quinta-feira, 15 de novembro de 2012

(...)


Será saudade ou nostalgia?
Uma manhã fria
Apenas uma sala vazia demais
Uma cabeça cheia
Querendo descansar em paz

Pelo ônibus, sonhando acordado
O corpo pelado no espelho após o banho
O olho insano se esquece de um sonho
Da boca que um dia viu cantar

Quando for velho, fujo de tudo
Não haverá trabalho ou histórias
Transas ou memórias
Apenas um rosto a barbear

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Sorte

http://www.youtube.com/watch?v=E2j-frfK-yg


A sorte é um fato. A combinação de inúmeros fatores, independentes e abstratamente aleatórios. A junção de tantas vontades humanas, direta ou indiretamente ligadas ao fator, forma a intensidade que o torna independente da própria vontade individual. Estes, combinando-se sem qualquer padrão – não havendo qualquer critério – formam as situações. Daí produz-se a sorte. Pode nunca acontecer em sua vida, pode acontecer em proporções desprezíveis (envolvendo poucos fatores) ou grandes proporções pouco efetivas (que produzam pouco resultado), mas a combinação de fatores aleatórios resultante em efeitos benéficos ao indivíduo é uma possibilidade inexplicável – talvez porque não tenha explicação – e, ainda assim, fática. Uma verdade universal. Independe da similaridade de fatores - se todos os planetas fossem similares à Terra, tal conceito seria simples e banal, talvez desnecessário e substituível. Eis a grandeza do Universo: sua abstração. Independente da substância que preenche as condições, fatos ou atos. Independente da vida, sujeitando até mesmo os objetos inanimados. Em qualquer ponto do Universo, há influência de fatores. Em qualquer ponto do Universo, pode existir a sorte. Pequena ou grande, uma confluência admirável. Em uma esquina qualquer, em uma coincidência qualquer.

É tudo o que me resta da crença no superior.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

1.


A lógica é a maior das loucuras. Seus infinitos corredores, portas, escadas. Você caminha por esta mansão escura, como se a conhecesse na palma de suas mãos. E de fato, a conhece. Até que não possa mais ter certeza de que o cômodo em que está é real. Então, passa a questionar todos, não se lembra de qualquer critério palpável para estar certo do que pensa. A vida em lógica pode ter sido, por inteiro, um desvario. Um breve momento de loucura pode contaminar toda uma vida sã. Esta, porém, é uma dúvida que nunca faz qualquer diferença. Um momento de insanidade se espalha por toda uma vida: pelo que há de vir, pelo passado imaculado. É como um crime do espírito. Um vírus.

Apenas um piscar de olhos. Um passo no asfalto. Seu barulho forte ecoando na madrugada, assustador, seguido por dois outros de mesmo poder. O pensamento acelerado. Na retaguarda, dois homens estranhos, quietos. O suor enfrenta o ar frio, escorrendo pela testa, enquanto o calor corporal contrasta com o vento noturno. A aceleração do passo é relativamente nula, acorrentando-nos. Corrente de dúvida que apenas a noite poderia proporcionar. Poderiam ser dois assaltantes, poderiam ser apenas duas pessoas indo para casa, cansadas. Uma coincidência de caminhos ou um espancamento. Esta é a noite, invariavelmente, em abstrato. Um Deus temperamental.

(...)

