segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

IX - O Diabo. A alucinação de Ivan Fiódorovitch.




IX
O Diabo. A alucinação de Ivan Fiódorovitch.

Não sou médico e, no entato, sinto que chegou o momento de fornecer algumas explicações sobre a doença de Ivan Fiódorovitch. Digamos imediatamente que estava na iminência de uma febre nervosa, tendo a doença acabado por triunfar de seu organismo enfraquecido. Sem conhecer a medicina, arrisco esta hipótese de que tinha ele talvez conseguido, por um esforço de vontade, conjurar a crise, esperando, bem entendido, a ela escapar. Sabia-se doente, mas não queria abandonar-se à doença naqueles dias decisivos em que devia mostrar-se, falar ousadamente, justificar-se a seus próprios olhos. Tinha ido ver o médico vindo de Moscou a chamado Iekaterina Ivánovna. Depois de havê-lo auscultado e examinado, conluiu o facultativo pela existência de um desarranjo cerebral e não ficou nada surpreso com uma confisão que Ivan lhe fez, no entanto, com repugnância. "As alucinações são muito possíveis no seu estado, mas seria preciso controlá-las... aliás o senhor deve tratar-se seriamente, senão isso se agravará.". Mas Ivan Fiódorovitch não deu importância a esse sábio conselho: "Tenho ainda força para andar. Quando eu cair, será diferente. Tratará de mim quem quiser!".
Tinha quase consciência de seu delírio e fixava obstinadamente certo objeto, em cima do divã, em frente dele. Ali apareceu de repente um indivíduo, que entrou Deus sabe como, porque não estava ele ali quando chegou Ivan Fiódorovitch, após sua visita a Smierdiákov. Era um senhor, ou uma espécie de cavalheiro russo, qui frisait la cinquantaine, como dizem os franceses, um pouco grisalho, os cabelos longos e espessos, a barba em ponta. Trazia um paletó marrom, evidentemente de casa de um bom alfaiate, mas já usado, datando de cerca de três anos e completamente fora de moda. A roupa branca, o comprido lenço de pescoço, tudo lembrava o cavalheiro elegante; mas a roupa, observada de perto, não estava lá muito limpa, e o lenço de pescoço bastante gasto. Suas calças de quadrados assentavam-lhe bem, mas eram demasiado claras e demasiado justas, como não se usam mais atualmente, da mesma maneira seu chapéu de feltro branco, malgrado a estação. Em sumna, um aspecto ao mesmo tempo decente e de quem estava em dificuldades financeiras. O cavalheiro parecia ser um desses antigos proprietários rurais que floresciam no tempo da servidão: vivera na sociedade, tivera outrora relações conservadas talvez até agora, mas pouco a pouco, empobrecido após as dissipações dajuventude e a recente abolição da servidão, tornara-se uma espécie de parasita de boa companhia, recebido em casa de seus antigos conhecidos por causa de seu gênio acomodatício e a título de homem decente, que se pode admitir à sua mesa em qualquer ocasião, embora num lugar modesto. Esses parasitas, de gênio afável, que sabem contar uma história, organizar uma partida, detestar as incumbências de que os encarregam, são em geral viúvos ou soleirões; por vezes têm filhos, sempre educados longe, em casa de alguma tia, a respeito da qual o cavalheiro quase nunca fala quando em boa companhia, como se se envergonhasse de tal parentesco. Acaba por se desacostumar de seus filhos, que lhe escrevem de longe em longe, por ocasião de seu aniversário ou do Natal, cartas de felicitações às quais ele por vezes responde. A fisionomia daquele visitante inesperado era mais afável que bonachona, pronta à amabilidade de acordo com as circunstâncias. Não tinha relógio, mas usava um lornhão de tartaruga, presto por uma fita preta. O dedo médio de sua mão direita estava ornado com um anel de ouro maciço com uma opala barata. Ivan Fiódorovitch mantinha-se em silêncio, resolvido a não travar conhecimento. O visitante aguardava, como um parasita que acaba de deixar o quato que lhe é reservado, à hora do chá, para fazer companhia ao dono da casa, mas que se cala, estando este absorvido em suas reflexões, pronto todavia a uma amável prosa, contanto que o dono da casa a comece. De repente seu rosto revelou preocupação.
-Escuta - disse ele a Ivan Fiódorovitch -, desculpa-me, quero somente lembrar-te: foste à casa de Smierdiákov, a fim de te informares a respeito de Iekaterina Ivánovna, mas vieste embora sem nada saber. Decerto te esqueceste...
-Ah! Sim! - disse Ivan preocupado. - Esqueci-me... Não importa, aliás, deixemos isso para amanhã. A propósito - disse ele, irritado, ao visitante -, era eu quem devia ter-me lembrado disso ainda há pouco, porque me sentia angustiado a respeito. Bastou que tivesses surgido para que acredite que essa sugestão partiu de ti.
-Pois bem! não o creio - e o cavalheiro sorriu com ar amáve. - A fé não se impõe. Aliás, neste domínio, as provas, mesmo materiais, são ineficazes. Tomé acreditou porque queria acreditar, não por ter visto o Cristo Ressuscitado. Assim, os espíritas... gosto muito deles... imagina que acreditam servir à fé, porque o Diabo lhes mostra seus chifres de vez em quando. "É uma prova material da existência do outor mundo." O outro mundo demonstrado materialmente! Que idéia! Enfim, isto provaria a existência do Diabo, mas não a de Deus. Quero passar para uma sociedade idealista, a fim e fazer-lhes oposição.
-Escuta - disse Ivan Fiódorovitch, levantando-se -, creio que estou delirando, conta o que quiseres, pouco me importa! Não me exasperarás como antes. Somente, tenho vergonha... Quero andar pelo quarto... Por vezes deixo de vert-te, de ouvir-te, mas adivinho sempre o que queres dizer, porque "sou eu quem fala e não tu!" Mas não sei se dormia, na derradeira vez, ou se te vi realmente. Vou aplicar na minha cabeça um guardanapo molhado, talvez assim te dissipes.
Ivan foi buscar um guardanapo e fez como dizia, depois do que pôs-se a andar para lá e para cá.
-Causa-me prazer nos tratarmos por "tu" - disse o visitante.
