sábado, 24 de dezembro de 2011

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

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Em quase vinte anos de guerra, o Coronel Aureliano Buendía tinha estado muitas vezes em casa, mas o estado de urgência em que chegava sempre, o aparato militar que o acompanhava a toda parte, a aura de lenda que dourava a sua presença e à qual nem a própria Úrsula foi insensível, terminaram por convertê-lo num estranho. Na última vez que esteve em Macondo e ocupou uma casa com as suas três concubinas, não foi visto na sua a não ser duas ou três vezes, quando teve tempo para aceitar convites para comer. Remedios, a bela, e os gêmeos, nascidos em plena guerra, mal o conheciam. Amaranta não conseguia conciliar a imagem do irmão que passara a adolescência fabricando peixinhos de ouro com a do guerreiro mítico que havia interposto entre ele e o resto da humanidade uma distância de três metros. Mas quando se soube da proximidade do armistício e se pensou que ele regressava outra vez convertido num ser humano, resgatado por fim para o coração dos seus, os afetos familiares adormecidos po tanto tempo renasceram com mais força do que nunca.
- Finalmente - disse Úrsula - vamos ter outra vez um homem em casa.
Amaranta foi a primeira a suspeitar de que o haviam perdido para sempre. Uma semana antes do armistício, quando ele entrou em casa em escolta, precedido por dois ordenanças descalços que depositaram no corredor os arreios da mula e o baú dos versos, saldo único da sua antiga bagagem imperial, ela o viu passar em frente ao quarto de costura e o chamou. O Coronel Aureliano Buendía pareceu ter dificuldade em reconhecê-la.
- Sou Amaranta - disse ela de bom humor, feliz pela sua volta, e lhe mostrou a mão com a atadura negra. - Olhe.
O Coronel Aureliano Buendía dirigiu-lhe o mesmo sorriso da primeira vez em que a viu com a atadura, na remota manhã em que voltou a Macondo sentenciado à morte.
- Que horrror - disse - como o tempo passa!
O exército regular teve que proteger a casa. Ele chegara escarnecido, cuspido, acusado de ter endurecido a guerra apenas para vendê-la mais cara. Tremia de febre e de frio e tinha outra vez as axilas cheias de furúnculos. Seis meses antes, quando ouviu falar do armistício, Úrsula abriu e varreu a alcova nupcial, e queimou mirra nos cantos, pensando que ele regressaria disposto a envelhecer devagar entre as mofadas bonecas de Remedios. Mas na verdade, nos dois últimos anos ele pagara as suas quotas finais à vida, inclusive a do envelhecimento. Ao passar diante da oficina de ourivesaria, que Úrsula tinha preparado com especial cuidado, nem sequer percebeu que as chaves estavam postas no cadeado. Não notou os minúsculos e profundos estragos que o tempo fizera na casa e que depois de uma ausência tão prolongada teriam parecido um desastre a qualquer homem que conservasse vivas as suas recordações. Não o magoou a cal descascada nas paredes, nem os sujos algodões de teia de aranha nos cantos, nem a poeira das begônias, nem os túneis do cupim nas vigas, nem o musgo das dobradiças, nem nenhuma das armadilhas insidiosas que lhe estendia a saudade. Sentou-se na varanda, embrulhado na manta e sem tirar as botas, como que esperando apenas que estiasse, e permaneceu a tarde inteira vendo a chuva cair sobre as begônias. Úrsula compreendeu então que ñao o teria em casa por muito tempo. "Se não é a guerra", pensou, "só pode ser a morte". Foi uma suposição tão nítida, tão convincente, que ela a identificou como um presságio.
Nessa noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo partiu o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcadio Segundo, partiu o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, e sim um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos tinham concebido desde que tomaram consciência de que eram iguais foi repetido em honra do recém-chegado. Mas o Coronel Aureliano Buendía não percebeu. Parecia tão alheio a tudo que nem sequer prestou atenção a Remedios, a bela, que passou despida para o quarto. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar a sua abstração.
- Se você vai embora outra vez - disse-lhe no meio do jantar - pelo menos trate de se lembrar de como éramos esta noite.
