terça-feira, 26 de outubro de 2010

O grito

O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose

Todo feixe de luz que invade
É um nascimento
E nem todo bebê que geme
O faz por sofrimento
A fome já não é mais vaidade
E a cegueira que consome
Já não escolhe idade
Nem toda bandeira ostenta um ideal
E a raiva de quem perdeu sua liberdade
Já não mais está abaixo de bem ou mal

O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose

Toda geração é um formigueiro de idéias prontas
A juventude é um relógio parado
Louvamos o fracasso antigo
Escrevemos em um papel usado
A luxúria de mudar o mundo
Mata de frio o velho morimbundo
E a água da chuva se confunde com lágrimas

O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Lúpus



Todas as pessoas detestam a sociedade, mas todas querem seus pais perfeitamente sociais.
Os pais são nossa eterna recordação ou expectativa de conforto e segurança, ainda que sejam símbolos da ausência destes em nossa vida.
As pessoas sentem a necessidade, independente de sua inerência (ou não) natural, de convivência, dispondo de todos os sacrifícios necessários para que se mantenham em contato social.
O que está em questão não é o desgosto verbal do ser humano pela sociedade, mas um desgosto verdadeiro e raramente percebido. O desgosto verbal pela sociedade pode se tornar algo completamente social, o que é de fato, infelizmente, eficaz, exatamente em função do desgosto real em questão. Este desgosto verbal faz com que o outro ser social tenha sensação de finalmente encontrar alguém que compreende algo que está em seu interior - este desgosto verdadeiro, que é quase inexpressável, embora passível de compreensão por qualquer um.
A sociedade em sua forma atual e em suas formas historicamente conhecidas é um simples vírus, um vício. Obedecemos normas completamente exteriores, que detestamos, em prol do convívio social. Estas normas, postas desta forma, obviamente deveriam ter função de facilitar e tornar agradável o convívio social, mas elas acabam por tomar forma de preços, os quais pagamos. Preços que destroem o que procuramos.
É como um remédio alucinógeno. Inicialmente, por mais que os preços sejam altos, o benefício é válido, e pagamos por ele. Depois, o benefício se torna tão irrisório, que não pagaríamos por ele ainda que os preços abaixassem ou se tornasse gratuito. São normas que destroem não só o convívio social, como a ânsia humana pelo contato com outros homens. Isto porque a relação entre estas normas e o convívio está completamente alterada: o primeiro não facilita o segundo, o primeiro é condição necessária para o segundo, situação que acaba por tornar o convívio um incoveniente, algo que necessitamos e precisamos de alguma forma conseguir pagar por. E este pagamento está na construção de quem somos. É uma doença tão intensa, que a maioria das pessoas tentará moldar sua postura de acordo com esta sociedade ou de forma completamente contrária a esta sociedade e que seja interessante, para que possa participar da mesma de uma forma relevante sem necessariamente destruí-la, ainda que seja reconhecido como um vilão social.
Quando tomo um comprimido qualquer, sinto exatamente o gosto desta doença, sinto as partes de mim que se ocupam dela e das quais não consigo me livrar, expelir. São como fungos por todo o meu corpo, mais velhos até mesmo do que minha memória. Depois me vem à cabeça o preço, o formato desta necessidade, o sumiço de qualquer perspectiva. Por fim, é como se não houvesse mais alimento para aqueles fungos, mas eles continuassem ali, famintos, e tudo o que eu pudesse fazer é esperar alguém retirá-los de meu corpo pra mim. Ou alguém resolver retirar seus próprios fungos enquanto eu retirasse os meus, juntos.
Esta sensação é a que identifico como a única sensação social pura - despida de qualquer construção externa - que conseguimos alcançar sozinhos e livres. Ela é a responsável por minha imaginação - que ocupa tanto espaço em meu tempo -, é a única razão pela qual me mantenho vivo.
Se esta base, uma idéia tão simples, consegue transmitir uma sensação tão diferente e interessante, imagine o que poderia acontecer se duas pessoas livres pudessem se encontrar? É algo que eu talvez nunca conheça em toda minha vida, mas que sempre esperarei conhecer.
A vida como temos agora, porém, é como um cigarro aceso pelo filtro.

domingo, 3 de outubro de 2010

h) Pode-se ser o juiz de seus semelhantes? Fé até o fim.