-Imbecil, acreditas que vou tratar-te por "vós"? Sinto-me disposto... se pelo menos não tivesse dor de cabeça... mas não me venhas com tanta filosofia como na última vez. Se não podes ir-te embora, inventa pelo menos algo de engraçado. Conta-me mexericos, porque não passas de um parasita. Que pesadelo tenaz! Mas não te temo. Acabarei vencendo-te. Não me internarão!
-C'est charmant! parasita. é meu papel, com efeito. Que sou eu na terra, senão um parasita? A propósito, surpreende-me ouvir-te; palavra, começas a tomar-me por um ser real e não pelo produto apenas de tua imaginação, como o sustentavas da outra vez.
-Nem um instante tomo-te por uma realidade - exclamou Ivan, com raiva - És uma mentira, um fantasma de meu espírito doente. Mas não sei como desembaraçar-me de ti, vejo que será preciso sofrer algum tempo. És uma alucinação, a encarnação de mim mesmo, de uma parte apenas de mim... de meus pensamentos e de mus sentimentos, mas dos mais vis e dos mais tolos. A este respeito, poderias mesmo interessar-me, se tivesse tempo para perder contigo.
-Com licença, vou confundir-te: ainda há pouco, perto do lampião, quando deste com Aliócha, gritando-lhe: "Soubeste-o por ele? Como sabes que ele vem ver-me?", era a meu respeito que falavas. Portanto, acreditaste um instante que eu existo realmente - disse o cavalheiro com um sorriso delicado.
-Sim, era um fraqueza... mas não podia acreditar em ti. Talvez te tenha visto somente em sonho, e não na realidade, na derradeira vez.
-E por que foste tão duro com Aliócha? Ele é encantador, sinto-me culpado para com ele, por causa do Stáriets Zózima.
-Como ousas falar de Aliócha, lacaio! - disse Ivan, rindo.
-Injurias-me rindo, bom sinal. Aliás, estás bem mais amável comigo do que da última vez e compreendo por quê: essa nobre resolução...
-Não me fales disto - gritou Ivan furioso.
-Compreendo, compreendo, c'est noble, c'est charmant, vais amanhã defender teu irmão, tu te sacrificas... c'est chevaleresque...
-Cala-te, senão, toma cuidado com os pontapés!
-Em certo sentido, isso me causará prazer, porque meu objetivo será atingido; se ages assim, é que crês na minha realidade, não se trata um fantasma a pontapés. Basta de brincadeiras! Podes injuriar-me, mas vale mais a pena ser um pouco mais delicado, mesmo comigo. Imbecil, lacaio! Que expressões!
-Injuriando-te, injurio-me! Tu és eu mesmo, mas com outro focino. Exprimes meus próprios pensamentos... e nada podes dizer de novo!
-Se nossos pensamentos se encontram, isto me causa honra - disse graciosamente o cavalheiro.
-Somente tu escolhes meus pensamentos mais estúpidos... És besta e vulgar. És estúpido. Não posso suportar-te! Que fazer, que fazer?! - murmurou Ivan entre os dentes.
-Meu amigo, quero, no entanto, permanecer um cavalheiro e ser tratado como tal - disse o visitante com certo amor-própri, aliás conciliante, bonachão. - Sou pobre, mas... não direi muito honesto, mas... admite-se geralmente como um axioma que sou um anjo decaído. Palavra, não posso imaginar como pude, outrora, ser um anjo. Se o fui em algum dia, foi há tanto tempo que não é um pecado esquecê-lo. Agora, atenho-me apenas à minha reputação de homem decente e vivo como posso, esforçando-me por ser agradável. Gosto sinceramente dos homens: caluniaram-me muito. Quando me transporto aqui para a Terra, entre vocês, minha vida toma uma aparência de realidade, e é o que mais me agrada. Porque o fantástico me atormenta como a ti mesmo, de modo que gosto do realismo terrestre. Entre vocês, tudo é definido, há fórmulas, geometria; entr nós, só equações indeterminadas! Aqui, passeio, sonho (gosto de sonhar). Torno-me supersticioso, não rias, peço-te; a superstição me agrada. Adoto todos os hábitos de vocês; gosto de ir aos banhos publicos, imagina, estar na estufa com os comerciantes e os popes. Meu sonho é encarnar-me, mas definitivamente , em algum comerciante obeso e partilhar de todas as suas crenças. Meu ideal é ir à igreja e lá acender uma vla, de todo o coração, palavra! Então meus sofrimentos terão fim. Gosto também dos remédios de vocês; na primavera havia uma epidemia de varíola, fui vacinar-me. Se soubesse como estava eu contente! Dei dez rublos para "nossos irmãos eslavos"!... Não me ouves. Não estás no teu estado normal, hoje... - O cavalheiro fez uma pausa. - Sei que foste ontem consultar aquele médico... pos bem! como vais? Que te disse ele?
-Imbecil!
-Em compensação, tens tanto espírito! Invectivas de novo. Não é por interesse que te perguntava isso. Podes não responder. Eis meus reumatismos que se apoderam de mim de novo.
-Imbecil!
-Continuas? Lembr-ome ainda de meus reumatismos do ano passsado.
-O Diabo com reumatismo?
-Por que não? Se m encarno, tenho de suportar todas as consequências. Satana sum et nihil humani a me alienum puto.
-Como, como? Satana sum et nihil humani... Nao está mal para o Diabo!
-Sinto-me feliz por ver que afinal te causo satisfação.
-Isto não aprendeste de mim - disse Ivan, surpreso - isto jamais me ocorreu. É estranho...
-C'est du nouveau, n'est-ce pas? Desta vez agirei lealmente e te explicarei uma coisa. Escuta. Nos sonhos, sobretudo durante os pesadelos que provêm dum desarranjo de estômago ou de outra coisa, o homem tem por vezes visões tão belas, cenas da vida real tão complicadas, atravessa tal sucessão de acontecimentos, de peripécias, inesperadas, desde as manifestações mais altas até as menores bagatelas, que, juro-te, o próprio Liev Tolstói não as imaginaria. Entretanto, esses sonhos ocorrem não aos escritores, mas a pessoas comuns: funcionários, jornalistas, popes... Um ministro chegou a confessar-me que suas melhores idéias lhe vinham quando dormia. é o mesmo agora; digo coisas originais, que nunca te vieram ao espírito, como nos pesadelos, entretanto, não sou senão tua alucinação.