terça-feira, 24 de julho de 2012

Trecho de "Cem anos de Solidão" (Gabriel García Márquez) - Borboletas amarelas


“(...)
Meme não pôde deixar de pensar nela quando acenderam as luzes do improvisado cenário e começou a segunda parte do programa. Na metade da peça alguém lhe deu a notícia no ouvido e o ato foi suspenso. Quando chegou em casa, Aureliano Segundo teve que abrir caminho aos empurrões por entre a multidão para ver o cadáver da velha donzela, feia e de má cor, com a venda negra na mão e envolta na mortalha primorosa. Estava exposto na sala junto ao caixote do correio.
Úrsula não voltou a se levantar depois das nove noites de Amaranta. Santa Sofía de la Piedad tomou conta dela. Levava-lhe a comida no quarto e a água da bilha para que se lavasse e a mantinha a par de quanto se passava em Macondo. Aureliano Segundo a visitava com frequência e lhe levava roupas que ela punha perto da cama, junto com as coisas mais indispensáveis para o viver diário, de modo que em pouco tempo tinha construído para si um mundo ao alcance da mão. Conseguiu despertar um grande afeto na pequena Amaranta Úrsula, que era idêntica a ela, e a quem ensinou a ler. A sua lucidez, a habilidade para se bastar a si mesma faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém suspeitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a primeira a perceber a calada angústia de Meme.
-Venha cá – disse a ela. – Agora que estamos sozinhas, confesse a esta pobre velha o que há contigo.
Meme fugiu da conversa com um riso entrecortado. Úrsula não insistiu, mas acabou de confirmar as suas suspeitas porque Meme não voltou a visita-la. Sabia que se arrumava mais cedo do que de costume, que não tinha um instante de sossego enquanto esperava a hora de sair à rua, que passava noites inteiras rolando na cama do quarto contíguo e que a atormentava o voejar de uma borboleta. Em certa ocasião, ouviu-a dizer que ia se encontrar com Aureliano Segundo e Úrsula se surpreendeu de que Fernanda fosse tão curta de imaginação que não suspeitasse de nada quando o marido chegou em casa perguntando pela filha. Era evidente demais que Meme andava com assuntos sigilosos, com compromissos urgentes, com ansiedades reprimidas, desde muito antes da noite em que Fernanda alvoroçou a casa porque a tinha encontrado aos beijos com um homem no cinema.
A própria Meme andava na época tão ensimesmada que acusou Úrsula de havê-la denunciado. Na realidade, ela se denunciara a si mesma. Há muito tempo que deixava à sua passagem um caudal de pistas que teriam despertado o mais adormecido e, se Fernanda demorara tanto para descobri-las, foi porque  também ela estava obscurecida pelas suas relações secretas com os médicos invisíveis. Mesmo assim acabou por perceber os profundos silêncios, os sobressaltos intempestivos, as alternativas de humor e as contradições da filha. Empenhou-se numa vigilância dissimulada, mas implacável. Deixou-a estar com as suas amigas de sempre, ajudou-a a se vestir para as festas de sábado e jamais lhe fez uma pergunta impertinente que pudesse alertá-la. Tinha já muitas provas de que Meme fazia coisas diferentes das que anunciava e, no entanto, não deixou vislumbrar as suas suspeitas na espera da ocasião decisiva. Certa noite, Meme avisou que ia ao cinema com o pai. Pouco depois, Fernanda ouviu os foguetes da farra e o inconfundível acordeão de Aureliano Segundo no rumo da casa de Petra Cotes.  Então se vestiu, entrou no cinema e, na penumbra das cadeiras, reconheceu a filha. A perturbadora emoção do acerto lhe impediu de ver o homem que a estava beijando, mas chegou a perceber a sua voz trêmula no meio dos assovios e das gargalhadas ensurdecedoras do público. “Sinto muito, amor”, ouviu-o dizer, e tirou Meme da sala sem lhe dizer uma palavra e submeteu-a à vergonha de leva-la pela barulhenta Rua dos Turcos e trancou-a à chave no quarto.
No dia seguinte, às seis da tarde, Fernanda reconheceu a voz do homem que foi visita-la. Era jovem, citrino, com uns olhos escuros e melancólicos que não a teriam surpreendido tanto se tivesse conhecido os ciganos e um ar de sonho que a qualquer mulher de coração menos rígido teria bastado para entender os motivos da filha. Vestia um linho muito usado, sapatos branco-zinco defendidos desesperadamente por solas superpostas, e trazia na mão um chapéu de palhinha comprado no sábado anterior. Em toda a sua vida nunca estivera nem estaria mais assustado do que naquele momento, mas tinha uma dignidade e um domínio que o punham a salvo da humilhação e uma excelência legítima que só fracassava nas mãos calosas e nas unhas lascadas pelo trabalho rude. A Fernanda, entretanto, bastou vê-lo uma vez para intuir a sua condição de trabalhador braçal. Percebeu que usava a sua única roupa de domingo e que debaixo da camisa tinha a pele carcomida pela sarna da companhia bananeira. Não permitiu que falasse. Não permitiu sequer que ele passasse da porta, que um momento depois teve de fechar, porque a casa estava cheia de borboletas amarelas.
-Vá embora – disse a ele. – Não tem nada que fazer no meio de gente decente.
Chama-se Mauricio Babilonia. Tinha nascido e crescido em Macondo e era aprendiz de mecânico nas oficinas da companhia bananeira. Meme o conhecera por acaso, numa tarde em que fora com Patricia Brown buscar o automóvel para dar um passeio pelas plantações.
Como o chofer estava doente, encarregaram-no de levá-las e Meme pôde por fim satisfazer a sua vontade de se sentar junto ao volante para observar de perto o sistema de manejo. Ao contrário do chofer titular, Mauricio Babilonia lhe fez uma demonstração prática. Isso foi na época em que meme começou a frequentar a casa do Sr. Brown e ainda se considerava indigno de damas dirigir um automóvel. De modo que se conformou com a informação teórica e não voltou a ver Mauricio Babilonia por vários meses. Mais tarde haveria de recordarq eu durante o passeio chamou-lhe a atenção a sua beleza varonil, salvo a brutalidade das mãos, mas depois tinha comentado com Patricia Brown o mal-estar que lhe produzira a sua segurança um pouco altiva. No primeiro sábado em que foi ao cinema com seu pai, voltou a ver Mauricio babilônia com o seu costume de linho, sentado a pouca distância deles, e percebeu que ele se desinteressava do filme para se virar para olhá-la, não tanto para vê-la como para que ela notasse que ele a estava olhando. Meme se aborreceu com a vulgaridade daquele sistema. Finalmente, Mauricio Babilonia se aproximou para cumprimentar Aureliano Segundo e só então Meme soube que se conheciam, porque ele tinha trabalhado na primitiva instalação elétrica de Aureliano Triste e tratava seu pai com uma atitude de subalterno. Essa comprovação aliviou-a do desprazer que lhe causava sua altivez. Não se tinham visto a sós, nem se tinham dito uma palavra diferente do cumprimento, na noite em que sonhou que ele a salvava de um naufrágio e ela não experimentava nenhum sentimento de gratidão e sim de raiva. Era como lhe ter dado uma oportunidade que ele desejava, sendo que Meme queria o contrário, não só com Mauricio Babilonia como também om qualquer outro homem se se interessasse por ela. Por isso ficou tão indignada que depois do sonho, em vez de detestá-lo, teria experimentado uma urgência irresistível de vê-lo. A ansiedade se fez mais intensa no correr da semana e no sábado já era tão premente que teve que fazer um esforço enorme para que Mauricio Babilonia não notasse, ao cumprimenta-la no cinema, que o coração lhe saía pela boca. Ofuscada por uma confusa sensação de prazer e raiva, estendeu-lhe a mão pela primeira vez, e só então Mauricio babilônia se permitiu apertá-la. Meme chegou,  numa fração  de segundo, a se arrepender do impulso, mas o arrependimento se transformou imediatamente numa satisfação cruel, ao comprovar que também a mão dele estava suada e gelada. Nessa noite, compreendeu que não teria um instante de sossego enquanto não demonstrasse a Mauricio babilônia quão vã era a sua aspiração, e passou a semana voejando em torno dessa ansiedade. Recorreu a toda espécie de artimanhas inúteis para que Patricia Brown a levasse para buscar o automóvel. Por último, valeu-se do cabelo-de-fogo norte-americano, que por essa época estava passando as férias em Macondo e, com o pretexto de conhecer os novos modelos de automóveis, fez-se levar às oficinas. Desde o momento em que o viu, Meme deixou de enganar a si mesma, e compreendeu que o que acontecia na realidade era que não podia mais suportar o desejo de estar a sós com Mauricio Babilonia e se indignou com a certeza de que este compreendera isso ao vê-la chegar.
-Vim ver os novos modelos – disse Meme.
-É um bom pretexto – disse ele.