"Lembra-te de que não podes ser o juiz de ninguém. Porque antes de julgar um criminoso, deve o juiz saber que é ele próprio tão criminoso quanto o acusado, e talvez mais que todos culpado do crime dele. Quando tiver compreendido isto, poderá ser juiz. Por mais absurdo que isto pareça, é verdade. Porque se eu mesmo fosse um justo, talvez não houvesse diante de mim um criminoso. Se podes encarregar-te do crime do acusado que julgas em teu coração fá-lo imediatamente e sofre em seu lugar; quanto a ele, deixa-o ir sem censuras. E mesmo se a lei te instituiu juiz dele, tanto quanto é possível, faze também a justiça naquele espírito, porque, uma vez partido, condenar-se-á ele ainda mais severamente que o teu tribunal. Se ele se vai insensível a teu bom tratamento e zombando de ti, não fiques impressoinado; é que a hora dele ainda não chegou, mas chegará; e, no caso contrário, um outro em lugar dele compreenderá, sofrerá, condenar-se-á, acusar-se-á a si mesmo, e a verdade será cumprida. Crê firmemente nisto; é aí que repousam a esperança e a fé dos santos. Não te canses de agir. Se te lembrares, à noite, antes de dormir, de que não cumpriste o que era preciso, levanta-te logo para cumpri-lo. Se os que te cercam, por malícia ou indiferença, recusam ouvir-te, põe-te de joelhos e pede-lhes perdão, porque, na verdade, é culpa tua se não querem escutar-te. Se não podes falar àqueles que estão envinagrados, serve-os em silêncio e na humildade, sem jamais desesperar. Se todos te abandonam e se te expulsam com violência, ao ficares sozinho, prosterna-te, beija a terra, rega-a com tuas lágrimas, e essas lágrimas darão frutos ainda mesmo que ninguém te veja, nem te ouça na tua solidão. Crê até o fim, mesmo que todos os homens se hajam desviado e tenhas ficado fiel sozinho; leva então tua oferenda e louva a Deus, por teres sido o único a manter a fé. E se dois, tais como vós, se reúnem, então eis a plenitude do amor vivo, beijai-vos com efusão e louvai o Senhor, porque sua verdade cunmpriu-se, ainda que apenas em vós dois.
Se tu mesmo pecaste e estás mortalmente aflito por isso, rejubila-te por um outro, por um justo, rejubila-te por ser ele, em compensação, um justo e não ter pecado.
Se estás indignado e aflito por causa da iniquidade dos homens, a ponto de quereres vingar-te, teme acima de tudo esse sentimento; impõe-te o mesmo castigo que fosses tu mesmo culpado do crime deles. Aceita esse castigo e suporta-o, teu coração se acalmará, compreenderás que tu também és culpado, porque terias podido esclarecer os celerados mesmo na qualidade de único justo, e não o fizeste. Esclarecendo-os, ter-lhes-ias mostrado um outro caminho, e o autor do crime não o teria talvez cometido, graças à luz. Se os homens ficarem mesmo insensíveis a essa luz, malgrado teus esforços, e negligenciarem sua salvação, fica firme e não duvides do poder da luz celeste; persuade-te de que, se não foram eles salvos agora, sê-lo-ão mais tarde. Senão, seus filhos serão salvos em lugar deles, porque tua luz não perecerá, mesmo se estiveres morto. O justo desaparece, mas a luz fica. Após a morte do salvador é que a gente se salva. O gênero humano repele seus profetas, massacra-os, mas os homens amam seus mártires e veneram aqueles que eles mesmos fizeram perecer. É pela coletividade que trabalhas, pelo futuro que ages. Não procures recompensa jamais, porque tens já uma grande nesta terra: tua alegria espiritual, de que somente o justo partilha. Não temas nem os grandes nem os poderosos, mas sê sábio e sempre digno. Segue a medida, conhece os termos, instrui-te a este respeito. Retirado na solidão, reza. Prosterna-te com amor e beija a terra. Ama incansavelmente, insaciavelmente, todos e tudo, procura esse êxtase e essa exaltação. Rega a terra de lágrimas de alegria, ama essas lágrimas. Não te envergonhes desse êxtase, ama-o, porque é um grande dom de Deus, concedido somente aos eleitos".


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Trecho da obra "Irmãos Karamazov", Dostoiévski.