terça-feira, 24 de março de 2009

Fim da viagem

Depois de quatro anos, o homem caminhava novamente só pela praia. Sentia, em seu rosto, o suor escorrer-lhe violentamente e, em seus músculos, a fadiga contrair-lhe dolorosamente - e isso era bom; era como se sua mente se dividisse entre a atenção ao exterior, à sua vida pessoal e ao seu esforço físico e, quanto maior fosse esse esforço, menos seu pensamento se voltaria às áreas restantes.
Enquanto andava, de cabeça baixa, notou que algo mudara totalmente de quatro anos para cá: antes andava sempre de cabeça erguida, observando as pessoas e procurando em seus olhos seus sofrimentos, indignações e, por que não, alegrias. Agora, ao erguer a cabeça, o homem olhava a todos com indiferença.
Nunca havia sido um comunista, pixado muros, participado de protestos ou lutado abertamente contra o sistema, mas ao mesmo tempo, em sua vida, nunca havia conhecido alguém tão subversivo quanto ele próprio.
O fato era que a mulher que amava havia o abandonado neste dia e ele se sentia como se estivesse reconhecendo o que restara de seu mundo. Se antes olhava ao seu redor e ansiava justiça, mudança, agora olha ao seu redor e nada sente; é como se antes de a conhecer ele amasse todos e se preocupasse igualmente com todos e, ao conhecê-la, tivesse reunido todo esse amor em uma única pessoa, a qual jogou tudo no lixo; nada mais restava para ele.
Percebeu, então, que o fato de ela o ter abandonado era indiferente; o amor é optar por uma vida de alguns anos entre esta e a eternidade.
Sorriu, parando ao lado de um lixo e retirando uma foto do bolso, onde ele e sua ex-mulher sorriam para a câmera. Porém, ao olhar para o lixo, ficou novamente melancólico, guardando a foto em seu bolso outra vez.
Há, na vida, caminhos dos quais não se pode voltar.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sinais de fumaça

Caminhando pela cidade eu vi sinais de fumaça
que, entre outras coisas, me trazem mensagens de casa.
No meio das cinzas que se formam entre o primeiro e o próximo trago,
sinais de fumaça irradiam de meu próprio cigarro.
.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
.
Na dicotomia entre mentira e sinceridade,
a opção mais sincera é que às vezes dispensa a verdade.
Mas como é um dia especial, precisamos comemorar;
vou brindar-lhes com a verdade, na verdade, nunca tive saudades de lá.
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Mas eu preciso pensar que um dia eu tive um lar.
Mas eu preciso pensar que um dia eu tive um lar.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
Mas eu preciso pensar que um dia eu tive um lar.
.
Mas eram só sinais de fumaça.
Mas eram só sinais de fumaça.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Retrato

Misantropia e solidão.
Sou aquele que não tem passado,
o que está atrás é apenas uma página borrada.
Sou a desesperança esperançosa de Winston.
Sou a solidão de Raskolnikóf.
Sou a misantropia introspectiva de Jack Torrance.
Sou a falta de sentido da vida Meursault.
Sou a boca que te ama e há de te maltratar de Augusto dos Anjos.
Sou o delírio que te há de matar de Álvares de Azevedo.
Sou o vento que tudo traz de Arnaldo Antunes.
Não disperdiço papéis com negócios e afazeres,
o mundo é poesia, o mundo é tristeza.
Meu papel descreve o que já esteve na cabeça de todos
mas ninguém ousou escrever.
.
Café, estrada, mapas, acaso, papéis, solidão.
Sou aquele que ninguém vê, mas um dia todos hão de notar.
Porque é no nada que às vezes encontramos tudo.
Sou a dualidade paradoxal da personalidade humana
fichada, descrita, arquivada.
Sou a cortina que isola o sol.
Sou os olhos que observam a lua.
Sou as lágrimas que escorrem do desespero.
Sou a solidão das capitais.
Não fui, sou, nunca serei.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Por trás dos olhos firmes..

"E lá vai Deus
sem sequer saber de nós
saibamos pois
estamos sós.."
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