Então o Coronel Aureliano Buendía se deu conta, sem espanto, de que Úrsula era o único ser humano que tinha conseguido desentranhar a sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhá-la na cara, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele tivera o presságio de que uma panela de sopa fervendo ia cair da mesa, e a encontrou espedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, os calos, as úlceras e as cicatrizes que deixara nela mais de meio século de vida cotidiana e comprovou que estes estragos não provocavam nele sequer um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para procurar no seu coração o lugar onde se haviam apodrecido os afetos e não conseguiu encontrá-lo. Em outra época, pelo menos, experimentava um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia na sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentira os seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso tinha sido arrasado pela guerra. A própria Remedios, sua esposa, era naquele momento a imagem apagada de alguém que podia ter sido sua filha. As inumeráveis mulheres que conhecera no deserto do amor, e que espalharam a sua semente em todo o litoral, não tinham deixado nenhum rasto nos seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto na escuridão e ia embora antes da alvorada, e no dia seguinte era apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que sentiu pelo seu irmão José Arcadio quando ambos eram crianças, e não estava baseado no amor, mas na cumplicidade.
- Perdão - desculpou-se diante do pedido de Úrsula - É que esta guerra acabou com tudo.
Nos dias subsequentes ocupou-se em destruir todas as marcas da sua passagem pelo mundo. Reduziu a oficina de ourivesaria até deixar apenas os objetos impessoais, deu as suas roupas aos ordenanças e enterrou as suas armas no quintal com o mesmo sentido de penitência com que o seu pai havia enterrado a lança que dera morte a Prudencio Aguilar. Conservou somente uma pistola, e com uma bala apenas. Úrsula não interveio. A única vez que se meteu foi quando ele estava se preparadno para destruir o retrato da Remedios que se conservava na sala, iluminado por uma lâmpada eterna. "Esse retrato deixou de pertencer a você há muito tempo", disse a ele. "É uma relíquia de família". Na véspera do armistício, quando já não havia em casa um só objeto que permitisse recordá-lo, levou à padaria da casa o baú com os versos, no momento em que Santa Sofía de la Piedad se preparava para acender o forno.
- Acenda com isto - disse a ela, entregando-lhe o primeiro rolo de papéis amarelados. - Arde melhor, porque são coisas muito antigas.
Santa Sofía de la Piedad, a silenciosa, a condescendente, a que nunca contrariara nem os próprios filhos, teve a impressão de que aquele era um ato proibido.
- São papéis importantes - disse.
- Nada disso - disse o coronel. - São coisas que uma pessoa escreve para si mesma.
- Então - ela disse - queime o senhor mesmo, coronel.
Não apenas o fez, mas espedaçou também o baú com uma machadinha e jogou os cavacos no fogo. Horas antes, Pilar Ternera o visitara. Depois de tantos anos sem vê-la, o Coronel Aureliano Buendía se assombrou de quanto havia envelhecido e engordado, e de quanto havia perdido o esplendor do seu riso; mas também se assombrou da profundidade que havia atingido na leitura das cartas. "Cuidado com a boca", disse ela, e ele se perguntou se da outra vez em que dissera, no apogeu da glória, não havia sido uma visão surpreendentemente antecipada do seu destino. Pouco depois, quando o seu médico pessoal acabou de lhe extirpar os furúnculos, ele pergunto sem demonstrar interesse particular qual era o lugar exato do coração. O médico o auscultou e pintou-lhe em seguida um círculo no peito com um algodão sujo de iodo.
A terça-feira do armistício amanheceu fresca e chuvosa. O Coronel Aureliano Buendía apareceu na cozinha antes das cinco e tomou o seu café sem açúcar habitual. "Num dia como este você veio ao mundo", Úrsula disse a ele. "Todos se assustaram com os seus olhos abertos". Ele não lhe prestou atenção, porque estava alerta aos preparos da tropa, aos toques de corneta e às vozes de comando que estragavam a alvorada. Ainda que depois de tantos anos de guerra estes ruídos lhe devessem parecer familiares, desta vez sentiu o mesmo desalento nos joelhos, e o mesmo arrepio da pele que tinha sentido na juventude, em presença de uma mulher nua. Pensou confusamente, enfim capturado numa armadilha da saudade, que talvez se tivesse se casado com ela teria sido um homem sem guerra e sem glória, um artesão sem nome, um animal feliz. Esse estremecimento tardio, que não figurava nas suas previsões, amargou-lhe o café da manhã. às sete horas, quando o Coronel Gerineldo Márquez foi procurá-lo em companhia de um grupo de oficiais rebeldes, encontrou-o mais taciturno do que nunca, mais pensativo e solitário. Úrsula tratou de jogar-lhe sobre os ombros uma manta nova. "O que é que o governo vai pensar", disse a ele. "Vão imaginar que você se rendeu porque já não tinha nem com que comprar uma manta". Mas ele não a aceitou. Já na porta, vendo que a chuva continuava, deixou que lhe pusessem um velho chapéu de feltro de José Arcadio Buendía.
- Aureliano - Úrsula disse a ele então - prometa-me que se você encontrar por aí com a hora difícil, você vai pensar na sua mãe.