Meme percebeu que estava se queimando na luz da sua altivez e procurou desesperadamente uma maneira de humilhá-lo. Mas ele não lhe deu tempo. “Não se assuste”, disse em voz baixa. “Não é a primeira vez que uma mulher fica louca por um homem”.  Sentiu-se tão desamparada que abandonou a oficina sem ver os novos modelos e passou a noite de extremo a extremo rolando na cama e chorando de indignação. O cabelo-de-fogo norte-americano, que realmente começava a lhe interessar, pareceu-lhe um bebê de fraldas. Foi então que entendeu as borboletas amarelas que precediam as aparições de Mauricio Babilonia. Vira-as antes, sobretudo na oficina mecânica, e pensara que estavam fascinadas pelo cheiro da pintura. Alguma vez tê-las-ia sentido voejar sobre a sua cabeça na penumbra do cinema. Mas quando Mauricio Babilonia começou a persegui-la como um espectro que só ela identificava na multidão, compreendeu quea s borboletas amarelas tinham alguma coisa que ver com ele. Mauricio Babilonia estava sempre na plateia dos concertos, no cinema, na missa, e ela não necessitava vê-lo para descobri-lo, porque o indicavam as borboletas. Uma vez, Aureliano Segundo se impacientou tanto com o sufocante movimento de asas que ela sentiu o impulso de confiar-lhe o seu segredo como lhe havia prometido, mas o instinto lhe indicou que desta vez ele não ia rir como de costume: “Que diria a sua mãe se soubesse”. Certa manhã, enquanto podavam as rosas, Fernanda lançou um grito de espanto e quis tirar Meme do lugar em que estava e que era o mesmo lugar do jardim de onde Remedios, a bela, subira aos céus. Tivera por um instante a impressão de que o milagre ia se repetir na sua filha, porque tinha-se perturbado com um repentino movimento de asas. Eram as borboletas. Meme as viu como se tivessem nascido de repente na luz e seu coração deu um baque. Nesse momento, entrava Mauricio Babilonia com um pacote que, segundo disse, era um presente de Patricia Brown. Meme engoliu o rubor, assimilou a perturbação, e até conseguiu um sorriso natural para pedir-lhe o favor de coloca-lo no parapeito, porque tinha os dedos sujos da terra. A única coisa que Fernanda notou no homem que poucos meses depois haveria de expulsar ed casa sem lembrar de que o tivesse visto alguma vez foi a textura biliosa da pele.
-É um homem muito esquisito – disse Fernanda. – Está escrito na testa que vai morrer.
Meme pensou que sua mãe tinha ficado impressionada com as borboletas. Quando acabaram de podar o roseiral, lavou as mãos e levou o pacote para o quarto para abri-lo. Era uma espécie de brinquedo chinês, composto de cinco caixas concêntricas e, na última, um cartão laboriosamente desenhado por alguém que mal sabia escrever:  A gente se vê sábado no cinema. Meme sentiu o terror tardio de que a caixa tivesse estado tanto tempo no parapeito, ao alcance da curiosidade de Fernanda, e, embora a lisonjeasse a audácia e o engenho de Mauricio Babilonia, comoveu-a a sua ingenuidade de esperar que ela não faltasse ao encontro. Meme já sabia que Aureliano Segundo tinha um compromisso no sábado à noite. Entretanto, o fogo da ansiedade abrasou-a de tal modo no correr da semana que no sábado convenceu o pai a deixá-la sozinha no cinema e voltar para buscá-la no final da sessão. Uma borboleta noturna voejou sobre a sua cabeça enquanto as luzes estiveram acesas. E então aconteceu. Quando as luzes se apagaram, Mauricio Babilonia se sentou do seu lado. Meme se sentiu debater num pântano de desespero, do qual só poderia ser resgatada, como acontecera no sonho, por aquele homem cheirando a óleo de motor que mal distinguia na penumbra.
-Se você não tivesse vindo – ele disse – não teria me visto nunca mais.
Meme sentiu o peso da sua mão no joelho e soube que ambos chegavam naquele instante ao outro lado do desamparo.
-O que me choca em você – sorriu – é que sempre diz exatamente o que não devia dizer.
Ficou louca por ele. Perdeu o sono e o apetite e se aprofundou tão profundamente na solidão que até o pai se transformou num estorvo para ela. Elaborou um intrincado nó de compromissos falsos para desorientar Fernanda, perdeu de vista as amigas, pulou por cima dos convencionalismos para encontrar-se com Mauricio Babilonia a qualquer hora e em qualquer parte. No princípio, incomodava-a a sua rudeza. Na primeira vez em que se viram a sós, nos prados desertos atrás da oficina mecânica, ele a arrastou sem misericórdia a um estado animal que a deixou extenuada. Demorou algum tempo para se dar conta de que também aquela era uma ofrma da ternura e foi então que perdeu o sossego e não vivia senão para ele, transtornada pela ansiedade de se fundir no seu entorpecedor bafo de óleo esfregado com água sanitária. Pouco antes da morte de Amaranta, tropeçou de repente com um espaço de lucidez dentro da loucura e tremeu diante da incerteza do futuro. Então ouviu falar de uma mulher que fazia prognósticos pelas cartas e foi vista-la em segredo. Era Pilar Ternera. Desde que esta a viu entrar, soube dos recônditos motivos de Meme. “Sente-se”, disse-lhe. “Eu não preciso do baralho para averiguar o futuro de um Buendía”. Meme ignorava, e ignorou sempre, que aquela pitonisa centenária era sua bisavó. Tamouco teria acreditado, depois do agressivo realismo com que ela lhe revelou que a ansiedade do namoro não encontrava repouso a não ser na cama. Era o mesmo ponto de vista de Mauricio Babilonia, mas Meme se recusava a lhe dar crédito, pois no fundo supunha que ele estava inspirado em algum mau critério de operário braçal. Ela pensava então que uma forma de amor derrotava a outra, porque fazia parte da índole dos homens repudiar a fome uma vez satisfeito o apetite. Pilar Ternera não só dissipou o erro como também lhe ofereceu a velha cama de lona onde ela concebera Arcadio, o avô de Meme, e onde concebera depois a Aureliano José. Ensinou-lhe, além disso, como prevenir a concepção indesejável mediante a vaporização de cataplasmas de mostarda e deu receitas de beberagens que em casos de contratempo faziam expulsar “até os remorsos de consciência”. Aquela entrevista infundiu em Meme o mesmo sentimento de valentia que experimentara na tarde da bebedeira. A morte de Amarante, entretanto, obrigou-a a adiar a decisão. Enquanto duraram  as nove noites, ela não se afastou um só instante de Mauricio Babilonia, que andava confundido com a multidão que invadira a casa. Vieram logo o luto prolongado e o enclausuramento obrigatório e se separaram por algum tempo. Foram dias de tanta agitação interior, de tanta ansiedade irreprimível e tantos desejos reprimidos, que na primeira tarde em que Meme conseguiu sair foi diretamente à casa de Pilar Ternera. Entregou-se a Mauricio Babilonia sem resistência, sem pudor, sem formalismos e com uma vocação tão fluida e uma intuição tão sábia que um homem mais desconfiado que o seu poderia confundir com uma requintada experiência. Amaram-se duas vezes por semana durante mais de três meses, protegidos pela cumplicidade inocente de Aureliano Segundo, que acreditava sem malícia as meias-liberdades da filha, só para vê-la liberada da rigidez da mãe. Na noite em que Fernanda os surpreendeu no cinema, Aureliano Segundo se sentiu angustiado pelo peso da consciência e visitou Meme no quarto onde a trancara Fernanda, confiando em que ela se desafogaria com as confidências que lhe estava devendo. Mas Meme se negou a tudo. Estava tão segura de si mesma, tão aferrada à sua solidão, que Aureliano Segundo teve a impressão de que já não existia nenhum vínculo entre eles, que a camaradagem e a cumplicidade não eram mais do que uma ilusão do passado. Pensou em falar com Mauricio Babilonia, acreditando que a sua autoridade de antigo patrão fá-lo-ia desistir dos seus propósitos, mas Petra Cotes convenceu-o de que aquilo era um assunto de mulher, de modo que ficou flutuando num limbo de indecisão, e mal sustentado pela esperança de que a clausura terminasse com as angústias da filha.
Meme não deu nenhuma amostra de aflição. Pelo contrário, do quarto contíguo Úrsula percebeu o ritmo sossegado do seu sono, a serenidade dos seus afazeres, a ordem das suas refeições e a boa saúde da sua digestão. A única coisa que intrigou Úrsula depois de quase dois meses de castigo foi que Meme não tomasse banho de manhã, como todos faziam, mas às sete da noite. Uma vez pensou em preveni-la contra os escorpiões, mas Meme era tão esquiva com ela, pela convicção de que a tinha denunciado, que preferiu não perturbá-la com impertinências de tataravó. AS borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites, ao sair do banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. “Isto é uma desgraça”, dizia. “Toda a vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar”. Certa noite, enquanto Meme estava no banheiro, Fernanda entrou no seu quarto por acaso e havia tantas borboletas que mal se podia respirar. Apanhou um pano qualquer para espantá-las e seu coração gelou de pavor ao relacionar os banhos noturnos da filha com os cataplasmas de mostarda que rolaram pelo chão. Não esperou por um momento oportuno, como fizera da primeira vez. No dia seguinte, convidou para almoçar o novo alcaide que, como ela, tinha descido do páramo, e pediu a ele que ordenasse uma guarda noturna para o quintal, porque tinha a impressão de que estavam roubando as galinhas. Nessa noite, a guarda abateu Mauricio Babilonia quando levantava as telhas para entrar no banheiro onde Meme o esperava, nua e tremendo de amor, entre os escorpiões e as borboletas, como havia feito quase todas as noites dos últimos meses. Um projétil incrustado na coluna vertebral reduziu-o à cama pelo resto da vida. Morreu de velho na solidão, sem uma queixa, sem um protesto, sem uma só tentativa de deslealdade, atormentado pelas lembranças e pelas borboletas amarelas que não lhe concederam um instante de paz e publicamente repudiado como ladrão de galinhas."

