terça-feira, 29 de setembro de 2009

Espelho

A prostituta observa seu reflexo, nu, no espelho
Em seu corpo, marcas que nunca cicatrizaram
Mas lhe deram comida e álcool
Permitiram que sua vida continuasse, sem sentido
(com ou sem vírgula)
Seu sexo, disforme, devorado pelo instinto humano
Seus seios nunca amamentaram,
Mas foram chupados, até secarem, pela irracionalidade
Seu ânus havia sido cruelmente violentado
Ela ainda se lembra da dor, mas este custava mais caro

Lembrou-se de quando era jovem e bela
Em uma mesa prostituída,
Brindou a infidelidade da felicidade
E a infelicidade da fidelidade
Sentiu o vinho caríssimo deslizar suave por sua garganta
Depois deste, a porra suja e agressiva
E, como esses rastros de vida que engoliu,
Perdeu-se

Lembrou-se de sua infância
Seu sorriso era dócil, ingênuo, feliz
E não pedia um porquê
Não se lembra de quando tudo passou a pedir um
Se a dor trouxe a falta de sentido
Ou a falta de sentido trouxe a dor
Tentou esboçar um sorriso,
Não conseguiu chorar

Foi quando a bala atravessou o céu de sua boca
Perfurou suas lembranças, desavenças, suas noites
Perfurou os detalhes de sua vida
Perfurou seu amor que não alcançava nem sequer ela própria
O eco, porém, não pertenceu ao tiro

O corpo de Lisa se foi,
Infeliz para sempre
Seu sorriso, porém, se prendeu naquele quarto
Feliz e infeliz, eterno
À espera de um porquê

Não posso deixar de amar esta garota
O que a sociedade fez com seu corpo
Fez também com minha alma

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A ponte

Do diretor norte americano Eric Steel, "A ponte" é um documentário sobre suicídio, onde uma equipe cinematográfica se põe a acompanhar a ponte de São Francisco (Califórnia, EUA) durante todo o ano de 2004, capturando vinte e três suicídios e, em torno destes, entrevistando parentes e amigos para se chegar a conclusões sobre o que os levou ao ato e o que deixaram para trás.

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PARTE I - http://www.youtube.com/watch?v=HRvlzN_AIms

PARTE II - http://www.youtube.com/watch?v=qjd6xZMd9Vk

PARTE III - http://www.youtube.com/watch?v=pObw8_aTqsk

PARTE IV - http://www.youtube.com/watch?v=SW-MuC9Un3E

PARTE V - http://www.youtube.com/watch?v=gd4g-ZYy_4k

PARTE VI - http://www.youtube.com/watch?v=VnM9_KmN82E

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Universo de um só são

O brilho do diamante ofuscou sua visão
E, desapercebido, desacelerou seu coração
De repente, sentira-se feliz
Pois a riqueza lhe levara também sua visão

A boca gritava e ele não escutava
Pois o que lhe valia era o que
Apalpava com sua mão
Esqueça o pão, esqueça o pão

Universo de um só são, mundo cão
Perdão, perdão
A assonância corroeu o cérebro
Mas compreender o valor das palavras, não

Engolia mentiras e vomitava o luxo
O sofá adornado de suor em vão
Quem não come, apalpa a fome
E a pele descasca em violência e opressão

Desprovido, ele só gritava
E lhe gritavam de volta: "desprovido de nada"
Suicidou-se e nem pôde entrar em um caixão
Não morreu como cristão, nem pode servir de lição

Universo de um só são, mundo cão
Perdão, perdão
A assonância corroeu o cérebro
Mas compreender o valor das palavras, não

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Midazolan

Midazolan distorcido
Caligrafia torta
Olheiras de cansaço

Que a marca de baba nesta folha
(De quem dormiu sem perceber)
Seja mais poética do que seus versos
(Nem deu tempo de fazer uma oração)

Amém

Intifada

A História é o diário da desesperança
E a Intifada é o início do sonho
Me atirarei em pedras contra a desumanidade
E, em lágrimas de fúria, me recomponho
Humano que sou, demasiado humano