-Mentes. Teu fim é persuadir-me de que existes e eis que tu mesmo pretendes ser um sonho.
-Meu amigo, escolhi hoje um método particular que te explicarei em seguida. Espera um pouco, onde estava eu? Ah! sim! Resfriei-me, mas não entre vocês, lá mesmo...
-Lá mesmo, onde? Dize, pois, demorarás ainda muito tempo? - exclamou Ivan, quase desesperado. Parou, sentou-se sobre o divã, pgou de novo a cabeça entr as mãos. Arrancou o guardanapo molhado e atirou-o fora com despeito.
-Estás com os nervos doentes - observou o cavalheiro com ar displicente, mas amigável. - Estás com raiva de mim porque me resfriei, entretanto aconteceu da maneira mais natural. Conrria eu para uma festa diplomática, em casa duma grande dama de Petersburgo, que manejava a seu gosto os ministros. De casaca, gravata branca, enluvado, no entanto estava ainda Deus sabe onde, e para chegar à Terra era preciso transpor o espaço. Decerto, não é senão um instante, mas a luz do Sol leva oito minutos e, imagina, de casaca e de colete aberto. Os espíritos não gelam, mas quando me encarnei... em suma, agi descuidadamente e aventurei-me; no espaço, no éter, na água... faz um frio, nem se pode mesmo chamar isso de frio, imagina: cento e cinquenta graus abaixo de zero. Conhece-se a brincadeira de jovens aldeãs: quando gela a trinta graus, propõem a algum simplório lamber um machado; a língua gela instantaneamente, o simplório arranca a pele e são apenas trinta graus. A cento e cinquenta graus, bastaria, penso, tocar um machado com um dedo para que este desapareça... se pelo menos houvesse um machado no espaço...
-Mas será possível? - interrompeu, distraidamente, Ivan Fiódorovitch. Lutava com odas as suas forças para resistir ao delírio e não afundar na loucura.
-Um machado? - repetiu o visitante com surpresa.
-Mas sim, que será feito dele lá? exclamou Ivan com uma obstinação colérica.
-Um machado no espaço? Quelle idée! Sese encontrar bem longe da Terra, penso que se porá a girar em torno sem saber por quê, à maneira de um satélite. Os astrônomos calcularão quando se levantará e quando se porá. Gatsuk pô-lo-á nno seu almanaque, eis tudo.
-És estúpido, horrivelmente estúpido! Prega mentiras mais espirituosas, ou não te darei ouvidos. Queres convencer-me pelo realismo de teus processos, persuadir-me de tua xistência. Não creio nela!
-Mas não estou mentindo, tudo iso é verdade. Infelizmsnte, a verdade quas nunca é espirituosa. Vejo que esperas de mim algo de grande, talvez de belo. É lamentável, porque só dou o que posso...
-Não me venhas com filosofia, pedaço de asno!
-Como posso eu filosofar, quando estou com todo o lado direito paralisado, obrigando-me a gemer? Consultei a faculdade; sabem diagnosticar maravilhosamente, explicam-nos a doença, mas são incapazes de curar. Havia lá um estudante entusiasta: "Se o senhor morrer", dizia le, "conhecerá exatamente a natureza de seu mal!". Têm a mania de dirigir-nos a especialistas: nós nos limitamos a diagnosticar, vá ver fulano, ele o curará. Não se encontra mais absolutamente o médico à moda antiga, que tratava todas as doenças. Agora só há especialistas, que fazem publicidade. Para uma doença no nariz enviam a gente a Paris, ao consultório de um especialista europeu. Ele examina o nariz da gente. "Não posso", diz ele, "curar senão a narina direita, porque não trato as narinas esquerdas, não é minha especialidade. Vá a Viena; há lá um especialista para as narinas esquerdas." Que fazer? Recorri aos remédios de curandeiras, um médico alemão aconselhou-me que esfregasse no corpo, após o banho, mel e sal. Fui aos banhos só por prazer e me besuntei em pura perda. Em desespero de causa, escrevi ao Conde Mattei, de Milão; enviou-me um livro e umas bolnhas. Que Deus lhe perdoe! Imagina que o extrato de malte de Hoff curou-me. Tinha-o comprado por acaso, tomei um frasco e meio e tudo desapareceu radicalmente. Estava resolvido a publicar uma declaração nos jornais, porque a gratidão falava dentro de mim, mas foi outra história, nenhuma redação a aceitou! "É demasiado reacionária", dizem, "ninguém acreditará nisso, le Diable n'existe point. Publique isso anonimamente." Mas de que vale uma declaração anônima? Brinquei com os redatores: "Ser reacionário", dizia-lhes, "é crer em Deus em nossa época, mas eu, eu sou o Diabo". "Decerto, toda gente crê no Diabo, contudo é impossível, poderia isso prejudicar o nosso programa. alvez... sob uma forma humorística..." Mas então, pensei, não seria espirituoso. E minha declaração não apareceu. Isto ficou-me pesando no coração. Os melhores sentimentos, tais como a gratidão, estão formalmente proibidos para mim, por causa de minha posição social.
-Voltas a cair na filosofia? - disse Ivan, de dentes cerrados.