sábado, 14 de julho de 2012

Coisas que se aprende em um dia confuso de BH


Não há no mundo uma cidade com tantas pessoas bonitas
Cruzeirenses pela Catalão, Atleticanos pela Antônio Carlos
O Mineirão da varanda de um hotel é mais majestoso do que se imagina
Se bater o carro, assuma a culpa e seja feliz
Não peça uma pizza média
Não há no mundo uma cidade com tantas pessoas bonitas
Ressalte-se.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Chaos

Hábitos. É tudo o que somos a um observador exterior. Um conjunto de hábitos. A tendência a substituir a racionalidade por hábitos é inerente à própria amplitude racional do homem e sua baixa autoestima, ao encarar organismos como a história ou o tempo. Quanto mais extensa a história da humanidade, quanto mais quantitativos os valores culturais de seu meio, bem como a aceitação destes, menor a capacidade humana. Até que o homem se liberte da segurança, o relógio é um inimigo.

Não entendo por que revolta o homem a idéia de ser produto do meio. É possível que 99% dos seres humanos de um século sejam meros produtos do meio. É possível, portanto, que todas as pessoas que respiram, neste instante, sejam meros produtos do meio. Que não haja vida racional sobre a Terra em toda uma geração. Que a raça humana esteja temporariamente morta.

Só há uma possibilidade de o homem se desvincilhar do meio: um ser de intelectualidade superior, que viva em um ambiente conflituoso o suficiente para que o obrigue a usar a racionalidade em meio à gama de opções, princípios, opiniões, sob efeito da máxima relativização da verdade. Onde a verdade não seja simples, e várias verdades opostas sejam socialmente exigidas. Quanto maior a superioridade racional do ser humano, menor a necessidade de conflitos no ambiente para haver autodeterminação.

O homem aproxima-se de sua humanidade à medida em que se aproxima do caos.


Chaos, vírus do século XXI.

quinta-feira, 1 de março de 2012

The tree of life



The tree of life (“A árvore da vida”) – 2011

Direção: Terrence Malick
Roteiro: Terrence Malick
http://www.youtube.com/watch?v=lkUBECRoAwM




Detesto escrever críticas. Sonho em produzir no Cinema, e não criticar. No entanto, senti-me compelido a escrever sobre este que está entre os melhores filmes dos últimos vinte anos, equiparado aos grandes clássicos. Não vi problema em escrever a respeito de uma obra que me agradou em grande número de aspectos, apontando suas qualidades e me posicionando a respeito da dualidade da crítica em sua recepção.

Agrada-me, primeiramente, a abordagem hipotética em relação à existência ou não de vida superior, sem entrar realmente no mérito. É um filme para céticos e para crentes. Terrence Malick, através de um incrível audiovisual, invadido por frequentes questionamentos humanos, demonstra simultaneamente o quão pequeno é o ser humano perante o tamanho do Universo, tanto em extensão quanto ao tempo. Demonstrando que somos apenas uma página e que, se há vida superior, é provável que ela não nos assista de forma tão detalhada quanto esperamos e, ao mesmo tempo, a grandeza do ser humano, seu poder de produção e compreensão; seu alcance. Costumo dizer que, se há vida superior, um dos poucos momentos em que ela observou a humanidade em seu campo artístico foi no show do Pink Floyd em Pompeii (1972). Acredito que, se há vida superior, outro momento seria a cena no início da crítica.

Fora este aspecto, sobretudo, o diretor aborda as relações humanas. Nossas frequentes apelações a hipóteses superiores são expressões de nossa fraqueza e dúvida. Ao retratar o instituto familiar, o diretor demonstra nossas certezas infantis caindo, e a compreensão suprindo este vazio. Quando somos pequenos, costumamos pensar em nossos pais como donos da verdade, certos do que estão fazendo, quando na verdade são também humanos. Todos somos humanos perdidos, vivendo sem certezas, repletos de fraquezas inevitáveis. O diretor sugere que, ao compreendermos isto, abstraia-mos os erros que cometeram conosco e percebamos as intenções.

Oscilando entre a dor dos pais por perder um filho - e a busca destes por compreender o porquê disso - e a busca de um filho pela compreensão do tratamento de seus pais na infância, o diretor demonstra que frequentemente o ser humano prefere culpar algo hipotético e exigir explicações sobrenaturais a compreender algo material. Também reflete que, ainda que exista uma força superior, o teocentrismo por vezes nos impede de compreender que algumas coisas ainda estão simplesmente sujeitas ao acaso.

Por fim, vejo o desfecho não como uma defesa à visão clássica de vida pós-morte, mas sim como - a partir da compreensão da humanidade, tanto no quesito interno (todas as pessoas que lidam conosco estão repletas de dúvidas, não sabem perfeitamente como agir, assim como nós mesmos), quanto no quesito externo (somos pequenos diante da grandiosidade do universo e do tempo, devemos aceitar que algumas situações são meramente aleatórias; ainda que nos toquem mais em relação às outras pessoas, continuam ínfimas) – o alívio do personagem em compreender que a verdade, apesar de dura, em uma análise distante, não é tão infeliz. Ainda que seja, nos resta o conforto de, dotados de racionalidade, entender as relações físicas e humanas.

Gostaria de esclarecer que, ao meu ver, ao contrário do que muitos pensam, 2012 foi um ano terrível para festivais como o Oscar. Futuramente veremos a premiação como um clássico vexame, como muitas outras vezes já ocorreu na história.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Friends



Terminei o box de Friends e prometi a mim mesmo que darei um tempo da série que me ocupa tanto tempo há tantos anos.

Não precisa ir muito longe pra perceber como Friends é algo especial. Não há nenhuma referência comparável no estilo do seriado, porque é algo que alterou completamente o formato e de uma forma completamente natural. “Seinfeld”, maior referência da área, tem um excelente humor, um tom de casualidade, até certa continuidade. Mas Friends é um seriado além do completo.

A princípio, os próprios atores parecem destinados aos papéis. Muitos deles, como Courteney Cox (que foi indicada inicialmente para Rachel) e Jannifer Aniston (que foi indicada inicialmente para Monica), sentiram por si mesmas a qual personagem eram destinadas e insistiram com a produção para alterarem as personagens nas quais seriam testadas.

David Schwimmer e Matt LeBlanc, segundo os autores, foram escolhidos sem grande necessidade de reflexão, tão bem se adequaram aos papéis em seus testes.

Nos excelentes especiais do box vê-se uma Lisa Kudrow apaixonada por sua personagem, explorando detalhes de forma exaustiva. Lisa passou a ter aulas de violão no decorrer da série e, após aprender alguns poucos acordes (percebam, na maioria das músicas ela usa apenas E, D, A), decidiu que quanto mais aprendesse, menos seria condizente com a Phoebe, como uma atriz que verdadeiramente domina sua personagem, e o resultado foram as canções simples que se tornaram hinos entre os fãs de Friends.