Muros de tijolos se erguem frente a nós
Mas não absorvem a história que trazemos nos olhos
Podem abafar os gritos de nossa voz
Mas não podem cessar o pulso
O coração não vai parar de bater

A Intifada nunca vai morrer
A Intifada nunca vai morrer

Todos os dias o sol nasce no Oriente
E é assassinado no Ocidente
Sua luz não serve para iluminar o indecente
Mas para uma tarde perfeita americana no litoral
Tão perfeita, que chego a passar mal

Enquanto houver corpo, farei tremer a ordem
Ou qualquer apelido que inventem para este caos
Entregarei minha sorte a meu povo
A cada explosão, a esperança brilhará de novo
E cada mãe se ajoelhará para chorar

A Intifada não pode morrer
A Intifada não pode morrer

terça-feira, 22 de setembro de 2009

(...)

Todos os dias o sol da esperança nasce no Oriente e morre no Ocidente

Poema artificial

O artificial corre em minhas veias. Escorre por meus cabelos, se esconde embaixo de minhas unhas, fede embaixo de meus braços.

O artificial impregna meus versos. Ama meus amores, odeia meus desafetos, alimenta meu ódio e desfruta de meus breves momentos de prazer.

O artificial lê minha sorte. Viaja por meus segredos, forma as linhas de minhas mãos e caçoa de meus sonhos.

O artificial me arrasta pelo asfalto de sua própria estrada em busca de algo que não o seja.

O artificial escancara as cortinas quando já é noite e me obriga a sorrir como se visse o sol.

O artificial faz com que me arrisque sem medo, porquanto minhas decepções sejam também artificiais.

O artificial me adora, flerta com minha humanidade, me seduz, me devora, me vomita.

O natural me faz chorar.

sábado, 19 de setembro de 2009

Com fraternidade e raiva

A amizade é um espelho às avessas
É enxergar-se nos contornos opostos
É sentar-se na praia e, durante um silêncio de vinte minutos,
Ainda conseguir desfrutar do conforto do mar

A amizade é hipócrita
É ser grosseiro por fora e piegas por dentro
É um barco prestes a afundar em pleno oceano
Onde as pessoas dançam, cantam e festejam o medo do mundo

A amizade é um livro de estórias ridículas
Das quais somente duas pessoas acham graça

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Os Três Mal-Amados (excerto) - João Cabral de Melo Neto

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

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http://www.youtube.com/watch?v=0ibBmsBRxEU

Corpo morto (o sentido da vida)

É jogo sujo
A mulher que te come e te larga em lençóis manchados
A escuridão da noite se junta à viscosidade da porra em sua coxa
E as sensações se misturam
Como o prazer cancerígeno da fumaça de um cigarro
Como se a felicidade fosse expulsa por seu pinto
E dissolvesse no ar

Você está só
O relógio não vai mais bater (ele já não precisa)
Os olhos não vão mais piscar
Os lábios não vão mais sorrir
O coração não vai mais sonhar
Você está só

Hoje eu vi Deus
Ou talvez apenas uma mancha no ar
Ele me disse algo
Mas a música estava alta demais
Indiferente

Um cadáver de sentimentos
Um anjo do pecado
O pudor da luxúria
A embriaguez da razão
As lágrimas do estuprador carregam todo o
Sentido da vida

Rivotril
Risotril
Vivotril
Corpo morto
Sopro morto
Não há pulsação
Nada

Samba para Ana Bolena

Morrer por um amor que não existe
É muito triste
Que a ilusão não se transforme em dor
E, no torpor, eu encontre um sorriso

É, eu sei, não é isso que eu preciso
Mas às vezes dói demais ficar só
E procuro na complicação de um nó
A simplicidade de ser feliz

É que hoje a saudade de você bateu
E nesses dias eu penso demais
Minha cabeça não se engana pela paz
Que carrego em meu semblante morto

Morto, vou dançar um samba morto
Vou mostrar meu corpo torto
Prá lua ignorar (será?)