-Deus me livre! Mas a gente não pode imperdir-se de queixar-se por vezes. Sou caluniado. Tu m tratas a todo momento de imbecil. Vê-se bem que és um homem jovem. Meu amigo, só há o espírito. Recebi da natureza um coração bom e alegre, "também compus vaudevilles". omas-me, creio, por um velho Khlestakov, mas meu destino é bem mais sério. Por uma espécie de decreto inexplicável, tenho por missão "negar", e no entanto sou visceralmente bom e inapto para a negação. "Não! tens de negar! Sem negação, não há crítica, e que seria das revistas sem a crítica? Só restaria uma hosana. Mas isto não basta para a vida, é preciso que esse hosana passe pelo cadinho da dúvida, etc." Aliás, não me meto em tudo isto, não fui eu quem inventou a crítica, não sou o responsável por ela. Pois bem! teno servido de bode expiatório, obrigaram-me a fazer crítica e a vida começou. Compreendemos essa comédia; quanto a mim, aspiro ao nada. Não, é reciso que vivas, dizem-me, porque sem ti nada existiria. Se tudo fosse razoável na Terra, nada se passaria nela. Sem ti, nada de acontecimentos; ora, são precisos os acontecimentos. Cumpro, pois, minha missão, bm a contragosto, para suscitar acontecimentos, e realizo o irracional, cumprindo ordem. As pessoas levam essa comédia a sério, malgrado todo o seu espírito. Para elas é uma tragédia. Sofrem, evidentemente... em compensação, vivem uma vida real e não imaginária, porque o sofrimento é a vida. Sem o sofrimento, que prazer ofereceria ela? Tudo se assemelharia a um Te-Deum interminável; é santo, mas bastante tedioso. E eu? Eu sofro e, no entanto, não vivo. Sou a incógnita de uma equação. Sou o espectro da vida, que perdeu a noção das coisas, e esqueço até o meu nome. Ris?... Não, não ris, zangas-te de novo, como sempre. Ser-te-ia preciso sempre inteligência; ora, repito-te, daria toda essa vida sideral, todos os graus, todas as honras, para encarnar-me na pele duma vendedora obesa e ir queimar velas na igreja.
-Tu também não crês em Deus - disse Ivan, com um sorriso cheio de ódio.
-Como dizer, se falas seriamente...
-Deus existe ou não existe? - insistiu Ivan encolerizado.
-Ah! é sério, então? Meu caro, Deus é-me testemunha de que não sei de nada, não posso dizer melhor.
-Não, tu não existes, tu és eu mesmo e nada mais! Não passas de uma quimera!
-Se queres, tenho a mesma filosofia que tu, é verdade. je pense, doc je suis, eis o que é certo; quanto ao resto, quanto a todos esses mundos, Deus e o próprio Satã, tudo isso não me é provado. Têm eles uma xistência própria, o serão apnas emanação de mim, o desenvolvimento sucessivo de meu "eu", que existe temporal e pessoalmente... mas detenho-me, porque tenho a impressão de que vais bater-me.
-Farias melhor se me contasses uma anedota!
-Eis uma, precisamente no quadro de nosso tema, isto é, mais ma lenda que anedota. Tu me censuras minha incredulidade. Mas, meu caro, não sou eu só assim: entre nós, todos estão agora perturbados por causa das ciências de vocês. Enquanto havia os átomos, os cinco sentidos, os quatro elementos, a coisaia bem ainda. Os átomos já eram conhecidos na Antiguidade. Mas vocês descobriram "a molécula química", o "protoplasma", e o diabo sabe ainda o quê! Aprendendo isso, os nossos baixaram a cauda. Foi a barafunda; sobretudo a superstição, os mexericos proliferaram; fica sabendo que temos disso, tanto quanto voc~es, talvez mesmo um pouco mais, e afinal tamb´m as declarações: há igualmente entre nós uma seção em que recebemos certas "informações". Pois bem, essa lenda de nossa Idade Média, da nossa, não da de vocês, não merece nenhum crédito, exceto entre gordas vendedoras, as nossas, não as de vocês. Tudo quanto existe entre vocês existe também entre nós; revelo-te este mistério por amizade, se bem que seja proibido. Essa lenda fala, pois, do paraíso. Havia na terra certo filósofo que negava tudo, as leis, a consciência, a fé, sobretudo a vida futura. Morreu pensando entrar nas trevas do nada e ei-lo em presença da vida futura. Espanta-se, indigna-se: "Isto", diz ele, "é contrário às minhas convicções". E foi condenado por isso... Desculpa-me, transmito-te esta lenda como ma contaram... Portanto, foi ele condenado a percorrer nas trevas um quatrilhão de quilômetros (porque contamos também em quilômetros, agora), e quando tiver ele acabado o seu quatrilhão, as portas do paraíso se abrirão diante dele e tudo lhe será perdoado...
-Que tormentos há no outro mundo, além do quatrilhão? - perguntou Ivan com estrnaha animação.
-Que tormentos? Ah! não me fales! Outrora, havia-os para todos os gosto; agora, é sempre mais o sistema das torturas morais, "os remorsos da consciência" e outras pataratas. Devemos isso à "doçura dos costumes" de vocês. E quem tira proveito disso? Somente os que não têm consciência, porque zombam dos remorsos! Em compensação, as pessoas decentes, que conervaram o sentimento da honra, sofrem... Eis o que acontece com as reformas operadas em terreno malpreparado e copiadas de instituições estrangeiras. São deploráveis! O fogo de outrora valia melhor. O condenado ao quatrilhão olha, pois, em redor de si, depois se deita atravessado na estrada: "Não ando, por princípio recuso!" Pega a alma de um ateu russo esclarecido e mistura-a com a do profeta Jonas, que se aborreceu três dias e três noites na barriga de uma baleia, e obterás o nosso pensador recalcitrante.
-Sobre que se estendeu ele?
-Havia certamente alguma coisa sobre a qual se estenderia. Não estás brincando?
-Viva! - exclamou Ivan, com a mesma animação. Escutava com uma curiosidade inesperada. - Pois bem! Continua ele deitado?
-Mas não, ao fim de mil anos, levantou-se e pôs-se a andar.
-Que asno! - Ivan deu uma risada nervosa e pôs-se a refletir. - Não será a mesma coisa ficar deitado eternamente ou marchar um uatrilhão de verstas? Mas perfaz isso um bilhão de anos?
-E até mesmo mais. Se houvesse um lápis e papel, poder-se-ia calcular. Faz muito tempo que ele chegou, e é aqui que começa a anedota.
-Como? Mas onde arranjou ele um bilhão de anos?
-Passa sempre na nossa Terra atual! A Terra reproduziu-se talvez um milhão de vezes; gelou-se, fendeu-se, desagregou-se, depois decompôs-se em seus elementos, e de novo as águas recobriram a terra. Em seguida, ofi novamente um cometa, depois um sol donde saiu o globo. Esse ciclo se repete talvez uma infinidade de vezes, sob a mesma forma, até o mínimo detalhe. É mortalmente aborrecedor...
-POis bem! Que aconteceu quando ele acabou?