Sou suspeito para falar de Matthew Perry, como grande fã. Matthew sempre fora considerado um grande ator, mas as oportunidades não surgiam a ele adequadamente. Chegou a escrever um piloto de série semelhante ao de Friends, e por isso foi indicado para os testes ao papel de Chandler. David Crane diz que chegaram a duvidar do roteiro, pelos testes de Chandler, porque era um personagem engraçado, e que a princípio seria fácil para um ator, mas nenhum deles dava certo. E Matthew Perry se encaixou perfeitamente para o papel.

Percebam que, além de os próprios esboços dos personagens terem caminhado em direção aos atores, os atores não só deram vida às idéias dos personagens, como terminaram suas construções com situações de suas vidas reais; o nariz de Rachel, a história conturbada entre Matthew Perry e seus pais. Chandler e Phoebe, que a princípio seriam coadjuvantes da série, inevitavelmente foram incorporados como dois entre os seis principais.

David Crane também expressa diversas vezes sua preferência pelas cenas em que os seis atuam juntos no set. Nessas cenas, bem como nos erros de gravação, percebe-se a incrível sintonia entre os atores, e o domínio de cada um em relação aos seus respectivos personagens.

Aprendi com séries como “Friends” ou “Lost” o quão importante é criar personagens que sejam vivos e completos. Lost, com as inúmeras falhas de planejamento do roteiro, sobrevive graças aos personagens envolventes e independentes. Em Friends, os personagens são de tal forma vivos que os fãs são capazes de brincar com eles em situações independentes ao enredo da série; sabemos como eles reagiriam a determinadas situações com as quais nos deparamos na vida, e isso os torna quase nossos amigos imaginários. Foi exatamente esse brilhantismo de cada um que tornou a série tão diferenciada, fugindo dos padrões normais e se tornando quase uma novela de qualidade. Além do humor – nunca deixado de lado -, queríamos saber o que aconteceriam com as diversas situações, cuja continuidade montava um longo e identificável enredo por toda a série, além do constante dinamismo. Nunca deixando o humor de lado, ríamos e sentíamos como um ator-espectador, que não podia tomar parte. Quando Joey e Rachel começam a se relacionar, o fã consegue sentir o que sentem os próprios personagens na série; a vontade de que Rachel e Ross ficassem juntos, mas sempre mantendo em mente os sentimentos puros de Joey e, claro, não conseguindo deixar de lado o fato de adorá-lo também.

O envolvimento, além disto, não era só interior à série e não se prendia somente aos atores. Foram estes atores, grandes amigos, que ajudaram Matthew Perry a superar seu problema com o álcool e remédios. E o envolvimento de Chandler e Monica, do qual muitos fãs reclamam por tirar um pouco da qualidade dos personagens, pela caricaturização e pela frequência de situações muito semelhantes e, de certa forma, enjoativas, parecem ter sido também a percepção dos autores de que, tal era o envolvimento de Matthew Perry com o personagem Chandler, talvez fosse hora de dar ao próprio personagem um tom de superação e felicidade, coincidente com a superação do próprio ator.

Enfim, a série em toda sua complexidade dramática supracitada, acaba por ser importante para os fãs em sua própria vida, confortando-nos de uma forma única. Acho impossível que algum dia eu deixe de rever alguns episódios, ainda que de vez em quando. É como sentir saudades de verdadeiros amigos. Mesmo porque boa parte de meus amigos são também fãs de Friends e de certa forma é um meio que tenho de matar as saudades que tenho deles. Também porque Friends nos ensina a ver a vida como uma grande e divertida piada, e passar por ela encarando seus problemas com bom humor, coragem e otimismo. Também a sermos felizes ainda que convivendo com tais problemas, que às vezes são até necessários.

Sem entrar no mérito qualidade, no mundo do Cinema/séries/musicais/etc, Friends é sem dúvidas algo pelo que sinto, sobretudo, carinho.

Não sei como terminar isso.

“Sure, where?”

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

SSDD

SSDD

Ficou sendo o lema deles, mas Jonesy não conseguia se lembrar de modo algum quem começou a dizer primeiro. O troco é um sufoco, este era dele. Freddy me foda e quase uma dezena de obscenidades mais pitorescas quem inventou foi Beaver. Foi Henry quem lhes ensinou a dizer o que vai em volta vem de volta, coisa de babaquice zen. Henry gostava, mesmo quando eram meninos. Mas SSDD; o que dizer de SSDD? De que cuca fundida tinha saído?
Isso não importava. O que importava era que eles acreditavam na primeira metade dessa coisa quadno formaram um quarteto, na coisa inteira quando formaram um quinteto, e depois na segunda metade dela quando tornaram a formar um quarteto.
Quando só os quatro tornaram a se reunir, os dias ficaram mais sinistros. Havia mais dias de Freddy me foda. Sabiam disso, mas não por quê. Sabiam que alguma coisa estava errada com eles - pelo menos diferente -, mas não o quê. Sabiam que tinham sido apanhados, mas não exatamente como. E tudo isso bem antes das luzes no céu. Antes de McCarthy e Becky Shue.
SSDD: às vezes é só o que a gente diz. E às vezes a gente não crê em outra coisa se não nas trevas. E aí, como é que a gente segue em frente?