Ele lhe deu um sorriso distante, levantou a mão com todos os dedos estendidos, e sem dizer uma palavra abandonou a casa e enfrentou os gritos, vitupérios e balsfêmias que haveriam de persegui--lo até a saída do povoado. Úrsula colocou a tranca no portão, decidida a não tirá-la durante o resto da vida. "Nós vamos apodrecer aqui dentro", pensou. "Nós vamos nos transformar em cinza nesta casa sem homens, mas não vamos dar a este povo miserável o gsoto de nos ver chorar". Passou a manhã inteira procurando uma lembrança do filho nos cantos mais escondidos e não conseguiu encontrar.
O ato se realizou a vinte quilômetros de Macondo, à sombra de uma paineira gigantesca, em torno da qual se haveria de fundar mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e os do partido e a comissão rebelde que entregou as armas foram recebidos por um buliçoso grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam uma revoada de pombas assustasdas pela chuva. O Coronel Aureliano Buendía chegou numa mula enlameada. Estava barbado, mais atormentado pela dor dos furúnculos que pelo imenso fracasso dos seus sonhos, pois tinha chegado ao fim de qualquer esperança, além da glória e da saudade da glória. De acordo com o determinado por ele mesmo, não houve música, nem foguetes, nem sinos de júbilo, nem placas comemorativas, nem nenhuma outra manifestação que pudesse alterar o caráter triste do armistício. Um fotógrafo ambulante, que tirou o único retrato seu que poderia ser conservado, foi obrigado a destruir o filme sem o revelar.
O ato durou apenas o tempo indispensável para que se pusessem as assinaturas. Ao redor da rústica mesa colocada no centro de uma remendada barraca de circo onde sentaram os delegados, estavam os últimos oficiais que permaneceram fiéis ao Coronel Aureliano Buendía. Antes de recolher as assinaturas, o delegado pessoal do Presidente da República tentou ler em voz alta a ata da rendição, mas o Coronel Aureliano Buendía se opôs. "Não vamos perder tempo com formalidades", disse, e se dispôs a assinar os papéis sem os ler. Um dos oficiais, então, rompeu o silêncio soporífero da tenda.
- Coronel - disse - faça-nos o favor de não ser o primeiro a assinar.
O coronel Aureliano Buendía concedeu. Quando o documento deu a volta completa à mesa, em meio a um silêncio tão nítido que seria possível decifrar as assinaturas pelo puro floreio da pena no papel, o primeiro lugar ainda estava em branco. O Coronel Aureliano Buendía se dispôs a ocupá-lo.
- Coronel - disse então outro dos seus oficiais - o senhor ainda tem tempo para ficar bem.
Sem se perturbar, o Coronel Aureliano Buendía assinou a primeira cópia. Ainda não tinha acabado de assinar a última quando apareceu na porta da tenda um coronel rebelde, trazendo pelo cabresto uma mula carregada com dois baús. Apesar da sua extrema juventude, tinha um aspecto árido e uma expressão paciente. Era o tesoureiro da revolução na circunscrição de Macondo. Fizera uma penosa viagem de seis dias, arrastando a mula morta de fome, para chegar em tempo ao armistício. Com uma calma exasperante descarregou os baús, abriu-os, e foi colocando na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência daquela fortuna. Na desordem do ano anterior, quando o poder central se partiu em pedaços e a revolução degenerou numa sangrenta rivalidade de caudilhos, era impossível determinar qualquer responsabilidade. O ouro da rebelião, fundido em blocos que foram logo cobertos de barro cozido, ficou fora de qualquer controle. O Coronel Aureliano Buendía fez com que se incluíssem as setenta e duas barras de ouro no inventário da rendição, e fechou o ato sem permitir discursos. O esquálido adolescente permaneceu diante dele, olhando-o nos olhos com os seus serenos olhos cor de caramelo.
- Alguma coisa mais? - perguntou-lhe o Coronel Aureliano Buendía.
O jovem coronel trincou os dentes.
- O recibo - disse.
O Coronel Aureliano Buendía estendeu-lhe um, feito do seu próprio punho e letra. Em seguida, tomou um copo de limonada e comeu um pedaço de biscoito que as noviças serviram, e se retirou para uma tenda de campanha que lhe haviam preparado para quando quisesse descansar. Ali tirou a camisa, sentou-se na beira do catre e, às três e quinze da tarde, desferiu um tiro de pistola no círculo de iodo que o seu médico particular lhe pintara no peito. A essa hora, em Macondo, Úrsula destampou a panela do leite no fogão, estranhando que demorasse tanto a ferver, e encontrou-a cheia de vermes.
- Mataram Aureliano! - exclamou.
Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morreu. "Mataram-no à traição", precisou Úrsula, "e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos". Ao anoitecer viu através das lágrimas os rápidos e luminosos discos alaranjados que cruzaram o céu como uma exalação, e pensou que era um sinal da morte. Estava ainda debaixo do castanheiro, soluçando nos joelhos do marido, quando trouxeram o Coronel Aureliano Buendía embrulhado na manta dura de sangue seco e com os olhos abertos de raiva.
Estava fora de perigo. O projétil seguira uma trajetória tão desimpedida que o médico lhe enfiou um cordão molhado de iodo pelo peito e tirou-o pelas costas. "Esta é a minha obra-prima", disse a ele satisfeito. "Era o único ponto por onde podia passar uma bala sem atingir nenhum centro vital". O coronel Aureliano Buendía se viu rodeado de noviças misericordiosas que entoavam salmos desesperados pelo eterno descanso da sua alma, e então se arrependeu de não ter dado o tiro no céu da boca como tinha previsto, só para enganar o prognóstico de Pilar Ternera.
- Se eu ainda tivesse autoridade - disse ao médico - mandava fuzilar o senhor sem julgamento. Não por me ter salvo a vida, mas por me fazer cair no ridículo.
O fracasso da morte lhe devolveu em poucas horas o prestígio perdido. Os mesmos que inventaram a lorota de que vendera a guerra por um aposento cujas paredes estavam construídas com tijolos de ouro definiram a tentativa de suicídio como um ato de honra e o proclamaram mártir. Em seguida, quando recusou a Ordem do Mérito que o Presidente da República lhe outorgou, até os seus rivais mais encarniçados desfliaram no seu quarto, pedindo que desconhecesse os termos do armistício e promovesse uma nova guerra. A casa se encheu de presentes de solidariedade. Tardiamente impressionado com o apoio maciço dos seus antigos companheiros de armas, o Coronel Aureliano Buendía não descartou a possibilidade de satisfazê-los. Pelo contrário, em dado momento pareceu tão entusiasmado com a idéia de uma nova guerra que o Coronel Gerineldo Márquez pensou que ele só esperava um pretexto para proclamá-la. O pretexto se ofereceu, efetivamente, quando o Presidente da República se negou a conceder as pensões de guerra aos antigos combatentes, liberais ou conservadores, enquanto cada processo não fosse revisto por uma comissão especial e a lei das concessões aprovada pelo Congresso. "Isto é uma confusão", trovejou o Coronel Aureliano Buendía. "Vão morrer de velhice esperando o correio". Abandonou pela primeira vez a cadeira de balanço que Úrsula comprara para a sua convalescença e, andando de um lado para o outro da alcova, ditou uma mensagem taxativa para o Presidente da República. Nesse telegrama, que nunca foi publicado, denunciava a primeira violação do Tratado de Neerlândia e ameaçava proclamar a guerra de morte se a concessão das pensões não fosse resolvida ao fim de quinze dias. Era tão justa a sua atitude que permitia contar, inclusive, com a adesão dos antigos combatentes conservadores. Mas a única resposta do governo foi o reforço da guarda militar que colocara na porta da sua casa com o pretexto de protegê-la e a proibição de toda e qualquer espécie de visitas. Medidas similares foram adotadas em todo o país, com outros caudilhos de cuidado. Foi uma operação tão oportuna, drástica e eficaz que dois meses depois do armistício, quando o Coronel Aureliano Buendía teve alta, os seus instigadores mais decididos já estavam mortos ou expatriados ou haviam sido assimilados para sempre pela administração pública.
O Coronel Aureliano Buendía abandonou o quarto em dezembro, e bastou dar uma olhada na varanda para não voltar a pensar na guerra. Com uma vitalidade que parecia impossível na sua idade, Úrsula voltou a rejuvenscer a casa. "Agora vão ver quem sou eu", disse quandos oube que o filho viveria. "Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo o mundo, que esta casa de loucos". Mandou-a lavar e pintar, trocou os móveis, restaurou o jardim e semeou flores novas, e abriua s portas e janelas para que entrasse até os quartos a deslumbrante claridade do verão. Decretou o fim dos numerosos lutos superpostos e ela mesma mudou os velhos trajes rigorosos por roupas juvenis. A música da pianola voltou a alegrar a casa. Ao ouvi-la, Amaranta se lembrou de Pietro Crespi, da sua gardênia crepuscular e do seu cheiro de lavanda, e no fundo do seu murcho coração floresceu um rancor limpo, purificado pelo tempo. Uma tarde em que tentava pôr em ordem a sala, Úrsula pediu ajuda aos soldados que custodiavam a casa. O jovem comandante da guarda concedeu-lhes a permissão. Pouco a pouco, Úrsula lhes foi designando novas tarefas. Convidava-os para almoçar, presenteava-lhes roupas e calçados e os ensinava a ler e a escrever. Quando o governo suspendeu a vigilância, um deles ficou morando na casa, e esteve a seu serviço por muitos anos. No dia de Ano-Novo, enlouquecido pelas grosserias de Remedios, a bela, o jovem comandante da guarda amanheceu morto de amor junto à sua janela."