-Assim que ele entro no paraíso, dois segundos, de relógio na mão, não se tinham passado (se bem que seu relógio, na minha opinião, deve ter-se decomposto em seus elementos durante a viagem) e já exclamava que, por aqueles dois segundos, bem valia fazer não só um quatrilhão de quilômetros, mas um quatrilhão de quatrilhões, à quatrilhonésima potência! Em suma, canto hosanas, exagerou mesmo, a ponto de pensadores mais dignos recusarem estender-lhe a mão nos primeiros tempos; tornara-se demasiado bruscamente conservador. É o temperamento russo. Repito-o, é uma lenda. Eis as idéias que têm em curso entre nós a respeito dessas matérias.
-Apanhei-te! - exclamou Ivan com uma alegria quase infantil, como se lhe voltasse a memória. - Fui eu mesmo que inventei essa anedota do quatrilhão de quilômetros! Tinha então dezessete anos, estava no ginásio... Contei-a a um de meus camaradas, Koróvkin, em Moscou... Essa anedota é muito característica, tinha-a esquecido, mas lembrei-me dela inconscientemente; não foste tu que a contaste! É assim que uma multidão de coisas nos volta à memória, quando marchamos para o suplício... ou quando sonhamos. Pois bem, não passas de um sonho!
-A violência com que me negas assegura-me que, apesar de tudo, crês em mim - disse o cavalheiro jovialmente.
-Absolutamente! não creio em ti nem uma centésima parte!
-Mas uma milésima cês. As doses homeopáticas são talvez as mais fortes. Confessa que crês em mim, pelo menos uma décima milésima parte...
-Não! - gritou Ivan irritado. - Aliás, gostaria bem de crer em ti!
-Eh! eh! eh! Por fim, confessou! Mas sou bom, vou ajudar-te. Fui eu que te apanhei! Contei-te de propósito, essa anedota para desenganar-te definitivamente a meu respeito.
-Mentes. O fim de tua aparição é convencer-me de tua existência.
Precisamente. Mas as hesitações, a inquietação, o conflito entre a fé e a dúvida constituem por vezes tal sofrimento para um homem escrupuloso como tu, que melhor vale enforcar-se. Sabendo que crês um pouco em mim, contei-te essa anedota para entregar-te definitivamente à dúvida. Conduzo-te entre a fé e a incredulidade alternativamente, não sem um fito. É um novo método; quando cessares completamente de crer em mim, pôr-te-ás a ssegurar-me que não sou um sonho, que existo verdadeiramente, conheço-te; então meu fito será atingido. Ora, meu fito é nobre. Depositarei em ti um minúsculo germe de fé que dará nascimento a um carvalho, um carvalho tão grande que será teu refúgio e quererás fazer-te anacoreta, porque é teu vivo desejo em segredo, nutrir-te-ás de gafanhotos, prepararás a tua salvação no deserto.
-Então, miserável, é para minha salvação que trabalhas?
-É bem preciso praticar aguma vez uma boa obra. Tut e zangas, pelo que vejo!
-Palaço! Jamais tentaste aqueles que se nutrem de gafanhotos, rezam dezessete anos no deserto até ficarem cobertos de musgo?
-Meu caro, não faço outra ocisa senão isso. A gente esquce o mundo inteiro por uma alma assim, porque é uma jóia de preço, uma aritmética. A vitória é preciosa! Ora, certos solitários, palavra de honra, valem tanto quanto tu, do ponto de vista intelectual, se bem que não o creias; podem contemplar simultaneamente tais abismos de fé e de dúvida que parece por vzes, na verdade, que basta apenas um cabelo para que eles sucumbam.
-Pois bem! Tu te retirarias de nariz bem comprido!
-Meu amigo - observou o visitante, sentencioso -, mais vale ter o nariz comprido do que não ter nariz nenhum, como dizia ainda recentemente um marquês doente (devia ter sido tratado por um especialista), confessando-se a um padre jesuíta. Asssisti a isso, era encantador. "Entregai-me meu nariz!", e batia no peito. "Meu filho", insinuava o padre, " tudo é regulado pelos decretos insondáveis da Providência, um mal aparente traz por vezes um bem oculto. Se uma sorte cruel o privou de seu nariz, o senor ganha com isso pelo fato de ninugém mais doravante ousar dizer-lhe que o senhor tem o nariz comprido." "meu padre, não é isto um consolo!", exclamou ele desesperado. "Ficarei, pelo contrário, encantado por ter cada dia o nariz mais comprido, contanto que ele esteja no seu lugar!" "Meu filho", disse o padre, suspirando, "não se podem pedir todos os bens ao mesmo tempo, e já é murmurar contra a Providência, que, mesmo assim, não o esqueceu; porque, se o senhor grita, como ainda há pouco, que seria feliz toda a sua vida por ter seu nariz comprido, seu desejo será satisfeito indiretamente, porque, tendo perdido seu nariz, pelo fato mesmo, tem o senhro o nariz comprido..."
-Ora! Que coisa estúpida! - exclamou Ivan.
-Meu amigo, eu queria fazer-te rir, juro-te que tal é a casuística dos jesuítas e que tudo isso é rigorosamente exato. Esse caso é recente e causoume bastantes preocupações. De volta para casa, o desgraçado rapaz estourou os miolos naquela noite; não o deixei até o derradeiro instante... Quanto aos confessionários jesuíticos, são na verdade meu divertimento agradável nas horas de tristeza. Eis uma historieta destes últimos dias. Uma jovem normanda, loura, de vinte anos, chega è casa de um velho padre. Uma beleza! Que corpo! Era de fazer vir água à boca. Ajoelha-se, murmura seu pecado através da grade. "Omo, minha filha, você recaiu no pecado?... Ó sancta maria, que ouço eu? Já é outro? Até quando durará isso? Não tem você vergonha?" "Ah! mon père", responde a pecadora arrependida, "ça lui a fait tant de plaisir et à moi si peu de peine!" Considera essa resposta! É o grito da própria natureza, vale isto mias que a inocência! Dei-lhe a absolvição e voltei-me para retirar-me, quando ouvi o padre marvar-lhe um encontro para aquela noite. Por mias resistente que tenha sido o velho, sucumbiu logo à tentação. A natureza, a verdade desforraram-se! Por que fazes careta? Eis-te de novo zangado? Não sei mais que faze para te ser agradável...