1988: até Beaver fica na fossa

Dizer que o casamento de Beaver não deu certo é o mesmo que dizer que o lançamento do ônibus espacial challenger deu um pouco errado. Joe "Beaver" Clarendon e Laurie Sue Kenopensky viveram juntos oito meses e depois tchau, minha garota se mandou, me ajudem a dar a porra da volta por cima.
O "Beav" é basicamente um sujeito feliz, qualquer um da turma vai dizer isso, mas está numa fase negra. Não vê nenhum dos velhos amigos (os que ele considera amigos para valer), a não ser numa ´nica semana em novembro, mês em que se reúnem todo ano, e novembro passado ele e Laurie Sue ainda estavam se segurando. Por um fio, claro, mas ainda se segurando. Agora ele passa um bocado de tempo - demais, ele sabe - nos bares do distrito de Old Port, em Portland. O Porthole, o Seaman's Club e o Free Street Pub. Anda bebendo demais, fumando demais da velha erva, e de manhã quase sempre evita se olhar no espelho do banheiro; os olhos vermelhos se desviam do reflexo e ele pensa: Tenho que parar com as boates. Logo, logo vou ter o mesmo tipo de problema que o Pete teve. Vou pirar de vez.
Parar com as boates, parar com as farras, uma puta idéia, e depois lá está ele de volta, lambe-porre, que se dane. Nesta quinta-feira é o Free Street, e aposto que vai estar com um chopinho na mão, um fuminho no bolso, alguma antiga música instrumental, que lembra um pouco The Ventures, tocando na vitrola automática. Não se lembra direito do nome desta, que foi popular antes do tempo dele. Mesmo assim, conhece; ouve bastante a rádio de música antiga de Portland desde que se divorciou. Música antiga acalma. Uma porção de música nova... Laurie Sue conhecia e gostava de um monte delas, mas Beaver não curte.
O Free Street está praticamente vazio, mais ou menos uma meia dúzia de sujeitos da turma num dos reservados, bebendo cerveja Millers e tirando cartas de um baralho engordurado para ver quem vai pagar cada rodada. O que é esta música instrumento com essas guitarras murmurantes? "Out of Limits"? "Telstar"? Não, tem um sintetizador em "Telstar" que nesta não tem. E quem é que liga para isso? Os outros camaradas estão conversando sobre Jackson Browne, que tocou no Centro Cívico ontem à noite e fez um show duca, na opinião do George Pelsen, que estava lá.
-Vou contar pra vocês uma outra coisa que foi duca - diz George, olhando para eles de um jeito de impressionar. Ergue o queixo saliente, mostrando uma mancha roxa no pescoço. - Sabem o que é isto?
-Um chupão, não é? - Kent Astor pergunta, com certa timidez.
-Você é inteligente pacas - George retruca. - Eu estava parado do lado da porta dos bastidores depois do show, eu e um bando de caras, na esperança de conseguir um autógrafo do Jackson. Ou talvez, não sei, do David Lindley. Ele é legal.
Kent e Sean Robideau concordam que Lindley é legal - não um deus da guitarra, de jeito nenhum (Mark Knopfler, do Dire Straits, é um deus da guitarra; e Angus Young, do AC/DC, e - claro, Clapton), mas mesmo assim legal. Lindley faz um som de ritmo acelerado; tem também um cabelo rasta de impressionar. Até os ombros.
Beaver não entra na conversa. De repente, quer se mandar daqui, deste bar fedido, que não leva a nada, e tomar um pouco de ar fresco. Sabe aonde é que George vai chegar com a história, e é tudo mentira.
O nome dela não é Chantay, vocês não sabem como é que ela se chama, ela passou como vento por vocês como se vocês nem estivessem lá, o que é que vocês iam significar para uma garota como ela, de qualquer modo, só mais um cabeludo classe-operária numa outra cidade classe-operária da Nova Inglaterra, subiu no ônibus da banda e sumiu da vida de vocês. A porra da vidinha desinteressante que vocês levam. Chantays é o nome do grupo que a gente está ouvindo, não Mar-Kets ou Bar-Kays, mas Chantays, é "Pipeline", com o Chantays, e essa coisa no teu pescoço não é um chupão, é um arranhão do aparelho de barbear.
É nisso que pensa, e depois ouve um choro. Não no Free Street, mas na cabeça dele. Um choro que rolou faz tempo. Entra bem na cabeça da gente, esse choro, entra como cacos de vidro, e ah! porra, Freddy, me foda, alguém faça ele parar de chorar. Fui eu quem fez ele parar, Beaver pensa. Fui eu. Fui eu quem fez ele parar. Eu o abracei e cantei para ele.
Enquanto isso, George Pensen está contando para eles que a porta dos bastidores finalmente se abriu, mas quem saiu não foi Jackson Browne, muito menos David Lindley; foi o trio das gatinhas cantoras, uma chamada Randi, uma chamada Susi e uma chamada Chantay. Gostosinhas, ah, tão altas e apetitosas.
-Cara - diz Sean, revirando os olhos. É um sujeito gorducho cujas aventuras sexuais consistem em de vez em quando fazer umas excursões até Boston, onde fica observando as garotas do Foxy Lady fazer strip-tease e as garçonetes do Hooters. - Ô, cara, a danada da Chantay. - Faz um gesto de tocar punheta. Nisso, pelo menos, pensa o Beav, ele parece um profissional.
-Aí comecei a papear com elas... com ela, praticamente, a Chantay, e perguntei pra ela se ela não queria conhecer um pouco da vida noturna de Portland. Então a gente...
O beav tira um palito do bolso e o enfia na boca, saindo de sintonia. De repente, tudo o que ele quer é o palito. Não a cerveja na frente dele, não o fuminho no bolso, decerto não o papo-furado do George Pensen de como ele e a mítica Chantay subiram na traseira da caminhonete dele, bendita seja aquela coberta de acampamento, quando o astral do George rola não teima que ele não dá bola.
É tudo uma canseira, Beaver pensa, e de uma hora para a outra fica desesperadamente deprimido, mais deprimido do que quando Laurie Sue fez as malas e voltou para a casa da mãe. Isso não é do feitio dele, e de repente só quer se mandar daqui, encher os pulmões do ar fresco e salgado da beira-mar e achar um telefone. Quer fazer isso e então ligar para JOnesy e para Henry, ou um ou ouro, dá na mesma; quer perguntar: Escuta, cara, o que é que está acontecendo, e ouvir de um deles a resposta: Ah, vocês sabe, Beav, SSDD. Sem animação, sem diversão.
Ele se levanta.
-Ô, cara - George diz. Beaver estudou com George no Westbrook Junior College, e naquela época parecia bastante cuca-fresca, mas isso foi muitas cervejas atrás - Aonde é que está indo?
-Mijar - Beaver responde, rolando o palito de um canto da boca para o outro.
-Bom, então vai depressa e senta esse rabo aí porque eu estou chegando na melhor parte - George diz, e Beaver pensa: calcinhas sem fundilhos. Puxa, rapaz, hoje a antiga e esquisita vibração está forte, quem sabe é o barômetro ou sei lá eu. Baixando a voz, George diz: - Quando ergui a saia dela...
-Jà sei, estava usando calcinhas sem fundilhos - diz Beaver. Registra o olhar de surpresa, quase choque, nos olhos do George, mas não dá atenção. - Claro que quero ouvir essa parte.
Afasta-se, anda na direção do banheiro dos homens, que tem aquele cheiro róseo-amarelado de urina e desinfetante, passa por ele, passa pelo das mulheres, passa pela porta em que está escrito ESCRITÓRIO e sai na viela. O céu acima dele está cinzento e chuvoso, mas o ar está bom. Tão bom. Ele o respira muito fundo e torna a pensar. Sem animação, sem diversão. Dá um sorrisinho.
Anda por uns dez minutos, mastigando palitos e desanuviando a cabeça. Num determinado ponto, não consegue se lembrar exatamente quando, joga fura o fumo que estava no bolso. E depois liga para Henry do telefone público na loja Joe's Smoke, perto da Monument Square. Aguarda a secretária eletrônica - Henry ainda está na escola - mas na verdade Henry está em casa e tira o fone do gancho na segunda chamada.
-Como vai? - Beaver pergunta.
-Ah, você sabe - Henry responde. - A mesma merda, um outro dia. E você, Beav?
Beav fecha os olhos. Por um momento, tudo está bem de novo; tão bem quanto dá para estar neste mundo fodido, de qualquer modo.
-Quase na mesma, companheiro - responde. - Mais ou menos na mesma.


---------------------------------------------------------

Muito se perde na tradução, não tanto por incompetência do tradutor quanto por incompatibilidade dos idiomas, mas enfim.