Vou deitar neste gramado
Imaginar-me do seu lado
E deixar tudo queimar

Vou deitar neste gramado
Imaginar-me do seu lado
Prá o amor se enganar

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Tabacaria - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

...

Sorte o ser humano possuir polegar opositor..
Caso contrário, eu levaria meses pra diferenciá-lo de um animal qualquer.

AA! UU!

"AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Estou ficando louco
De tanto pensar
Estou ficando rouco
De tanto gritar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Eu como, eu durmo
Eu durmo, eu como
Eu como, eu durmo
Eu durmo, eu como

Está na hora de acordar
Está na hora de deitar
Está na hora de almoçar
Está na hora de jantar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Estou ficando cego
De tanto enxergar
Estou ficando surdo
De tanto escutar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Não como, não durmo
Não durmo, não como
Não como, não durmo
Não durmo, não como

Está na hora de acordar
Está na hora de deitar
Está na hora de almoçar
Está na hora de jantar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!"


(Titãs - AA UU)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Lisa

Lisa no canto do quarto
Lisa observando a fumaça
Lisa desprezando o movimento
Lisa escutando o silêncio
Lisa sorri
Lisa chora
Lisa não pode ser vista
Lisa está morta

(Tem oito anos e sorri quando pisca a luz)

Envelhecer

Uma gota cai do céu
Em meio a muitas, mas esta é uma gota especial
Entre tantos céus, ela escolheu o mais nublado
Entre tantas nuvens, ela escolheu a que mais se parecia um sonho
Entre tantos prédios, escolheu o mais sujo
Entre tantas janelas, escolheu a mais antiga
Se chocou contra o vidro e desapareceu

No pequeno e desajeitado quarto, reinava o silêncio
Em sua porta, uma placa gritava:
"Aluga-se este espaço vazio"

domingo, 6 de setembro de 2009

Eloquência

A inteligência é o corpo nu
algum prazer e muita dor

É um curtametragem de ilusão
e um filme mudo de solidão

Inteligência é desinteressante
É a boca muda e a cabeça baixa

O silêncio é criativo

O culto e o poeta

Tinham medo de se olhar nos olhos.
Para o culto, o poeta era um mistério, e ele odiava se confrontar com o que não conhecia perfeitamente.
O poeta, porém, tinha medo de uma única pergunta - ficava branco só de pensar em seu ponto de interrogação e o silêncio que se seguiria a ele. Ele sabia que, quando olhasse o culto nos olhos, enxergaria conhecimento, enquanto o culto, quando encarasse os olhos do poeta, se depararia com a criatividade.
Quem sentiria inveja?

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Morte anterior à vida

Só quem já tocou em um cadáver sabe qual a sensação.
No início eles são moles, flácidos, como uma mulher que grita por socorro em vão enquanto é estuprada em um beco sujo por um homem nojento. Depois, porém, eles ficam rígidos - tão rígidos que, se fechar os olhos enquanto os toca, pode ter dúvidas quanto a quem está morto: você ou ele.
Dizem que uma pessoa só se sente viva quando em contato com outras pessoas; eu ouso discordar. A vida nada mais é do que um caminho em direção à morte - se você não se aproxima dela, não vive, e quanto mais se tem contato com ela, mais se sente vivo (experimente alguns segundos com uma arma carregada e apontada para sua cabeça).
Quando se toca uma pessoa viva, sente-se um pouco do que ela é: a textura de sua pele, a sensação provocada pelo toque - onde ela gosta (ou não) de ser tocada. Quando se toca um cadáver, tem-se a sensação do que é ser você: as unhas roídas se comprimindo contra a carne de seus dedos, suas doenças, hipocrisias, medos e desejos. É quase como tocar a si mesmo (e, de fato, talvez seja o mesmo, já que, para nós, nossas próprias vidas nunca são interessantes, o que não nos torna diferentes de uma pessoa morta).
Tocar um cadáver é como fazer com que seus dedos entrem em suas mãos, seu cérebro vire do avesso e se torne nítido, claro; tocar em um cadáver é nojento.
Já pensou em transar com um?