-Deixa-me, tu me obsedas como um pesadelo - gemeu Ivan, vencido pela sua visão. - Tu me aborreces e me atormentas. Daria muito para escorraçar-te.
-Repit, modera tuas exigências, não xijas de mim o grande e o belo e verás como seremos bons amigos - disse o cavalheiro com um tom sugestivo. - Na verdade, tens razão de querer-me mal porque não apareci em meio duma duma nuvem vermelha, entre o trovão e os raios, com as asas avermelhadas, mas me apresentei com traje tão modesto. Em primeiro lugar, teus sentimentos estéticos estão melindrados, depois teu orgulho: tão grande homem receber a visita de um diabo tão comum! Há em ti aquela fibra romântica de que zombou Bielínski! Que fazer, rapaz? Ainda há pouco, no momento de vir à tua casa, pensei, para brincar, em tomar a aparência de um conselheiro de Estado aposentado, condecorado com as ordens do Leão e do Sol, mas não ousei, porque ter-me-ias batido: como, pôr no peito as placas do Leão e do Sol, em lugar da Estrela Polar ou de Sírio?! E insistes em chamar-me estúpido. Meu Deus, não pretendo ter a tua inteligência. Mefistófeles, aparecendo a Fausto, afirma que quer o mal e não faz senão o bem. Bem, isso é lá com ele, comigo é o contrário. Sou talvez o único ser no mundo que ama a verdade e quer sinceramente o bem. Estava presente quando o Verbo crucificado subiu ao céu, levando a alma do bom ladrão; ouvi as exclamações jubilosas dos querubins cantando hosana! e os hinos dos serafins, que faziam tremer o universo. Pois bem, juro-o pelo que há de mais sagrado, quis juntar-me aos coros e gritar também hosana! As palavras iam sair de meu peito... sabes que so bastante sensível e impressionável do ponto de vista estético. Mas o bom senso - a mais desgraçada de minhas faculdades - reteve-me nos justos limites e deixei passar a hora propícia! porque, pensava e então, que aconteceria se eu cantasse hosana? Tudo se extinguiria no mundo, não se passaria mais nada. Eis como os deveres de meu cargo e minha posição social obrigaram-me a repelir um impulso generoso e a permanecer na infâmia. Outros arrogam-se toda a honra do bem: não me deixam senão a infâmia. Mas não invejo a honra de viver às custas de outrem, não sou ambicioso. Por que, entre todas as criaturas, sou eu só votado às maldições das pessoas honestas e mesmo aos pontapés debotas, pois, encarnando-me, evo suportar tais consequências? Há aí um mistério, mas a preço algum querem revelar-mo, com medo de que entoe eu hosana e tão lgoo edsapareçam as imperfeições necessárias, reine a razão no mundo inteiro: seria naturalmente o fim de tudo, até mesmo de jornais e revistas, porque quem os assinaria então? Sei que por fim eu me reconciliaria, farei também eu o meu quatrilhão e conhecerei o segredo. Mas, à espera, amuo-me e cumpro a contragosto minha missão: perder milhões para salvar um só. Quantas almas , por exemplo, foi preciso perder e quantas reputações macular para obter um só justo, Jó, do qual se serviram outrora para me pregarem bem má peça. Não, enquanto o segredo não for revelado, existem para mim duas verdades: a lá de baixo, a deles, que ignoro totalmene, e a outra, a mnha. Resta ver qual é a mais pura... Dormes?
-Penso bem - gemeu Ivan - em tudo o que há de animal em mim, tudo o que desde muito tepmo digeri e eliminei como uma sujeira, tu mo trazes como uma novidade!
-Então, não fui bem sucedido! Eu que pensava encantar-te com minha eloquência! Esse hosana no céu, na verdade, não estava mal, não é? Depois aquele tom sarcástico a Heine, não é?
-Não, jamais tive esse espírito de lacaio! Como pôde minha alma produzir um lacaio de tua espécie?
-Meu amigo, conheço um encantador jovem russo, amador de literatura e de arte. É o autor dum poema que promete, intitulado: O grande inquisitor... Era unicamente ele uqe eu tinha em vista.
-Proíbo-te de falar do Grande inquisitor - exclamou Ivan, rubro de vergonha.
-E o cataclismo geológico, lembras-te? Que poema!
-Cala-te o eu te mato!
-Matar-me? Não, é preciso que eu me explique em primeiro lugar. Vim cá para oferecer a mim mesmo esse prazer. Oh! quanto amo os sonhos de meus jovens amigos, fogosos, sedentos de vida! "Ali vive gente nova!", dizias tu na última primavera, quando te preparavas para vir aqui, "eles querem tudo destruir e regressar à antropofagia. Não me consultaram, os estúpidos. Na minha opinião, não é preciso destruir nada, a não ser a idéia de Deus no espírito do homem: eis por onde é preciso começar. Oh! os cegos, não compreendem nada! Uma vez que a humanidade inteira professe o ateísmo (e reio que essa época, à maneira das épocas geológicas, chegará a seu tempo), então, por si mesma, sem antropofagia, a antiga concepção do mundo desaparecerá, e sobretudo a antiga moral. Os homens se unirão para retirar da vida todos os gozos possíveis, mas neste mundo somente. O espírito humano se elevará até um orgulho titânico, e isto será a humanidade deificada. Triunfando sem cessar e sem limites da natureza pela ciência e pela energia, o homem por isso mesmo experimentará constantemente uma alegria tão intensa que ela substituirá para ele as esperanças das alegrias celestes. Cada qual saberá que é mortal, sem esperança de ressurreição, e resignar-se-á à morte com uma altivez tranquila, como um deus. Por altivez, abster-se-á de murmurar contra a brevidade da vida e amará seus irmãos duma maneira desinteressada. O amor só procurará gozos breves, mas o próprio sentimento de sua brevidade reforçar-lhe-á a intensidade tanto quanto outrora la se disseminava nas esperanças de um amor eterno, além-tumular"... e assim por diante. É encantador!
