quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

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"(...) A empunhei e a ergui como um campeão ergue um troféu e, a essa altura, os gritos já não me importavam mais. Quando a lustrei pela manhã, sabia que algo grande iria acontecer, mas nem fazia idéia que seria algo que venho esperando por toda minha vida. Nesse momento, posso enxergar meus próprios olhos no cano da arma, que agora mais me parece um espelho, e vejo que estou firme como nunca estive; pela primeira vez, vejo mais grandeza ao olhar a mim mesmo do que ao olhar o que mais me parece um verme desprezível, ajoelhado, implorando e se humilhando para que eu o mantenha vivo.
Sem desviar a mira, acendi um cigarro e fui até o som, não poderia fazer isso sem ouvir "The Church" tocando "Under the Milky way tonight", imaginei esse dia como uma mulher que imagina seu casamento desde os seus cinco anos de idade e, agora que ele chegou, tudo deveria ser perfeito.
De repente, tudo ficou ainda mais calmo, eu não podia ouvir seus gritos, tudo o que eu ouvia era a música e minha própria respiração, nada ofegante. Desviei o olhar encontrando, pela primeira vez depois de muito tempo, o olhar de minha vítima e, como uma criança que se diverte vendo outra criança que acaba de cair e machucar o joelho, empunhei minha faca, antes sobre a mesa e apenas assisti o sofrimento da vítima aumentar à minha frente, sem eu ao menos tê-la tocado.
Observei sua mão sobre a mesa de canto de olho e, com um movimento brusco, cravei minha faca sobre ela, prendendo sua mão à mesa. Acho que não há palavras que sejam capazes de descrever tamanho prazer que senti ao sentir sua pele abrir, como um tecido que se rasga, porém com sangue, muito sangue, que agora já se alastrara em minha mão e pulso.
Rapidamente segurei sua outra mão e a prendi contra a parede. Guardando o revólver na cintura, tirei vagarosamente outra faca da cintura, enquanto assistia seu choro subhumano e desesperado e, vagarosamente, encostei a ponta da faca na palma de sua mão.
Fechei os olhos, prendi a respiração e me concentrei, dessa vez não perderia qualquer detalhe e, pressionando a faca devagar, pude sentir a primeira gota de sangue, a carne se rompendo até o fim e, finalmente ou infelizmente, a parede fria, como se a faca, naquele momento, passasse a fazer parte de meu corpo. Com um pouco mais de força, cravei a faca, em parte, na parede, imobilizando seus dois braços.Sentei em sua frente, por um momento, e passei a fitá-la de perto, como há muito também não fazia. Era incrível como o medo e a dor haviam distorcido toda sua fisionomia, porém, seus olhos continuavam firmes e maravilhosos como sempre costumaram estar; admito que sempre os preferi iluminados pelo sol, mas eles sempre costumaram estar lindos, não importava a situação.
Devagar, passei seus cabelos para trás de suas orelhas e, me aproximando de seu rosto, lhe dei o último beijo, tendo, por esses poucos segundos, a sensação de que tudo havia voltado ao normal e que eu havia acabado de acordar depois de várias horas deitado no sofá, enquanto ela passava lenta e carinhosamente seus dedos pelos meus cabelos.
Não agüentando mais as memórias que agora transbordavam em minha mente, me levantei rapidamente, sacando a arma, e primeiro mirei em seu pé, atirando.De repente tudo se tornara barulhento, eu podia ouvir seus gritos, os meus gritos, e, às vezes, os dois pareciam soar como um só, como se eu estivesse atirando em mim mesmo.
Desesperado, mirei na canela, atirando, depois na coxa, no braço, cada vez mais desesperado, como se nada pudesse me trazer alívio naquele momento.Atirei, em seguida, em seu umbigo, para que nunca pudesse ter lembranças que me infernizassem. Em seguida, em sua vagina e, vendo que nada me traria alívio, mirei em sua cabeça.
Nesse momento, pude ver o reflexo de meus olhos, cheios de lágrimas, no cano da arma e, de repente, o silêncio reinou novamente. Agora podia ouvir o "The Church" como se eles estivessem pessoalmente ao meu lado, tocando seus instrumentos e assistindo a cena; e minha respiração, ofegante como nunca havia estado, como se, nesse momento, eu tivesse corrido todo o estado, enquanto era perseguido por mim mesmo.Foi nesse momento que coloquei o cano da arma dentro de minha própria boca e atirei, caindo em cima de minha vítima.
Enquanto eu caía, ainda podia ouvir seus gritos de desespero e, já deitado, fiquei confuso se tinha mirado em minha cabeça ou na sua."

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Agir, pensar

Engraçado, hoje eu estava totalmente entediado jogando "paciência" (aliás, aos poucos estou descobrindo por que o jogo se chama assim) e, pra variar, eu tenho várias manias e superstições em determinadas jogadas. Por exemplo, se eu tenho duas opções pra liberar uma nova carta nos montes do jogo, eu sempre escolho o monte da direita, por simples mania (e sou muito paranóico com isso, realmente acho que se não fizer, vou perder o jogo por isso), mas faz um certo sentido, já que o monte da direita tem mais cartas e, portanto, é mais importante que fique todo liberado.
Acontece que hoje eu estava jogando meio sonolento e acabei por optar um da esquerda, por não ver o da direita, mas, pra minha surpresa, acabei ganhando o jogo por isso; conclusão, às vezes agir impulsivamente, sem impregnação de raciocínio, pode ser um grande passo para alcançar algo que desejamos.


(Isso não significa que minhas manias vão terminar).

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Trecho de "O Perfume", Patrick Süskind

"(...) Havia sido um erro comprar a casa sobre a ponte, e um duplo erro ficar com uma do lado oeste. Tinha permanentemente diante dos olhos o rio a correr, e, para ele, era como se fosse junto com a correnteza, ele, a sua casa e a sua riqueza obtidas em decênios, tudo junto com o rio, como se fosse velho e fraco demais para se contrapor à poderosa corrente. Às vezes, quando tinha algo a fazer na margem esquerda, no bairro em torno da Sorbonne e de Saint-Sulpice, não ia pela ilha e pelo Pont Saint-Michel, mas tomava o caminho mais longo, pelo Pont Neuf, pois esta ponte não era cheia de casas. E ele se postava no parapeito leste e ficava olhando rio acima, para ao menos uma vez ver tudo correndo na sua direção; e por alguns momentos se regalava imaginando que a tendência da sua vida se invertera; os negócios floresciam, a família prosperava, as mulheres corriam atrás dele e a sua existência, em vez de diluir, só fazia revigorar-se.
Mas logo, erguendo um pouco o olhar, via a algumas centenas de metros de distância a sua própria casa, tão frágil, estreita e alta sobre o Pont au Change, a janela do seu gabinete de trabalho no primeiro andar, e via a si mesmo parado à janela, olhando o rio e observando a água que seguia correndo, como agora. E com isso desvanecia-se o belo sonho, e Baldini, sobre o Pont Neuf, afastava-se, mais abatido do que antes, tão abatido quanto agora, quando se afastou da janela, foi até a escrivaninha e sentou-se. (...)"