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Trecho de "Cem anos de solidão", Gabriel García Márquez

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Livro de Jó - Capítulo 7

Capítulo 7

"1 A vida do homem sobre a terra é uma luta, seus dias são como os dias
de um mercenário.
2 Como um escravo que suspira pela sombra, e o assalariado que
espera seu soldo,
3 assim também eu tive por sorte meses de sofrimento, e noites de dor
me couberam por partilha.
4 Apenas me deito, digo: Quando chegará o dia? Logo que me levanto:
Quando chegará a noite? E até a noite me farto de angústias.
5 Minha carne se cobre de podridão e de imundície, minha pele racha e
supura.
6 Meus dias passam mais depressa do que a lançadeira, e se
desvanecem sem deixar esperança.
7 Lembra-te de que minha vida nada mais é do que um sopro, de que
meus olhos não mais verão a felicidade;
8 o olho que me via não mais me verá, o teu me procurará, e já não
existirei.
9 A nuvem se dissipa e passa: assim, quem desce à região dos mortos
não subirá de novo;
10 não voltará mais à sua casa, sua morada não mais o reconhecerá.
11 E por isso não reprimirei minha língua, falarei na angústia do meu
espírito, queixar-me-ei na tristeza de minha alma:
12 Porventura, sou eu o mar ou um monstro marinho, para me teres
posto um guarda contra mim?
13 Se eu disser: Consolar-me-á o meu leito, e a minha cama me
aliviará,
14 tu me aterrarás com sonhos, e me horrorizarás com visões.
15 Preferiria ser estrangulado; antes a morte do que meus tormentos!
16 Sucumbo, deixo de viver para sempre; deixa-me; pois meus dias são
apenas um sopro.
17 O que é um homem para fazeres tanto caso dele, para te dignares
ocupar-te dele,
18 para visitá-lo todas as manhãs, e prová-lo a cada instante?
19 Quando cessarás de olhar para mim, e deixarás que eu engula minha
saliva?
20 Se pequei, que mal te fiz, ó guarda dos homens? Por que me tomas
por alvo, e me tornei pesado a ti?
21 Por que não toleras meu pecado e não apagas minha culpa? Eis que
vou logo me deitar por terra; tu me procurarás, e já não existirei."


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Livro de Jó, Antigo Testamento

Snowflakes

http://www.youtube.com/watch?v=wdPK5Zh5xW4

Moscow - Russia
Song: The National - Daughters of the Soho Riots

"My wife loves when it snows. I hate it"