Ivan tapava os ouvidos com as mãos, olhava para o chão, termia da cabeça aos pés. A voz prosseguiu:
-A questão consiste nisto, sonhava meu jovem pensador: será possível que essa época chegue algum dia? Na afirmativa, tudo está decidido, a humanidade se organizará definitivamente. Mas como, diante da estupidez inveterada da espécie humana, não se venha isso a realizar talvez nem dentro de mil anos, é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo lhe é permitido. mais ainda: mesmo se essa época nunca chegar, como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único do mundo a viver assim. Poderia doravante, de coração leve, libertar-se das regras da moral tradicional, às quais estava o homem sujeito como um escravo. Para Deus, não existe lei. Em toda parte onde Deus se encontra, está em seu lugar! Em toda parte em que me encontrar, será o primeiro lugar... tudo é permitido, um ponto, é tudo! Tudo isso é muito gentil; somente, se se quer trapacear, de que serve a sanção da verdade? Mas nosso russo contemporâneo é sasim feito: não se decidirá a trapacear sem essa sanção, tanto ama ele a verdade...
O visitante deixara-se arrebatar pela sua eloquência, elevava cada vez mais a voz e olhava com ironia o dono da casa; mas não pôde acabar. Ivan agarrou de repente um copo em cima da mesa e atirou-o no orador.
-Ah! mais, c'est bête enfin - exclamou o outro, erguendo-se vivamente e enxugando as gotas de chá que lhe caíram na roupa; lembou-se do tinteiro de Lutero! - Quer ver em mim um sonho e lança copos contra um fantasma! Isso é digno dma mulher! Bem suspeitava de que fingias tapar os ouvidos e que estavas escutando...
Nesse momento, bateram na janla com insistência. Ivan Fiódorovitch levantou-se.
-Estás ouvindo? Abre então - exclamou o visitante. - É teu irmão Aliócha que vem anunciar-te uma notícia das mais inesperadas, garanto-te.
-Cala-te, impostor, sabia antes de ti que era Aliócha, pressentia-o, e decerto não vem à toa, traz evidentemente uma "notícia" - exclamou Ivan exaltado.
-Abre então, abre-lhe. Está lá fora uma tempestade de neve e é teu irmão quem bate. Monsieur sait-il le temps qu'il fait? C'est à ne pas mettre un chien debors...
Continuavam a bater. Ivan quis correr à janela, mas sentiu-se como que paralisado. Esforçava-se por partir os laços que o prendiam, mas em vão. Batiam cada vez com mais força. Por fim os laços se romperam e Ivan Fiódorovitch levantou-se. As duas velas acabavam de consumir-se, o copo que havia atirado contra seu visitante estava sobre a mesa. Sobre o divã, ninguém. As pancadas na janela persistiam, mas bem menos fortes do uqe lhe tinham parecido, bem discretas até.
-Não é um sonho! Não, juro que não era um sonho, tudo isso acaba de ocorrer.
Ivan correu à janela e abriu o postigo.
-Aliócha, eu te havia proibido de vir - gritou ele, com raiva a seu irmão. - Em duas palavras: que queres? Em duas palavras, ouves-me?
-Há uma hora Smierdiákov enforcou-se - disse Aliócha.
-Sobe o patamar, vou abrir a porta - disse Ivan.


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Capítulo IX, "O Diabo. A alucinação de Ivan Fioódorovitch", da obra "Irmãos Karamazov" de Dostoievski.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O demônio




Ainda que sejas o demônio
Quero de novo sonhar contigo
Troco por mil crianças em pranto
O tédio de um belo sorriso

Quero teus dentes podres. Tua carne crua e quente. Teus pêlos grosseiros e vulgares. Tua insaciável vontade do que é sujo e mal quisto. Um quarto luxuoso e velho, muito alto para lembrar-se de qualquer mundo. Tua humilhação e teu silêncio, teu afago e teu deboche. Tua espontaneidade em ser vil e barata. Vendo minha alma ao teu seio a troco de esmolas. Tudo isso por algumas horas, até que a vida seja somente um peso.

Que tua excreção seja minha comida
Para que, enfim, eu esqueça o pão

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

(...)



Nenhuma revelação pode ser tão dolorosa quanto uma descoberta do passado. Minha única coragem e tristeza.
Por tanto tempo pensei que a saudade que sinto de você fosse meramente falta de seu sexo. Um dia, uma noite, encontrei uma prostituta idêntica a você. Observando seus movimentos sensuais, me vi à procura de qualquer gesto sutil que escondesse uma lembrança sua, viva, sorrindo pela manhã.
Sou como o vinho: amo tanto quanto sou vulgar.

domingo, 14 de novembro de 2010

O coração

Há muito venho adiando uma história que não deixa de me atormetar sequer por uma noite. Porque ninguém acreditaria em minhas palavras, ou porque sei como um momento pode se tornar infeliz ao transformar-se em passado. Dentre estes momentos, entre diversos felizes ou tristes, não há qual possa ser mais assombroso do que algo que não possamos compreender e tenha se dado diante de nossos próprios olhos.
Aconteceu-me em uma época muito confusa. Estava desempregado, em grande necessidade de dinheiro. Costumava tomar meus cafés da manhã em uma padaria no mínimo peculiar, em uma esquina qualquer de Niterói. Raramente conversava, as pessoas estavam sempre estressadas. Em contraste, havia este velho. Nunca o havia visto ter uma péssima manhã, estava sempre de bom humor e conversava com todos de forma entusiasmada, qualquer fosse o assunto em questão. Ao lado de muito dinheiro, o velho carregava consigo um excelente, porém doente, coração. Nunca havíamos trocado uma palavra sequer, mas sempre me punha a ouvir suas reconfortantes palavras às pessoas ao seu redor, palavras incrivelmente nunca piegas, mas sim vivas. Havia mais vida em cada uma delas do que em qualquer pessoa que se sentasse ao seu redor, e às vezes me espantava a impressão de que suas palavras fizessem com que as pessoas respirassem, ainda que o ônibus lotado que tivessem de tomar logo em seguida rapidamente removessem este resquício de vida de seus interiores.
Certa vez este velho chegou à padaria mais tarde que de costume, com um sorriso sustentado à força em sua boca e um grande abatimento em seus olhos. Sentou-se ao meu lado, pediu seu "pingado" e seu "pão na chapa", como de costume, e ficou em silêncio. Incrivelmente, nos olhávamos e era como se um diálogo já tivesse se iniciado entre nós há minutos, apesar do longo silêncio.