Trecho de "O apanhador de sonhos" - Stephen King.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

A história de Remedios, a bela


“(...)
Remedios, a bela, foi a única que permaneceu imune à peste da companhia bananeira. Estacou numa adolescência magnífica, cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia e à desconfiança, feliz num mundo próprio de realidades simples. Não entendia por que as mulheres complicavam a vida com camisetas e anáguas, de modo que coseu uma bata de aniagem que enfiava simplesmente pela cabeça e resolvia sem mais trâmites o problema de se vestir, sem desmanchar a impressão de estar nua, que no seu modo de entender as coisas era a única maneira decente de se estar em casa. Amolaram-na tanto para que cortasse o cabelo cascateante que já batia na barriga da perna e para que fizesse um coque preso com pentes e tranças com laços coloridos que simplesmente raspou a cabeça e fez perucas para os santos. O assombroso do seu instinto simplificador era que quanto mais se desembaraçava da moda procurando a comodidade e quanto mais passava por cima dos convencionalismos em obediência à espontaneidade, mais perturbadora ficava a sua beleza inacreditável e mais provocante o seu comportamento para com os homens. Quando os filhos do Coronel Aureliano Buendía estiveram pela primeira ez em Macondo, Úrsula se lembrou de que levavam nas veias o mesmo sangue da bisneta e estremeceu com o horror esquecido. “Abra bem os olhos”, fez tão pouco-caso da advertência que se vestiu de homem e se espojou na areia para subir no pau-de-sebo e esteve a ponto de ocasionar uma tragédia entre os dezessete primos transtornados pelo insuportável espetáculo. Era por isso que nenhum deles dormia em casa quando visitavam o povoado, e os quatro que tinham ficado viviam às expensas de Úrsula em quartos alugados. Entretando, Remedios, a bela, teria morrido de rir se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana. Cada vez que aparecia na sala de jantar, contrariando as ordens de Úrsula, causava um pânico de exasperação entre os forasteiros. Era evidente demais que estava interiamente nua sob a bata grosseira e ninguém podia entender que o seu crânio pelado e perfeito não fosse um desafio e que não fosse uma criminosa provocação o descaso com que descobria as coxas para aliviar o calor e o prazer com que chupava os dedos depois de comer com as mãos. O que nenhum membro da família jamais soube foi que os forasteiros não tardaram a perceber que Remedios, a bela, desprendia um hálito perturbador, uma brisa de tormento que continuava perceptível várias horas depois de ela ter passado. Homens experimentados nos transtornos do amor, vividos no mundo inteiro, afirmavam não ter padecido nunca de uma ansiedade semelhante à que produzia o perfume natural de Remedios, a bela. Na varanda das begônias, na sala de visitas, em qualquer lugar da casa, se podia assinalar o lugar exato onde estivera e o tempo transcorrido desde que deixara de estar. Era um rastro definido, inconfundível, que ninguém da casa podia distinguir porque estava incorporado há muito tempo aos cheiros cotidianos, mas que os forasteiros identificavam imediatamente. Por isso eram eles os únicos que entendiam que o jovem comandante da guarda tivesse morrido de amor e que um cavaleiro vindo de outras terras tivesse caído em desespero. Inconsciente da aura inquietante em que se movimentava, do insuportável estado de íntima calamidade que provocava à sua passagem, Remedios, a bela, tratava os homens sem a menor malícia e acabava de transtorná-los com as suas inocentes complacências. Quando Úrsula conseguiu impor a ordem de que comesse com Amaranta na cozinha, para que os forasteiros não a vissem, ela se sentiu mais cômoda, porque afinal de contas ficava a salvo de qualquer disciplina. Realmente, tanto fazia comer em qualquer lugar, e não em horas fixas, mas de acordo com as alternativas do seu apetite. Às vezes se levantava para almoçar às três da madrugada, dormia o dia inteiro, e passava vários meses com os horários trocados, até que algum incidente casual voltava a pô-la em ordem. Quando as coisas andavam melhor, levantava-se às onze da manhã e se trancava durante duas horas completamente nua no banheiro, matando escorpiões enquanto espantav o denso e prolongado sono. Em seguida, jogava água em si mesma tirando-a da caixa com uma cuia. Era um ato tão prolongado, tão meticuloso, tão rico de situações serimoniais, que quem não a conhecesse bem poderia pensar que estava entregue a a uma merecida adoração do seu próprio corpo. Para ela, entretanto, aquele rito solitário carecia de qualquer sensualidade, e era simplesmente uma maneira de matar o tempo enquanto não sentia fome. Um dia, quando começava a se banhar, um forasteiro levantou uma telha do teto e ficou sem respiração diante do tremendo espetáculo de sua nudez. Ela viu os olhos aflitos através das telhas quebradas e não teve nenhuma reação de vergonha, mas sim de preocupação.
-Cuidado – exclamou. – Você vai cair.
-Só quero ver você – murmurou o forasteiro.
-Ah, bem, - ela disse. – Mas tenha cuidado que essas telhas estão podres.

O rosto do forasteiro tinha uma dolorosa expressão de espanto e parecia lutar surdamente contra os seus impulsos primários, para não dissipar a miragem. Remedios, a bela, pensou que ele sofria de medo de que as telhas quebrassem e se banhou mais depressa do que de costume, para que o homem não continuasse em perigo. Enquanto se jogava água, disse a ele que era um problema que o teto estivesse naquele estado, pois ela acreditava que a camada de folhas apodrecidas pela chuva era o que enchia o banheiro de escorpiões. O forasteiro confundiu aquela conversa com uma forma de dissimular a complacência, de modo que quando ela começou a se ensaboar cedeu à tentação de dar um passo adiante.
-Deixe-me ensaboá-la – murmurou
-Agradeço sua boa intenção – disse ela. – mas posso perfeitamente fazê-lo sozinha com as minhas duas mãos.
-Só as costas – suplicou o forasteiro.
-Seria um desperdícios – ela disse. – Nunca se viu ninguém ensaboar as costas.

Depois, enquanto se enxugava, o forasteiro implorou com os olhos cheios de lágrimas que se casasse com ele. Ela lhe respondeu sinceramente que nunca se casaria com um homem tão bobo que perdia quase uma hora, e até ficava sem almoçar, só para ver uma mulher tomar banho. Por fim, quando vestiu a bata, o homem não pôde suportar a comprovação de que realmente não usava nada embaixo, como todo mundo suspeitava, e se sentiu marcado para sempre com o ferro ardente daquele segredo. Então arrancou mais duas telhas para se atirar no interior do banheiro.
-É muito alto! – ela o preveniu assustada. – Você vai se matar!

As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na sua pele o sufocante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo ambarino impregnado daquele perfume secreto, e então compreenderam que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da morte, até a poeira dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente de horror com os outros dois homens que haviam morrido por Remedios, a bela. Faltava ainda uma vítima para que os forasteiros e muitos dos antigos habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía não exalava o sopro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plantações. Para o povo de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis avenidas ladeadas de bananeiras, onde o silêncio parecia trazido de outra parte, ainda sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. Às vezes não se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que entretanto se tornava perfeitamente compreensível no outro extremo da plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de risadas e sobressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do passeio como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que Úrsula não teve coragem de privar Remedios, a bela, da divesão e lhe permitiu ir numa tarde, desde que pusesse um chapéu e uma roupa adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas valas se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, ameaçados por um perigo invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar. Remedios, a bela, e suas espantadas amigas conseguiram se refugiar numa casa próxima quando estavam já para serem assaltadas por um tropel de machos ferozes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos, cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marcas de casta, selo de invulnerabilidade. Remedios, a bela, não contou a ninguém que um dos homens, aproveitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre com uma mão que mias parecia uma garra de águia aferrada aos bordos de um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento instantâneo e vira os olhos desconsolados que ficaram impressos no seu coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da sua audácia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e uma multidão de forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue.

