percebeu, então, que não ouvia mais nada ao seu redor. Falou e não ouviu sua própria voz. O homem parecia gritar, gemer. Ela simplesmente não ouvia. O prazer parecia trancá-la em um armário e encolhê-lo aos poucos. Já não estava sozinho, mas trouxe consigo a dor. A dor não era como uma ferida; aumentava o prazer e o prazer aumentava a dor. Os dois continuavam interagindo até um ponto em que tudo parecia prestes a explodir. O homem não havia colocado camisinha, ela não conseguia se importar. Sequer entendia por que havia lembrado deste detalhe.
Sentiu, então, a vontade de vomitar do homem penetrar seu corpo. Prazer, dor, náuseas, silêncio. Tudo aquilo parecia duelar com sua mente por seu corpo. Sua mente parecia ceder, queria desfazer-se. Tudo era muito confuso. Como podia saber que o homem tinha vontade de vomitar? Era impossível. Notou que sabia muito sobre o homem. Rafael nada havia dito, mas ela sabia tudo. Conhecia o homem melhor do que a si própria, e não havia nisto muita diferença. Tudo o que o homem era estava nela, escondido em algum lugar. Rafael era mais Sofia do que ela própria.

Acordou em seu minúsculo apartamento. Sentia dores nas costas, dormia mais uma miserável noite naquele colchão horrível. Estava nua e se masturbava. No criado-mudo, ao lado de sua cama, havia um copo cheio até a metade de vodca pura, ruim, barata. Arremessou o copo contra a parede. Gritou, pôs-se de joelhos, puxou seus cabelos, chorou até a última lágrima, como se, secando-se as lágrimas, o sangue de seu corpo fosse parar de correr e ela finalmente pudesse ver-se livre de tudo aquilo.
Virou-se, então, e dormiu. Nua e só.

(...)

Hoje a música está viva
Suas unhas estão no vento
Suas cores estão nos lábios
Raios de luzes escuras
Sopros de lâminas partidas

Passando o dedo entre os cabelos
De jovens passageiros, já perdidos
Mas com coragem suficiente
Pra tentar mudar o mundo
Pra cravar os dentes em tudo
O que tiver sangue ou semente

Em toda noite, a música vive
Mas hoje sua madeira está oca
Revela por seu véu natural
Tudo o que há de bem ou mal
Como a mãe louca, que espera do filho morto
Permissão pra enterrar o próprio corpo.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O corpo

Minha vida está estacionada. Às vezes sinto vontade de empurrá-la com toda força, mas logo após, agarro-a e a imobilizo. Medo de envelhecer. Medo de sobreviver por muito tempo. Este medo da dependência e a vontade de que minha existência salte todas as etapas restantes e desapareça, uma vez que já está morta.
Encosto a cabeça na janela do ônibus, antes ou após minha aula, e me ponho a observar o asfalto a se movimentar infinitamente sob mim, o pneu a percorrê-lo agressivamente. Eu, no entanto, sei que continuo parado. Doeria se minha cabeça defendesse o asfalto? Talvez. Quando o ônibus está cheio, procuro um ponto para fixar meu olhar. Costumo optar por meu tênis, o que me mostra como a beleza não só pode estar nos detalhes, mas que também algumas coisas precisam ser não mais do que detalhes para que sejam belas. Procuro deixar a música o mais alto possível em meus fones de ouvido, para que não ouça nada ao meu redor; para que o exterior seja apenas imagens. Às vezes assisto à televisão, mas gosto de deixá-la muda. É estranho que, em um mundo com espaço para tantas palavras, grunhidos, gestos, o silêncio possa ser o mais confortável.
Mas meu tênis bem sabe que isto não é suficiente. Eu sei o que aqueles inúmeros estudantes estão dizendo. Às vezes tenho a sorte de pegar algum trabalhador, com uma cansativa jornada de trabalho – mal recompensada – e me sinto confortado. Posso ver que em sua cabeça não se formam palavras, mas a dor se expressa de forma plena. Ele a compreende, faz-me ter pena daqueles que buscam a compreensão argumentativamente nas palavras, nos choques de imagens. Nele, o sentimento parece ter forma própria, assim como as tantas outras formas de expressão.
Abaixo a cabeça e novamente lamento por todos os estudantes, debatendo suas aulas, cursos; suas idéias, como se nelas houvesse o fogo da vida. Enganaram-nos quando disseram que devemos estudar, ler, nos politizar, entender. Quando disseram que devemos nos interessar pelo interior – e não exterior – das pessoas. Que terrível engano, que consome tudo o que encontra.
A inteligência destrói tudo, todas as verdades. Mostra que em seu mundo, que tenta separar-se do corpo, tudo é artificialmente construído e que, quanto mais a compreensão derruba, mais aproxima-se o vazio. O corpo, não. O corpo invoca dores, libera hormônios, grita sensações. Da dor à sexualidade, todas as sensações são igualmente prazerosas, só elas provam que você ainda está vivo.
Lembro-me de imaginar que um dia, quando eu menos esperasse, uma garota estranha entraria no ônibus, se sentaria do meu lado e diria: “Você tá ouvindo The National? É minha banda favorita” – como nos filmes –, e daí viriam novamente as sensações, com elas o sangue voltaria a correr em meu corpo e, a partir daí, estaria vivo. Hoje olho à minha volta em um ônibus e vejo diversas possíveis garotas, com este potencial, e às vezes me provocam até um sorriso irônico, debochando de mim mesmo. Não as quero, porém, do meu lado. Quero que as sensações fiquem longe de mim e que eu permaneça para sempre um cadáver.
Este é o mundo do corpo. Não pertenço a ele.

domingo, 1 de agosto de 2010

Realidade

Primeiro, as bases da vida.
Um comprimido para manter-se acordado. Um comprimido para dar energias. Um comprimido para manter-se calmo na entrevista de trabalho. Um comprimido para esquecer o que não lhe é conveniente. Um comprimido para construir uma personalidade cheia de peculiaridades.

Segundo, para evitar a solidão.
Um comprimido pela boa aparência. Um comprimido para sorrir. Um comprimido para ser divertido. Um comprimido para dançar. Um comprimido para ereção. Um comprimido para brincar com os filhos. Um comprimido para tirar férias.

Finalmente, o momento em que os comprimidos não são necessários (embora possam ser úteis).