A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irresfutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes doq eu você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa”. No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que, neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tarde esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios,a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continua acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deus-dará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
-Você está se sentindo mal? – perguntou a ela.
Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade.
-Pelo contrário – disse – nunca me senti tão bem.

Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amarante sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não caiur, no momento em que Remedios, a bela, comaçava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis a mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar.
(...)”


------------------------------------------------

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Overdose

O homem fechou a porta atrás de si com a cautela que se toca um recém nascido, aparentando se esconder de algo. Já na calçada, sentindo o vento percorrer seu corpo, percebeu que sua blusa ainda estava em sua mão. Foi naquela noite de frio atípica, em meio ao verão, em que o homem se pôs a caminhar pela cidade enganosamente grande em que morava, repleta de costumes interioranos e cuja população se isolava pelos subúrbios, restando ao centro o silêncio da madrugada de dias úteis. Entre as luzes dos postes e a da lua, jaziam cômodos apagados e mortos.

Levou suas duas mãos aos bolsos de sua blusa, em parte pelo frio, em parte para assumir um tom ameaçador, ao avistar, à distância, uma pessoa vir em sua direção na mesma calçada em que caminhava. Não conseguia identificar suas roupas ou sua expressão facial, mas era uma rua perigosa. Abaixou a cabeça para passar ao lado de uma pessoa que, na aproximação, era completamente inofensiva, e acabou por reparar nos jeans apertados e desbotados que usava. Eram como sonhos antigos e esquecidos. As desbotadas esperanças. Lembranças do que era vivo, que se apagavam no fraco e transformado preto. Seu pontudo e já disforme tênis branco, que escolhera a dedo anos atrás, quando tudo era uma oportunidade de expressão. Toda aquela vestimenta calada, envolvendo um corpo já mudo. Uma barreira prendendo pensamentos em ebulição e sentimentos hibernantes.

Encaminhava-se à única rua que poderia encontrar-se viva àquela hora. Ergueu o pulso esquerdo e percebeu que havia esquecido seu relógio em casa. “Me dá uma moeda, senhor”. Enquanto tirava uma moeda da carteira, observou que a lanchonete que frequentava a essa hora estava aberta. “O homem que acredita em destino é o mesmo que aceita esmolas”, pensou.

Não possuía emprego fixo, suas finanças dinâmicas se encontravam em uma semana difícil. Entrou na lanchonete conferindo sua carteira, e não tinha dinheiro para lanchar. Fez seu pedido, sentou-se na mesma mesa de sempre. Os garçons não sussurraram sobre ele, como faziam com os clientes costumeiros. Ali, de cabeça baixa, imóvel, ficou até que seu lanche chegasse. Permaneceu imóvel à chegada do lanche. Observava-o à sua frente, sem fome. Atentava-se às conversas vazias ao seu redor, pelo simples prazer de ouvir vozes. Pareciam falar outro idioma, tamanho seu desinteresse pelo conteúdo, tamanha sua concentração nas formas. O lanche maltratado, disforme, baseado unicamente em quantidade, o ambiente semi-limpo, as vozes, as vozes, sorrisos, gestos. Vieram-lhe as náuseas. Focava-se em seu lanche como um doente, sem tocá-lo, aparentemente distante. Mas estava ali, completamente presente, de uma forma que não podia evitar. Fechou seus olhos, sentindo tudo girar, até chegar ao limite daquela situação repugnante. Até que toda a vibração se transformasse em equilíbrio. E as palavras fizessem sentido. Os discursos tomassem forma de conteúdo, ainda que desprezível. E o desinteresse parecesse novamente conveniente. Até que o sonho se acabasse, e a vida ordinária fosse novamente banal. Até que o preço do inatingível fosse tolerável. Até que pudesse abrir os olhos e equilibrar-se em seus próprios pés, que pudesse andar novamente naquelas roupas empoeiradas, velhas, que guardavam algo que não queria perder. Que aquele corpo oco pudesse sentir novamente o impulso de buscar o que o instinto previa.

“A conta, por favor”.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

2012




Alguém está muito fodido amanhã. São três horas e eu deveria estar dormindo, mas simplesmente não consigo.
Terminei 2011 e comecei 2012 com uma obsessão: começar a lutar boxe.
Acabo de assistir ao "Raging Bull", um dos primeiros filmes que vi de meu diretor favorito (Scorsese), e comecei a pensar no porquê de tamanha obsessão.
A época da gravação do filme é o ápice do vício do diretor em cocaína. Ele foi convencido pelo De Niro a pôr o vício de lado e fazer o filme, que pensava ele ser o último de sua carreira. Esta carregada e pessimista biografia me explicou perfeitamente o por que da minha obsessão pelo esporte.
A última luta de boxe que vi, que não fosse em preto e branco, foi a do Mike Tyson contra o Evander Holyfield, da clássica e infeliz mordida de orelha. Lembro de sentir neste dia exatamente o que era o patético.
Deixei de acompanhar o esporte até conhecer Cassius Clay, o famoso Muhammad Alli (que detestaria ser chamado por mim pelo seu nome de batismo, anterior à sua conversão ao islamismo). Pessoas inteligentes, carregadas e que não conseguem comunicar tudo o que existem dentro delas me despertam um interesse fora do comum; enquanto lia sobre sua vida, percebia aos poucos o ídolo, tantas vezes aplaudido e tantas vezes vaiado, gigante dentro dos ringues e por sua coragem política, percebia o quão genial era esse cara que exigia convívio para que fosse compreendido. É uma frustração, mas que me deixa de resto o ânimo de conhecer muitas pessoas que com ele se parecem. Via-me espelhado naquele cara, toda uma agressividade que enclausurava sentimentos puros.
O Scorsese poderia nunca ter feito esse filme, morrido cheirando pó, seria consagrado como gênio, o que aconteceu com muitos que pararam cedo. Antes de "Raging Bull", já havia feito o que é pra mim o maior filme da história ("Taxi Driver") e outros grandes filmes como "New York, New York" ou "Mean Streets". Mas ele escolheu continuar e superar. Acho que gosto de Boxe pelos mesmos motivos destes caras que pra mim são heróis (De Niro, Scorsese), caras que não são tão diferentes dos grandes boxeadores. A técnica do boxe é importante, mas os grandes boxeadores apanharam muito mais da vida, aprenderam o boxe nas esquinas, em casa com suas famílias, na dureza teimosa e imaleável de suas ideologias.
2011 foi um ano de sonhos pra mim. Fodi muita coisa por besteira, bebi mais do que deveria, pensei menos do que poderia, agi menos do que era necessário e, principalmente, abandonei a espontaneidade que sempre guardei comigo.
A vida nunca vai ser estável, mas nunca deixará de ser incrível. Nunca deixe de confiar que ela possa te surpreender, sempre lute por ela.
Feliz 2012 a todos vocês, não que eu não ache banal querer revigorar o espírito em mudanças de anos, mas é algo que nunca é dispensável, indiferente à data.

http://www.youtube.com/watch?v=5wwItkoapuA