-Meu coração vai parar de bater dentro de alguns dias e eu não estou preparado para morrer - disse ele.
Aquilo me comoveu, mas não com sua situação, e sim com o quão injusto é o fato de não haver um sentido no mundo. Seria muito mais prudente que a morte levasse um infeliz como eu a privar aquele velho de seu enorme amor pela vida. Permaneci em silêncio, sem saber o que dizer.
-Você sabe, eu tenho muito dinheiro. Talvez, se você pudesse pulsar meu coração até que eu me sinta mais preparado. Posso pagá-lo o quanto for necessário.
Fui pego de surpresa, como você deve estar pensando. Como poderia pulsar seu coração? Seria justo que o fizesse? Posso mesmo permitir que um sujeito, em lugar da natureza, decida o momento de sua morte? Enquanto o velho explicava-me sobre um aparelho que me permitira pulsar manualmente seu coração, me vinha à cabeça, além de diversas perguntas como as anteriormente ditas, minha enorme necessidade de dinheiro, além de grande admiração por aquele velho.
O fato é que aceitei. E o que me soava, a primeira vista, monótono e moralmente grotesco, acabou por se mostrar bem diferente. Primeiro, mudei-me para a casa do velho. Passava as noites em claro de forma a mantê-lo vivo, minhas mãos estavam sempre formigando e dormentes, mas sentia nelas um propósito. Assustava-me a velocidade que me era exigida em suas pulsações. Meu coração estava sempre lento, mas aquele velho estava sempre entusiasmado, obrigava-me sempre a manter seu coração o mais rápido que minhas mãos pudessem aguentar, mas sempre o pedia de forma polida e bem humorada.
Foi um momento feliz de minha vida por muito tempo. Era como se nossos sentimentos começassem a se misturar; como se, de alguma forma, o velho mantivesse também minha pulsação. Este foi, na verdade, o problema. A medida que os sentimentos do velho me invadiam, meus sentimentos também pareciam afetá-lo. Aos poucos o velho foi ficando mais cabisbaixo, sempre pedindo que eu acelerasse sua pulsação e, ainda que fizesse meu máximo, continuava infeliz, desanimado para com a vida. Como se percebesse que, por mais que eu acelerasse seus batimentos, seu coração continuava morto, dependente. Nossa vida (já nos referíamos a ela desta forma, como se fosse apenas uma) havia se tornado miseravelmente infeliz. Ele sentia a infelicidade como uma doença transmissível e crescente, enquanto eu me sentia seu eterno carrasco. Talvez eu devesse tê-lo deixado morrer enquanto ele ainda possuía uma boa impressão da vida. Não porque a natureza seja sábia, mas talvez porque o velho tivesse feito uma escolha muito errada.
Enquanto pensava isto, assistia ao velho dormir confortavelmente ao meu lado. Deixar-se falecer por causas naturais é talvez tão imbecil quanto matar-se por ser infeliz. Ainda que nenhuma das duas sejam necessariamente imbecis, mas iguais. O homem deveria escolher o dia de sua morte. Um dia que se divertisse de forma tão simples e reconfortante, que a vida fosse seu travesseiro em sua infância. Depois deste momento, simplesmente colocar uma arma em sua cabeça e atirar, enquanto sorri.
Foi neste momento que passei a diminuir gradativamente a pulsação do velho. Ele não se agitava, ao contrário, parecia confortável como nunca. Talvez estivesse tendo um daqueles sonhos muito infantis que parecem nunca abandonar a cabeça dos adultos. O velho estava com um semblante bonito, como costumava ser quando seu coração não havia o abandonado, enquanto bebia seu "pingado" e comia seu "pão na chapa". Impulsivamente parei sua pulsação. Assisti ao velho, aos poucos, tranquilamente, morrer, sem perder aquele sorriso de seu semblante. Então o beijei e dormi como há nunca não dormia.
Desde este momento, meu falecido coração procura, em palavras, a vida que aquele velho possuía dentro de si.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Letícia



É difícil compreender racionalmente o que outra pessoa sente ou vê. Mas se um dia você quiser entender o mínimo do que uma pessoa sente no instante em que ela está com você, tente respirar no mesmo ritmo que ela e aprecie o que você sente a partir disto. Nada mais.
Todas as pessoas ao meu redor, salve raras exceções, estão tentando se tornar algo e gritar ao mundo o que elas se tornaram, o que elas sempre foram. Quando eu penso em apedrejar minha existência medíocre em meio a isto, fechar os olhos e me trancar em algum lugar, várias imagens me vêm à cabeça.
O olhar de minha mãe, transbordando um amor tão puro que eu, pessoa tão corrompida e inferior, jamais serei capaz de compreender. O amor que estamos acostumados está tão infinitamente ligado à pura necessidade pessoal, mesmo aquele em que deixaríamos de viver por outra pessoa, que não é nada além da necessidade tão intensa que sentimos da outra. Como uma pessoa pode tão puramente abrir mão de si mesma por outras pessoas desta forma? Simplesmente amar outras pessoas acima de si mesma, mas de uma forma real. Amar tanto, que possa ser capaz de simplesmente deixar a outra pessoa ir embora, se este for o melhor pra ela.
O olhar severo de meu pai. Como algumas pessoas simplesmente são, sem tentar ser, de forma que sequer percebem o quanto poderiam enriquecer o mundo se externassem o que pensam. Não consigo concentrar quando vejo um filme com meu pai, porque simplesmente sei que nunca vou conseguir compreender o que está à minha frente de forma tão rica quanto ele. Ou olhar pro mundo. Por mais que eu me considere alguém que compreende bem as pessoas, quando penso em meu pai, me sinto mera criança, na ponta dos pés, tentando enxergar algo novo por uma janela.
Quando penso em praguejar contra nossa existência medíocre, me vem uma memória à cabeça: meu amigo, Túlio. Éramos muito pequenos, estávamos na primeira série, quando ele quebrou a perna de forma grave. Ele teve de usar um aparelho que mantinha suas duas pernas abertas por todo o tempo em que estivemos em contato. Ninguém o aceitava, ele era a piada do colégio. Tinha apenas dois amigos: Eu e Guilherme Henrique. Não estou aqui sendo hipócrita, mesmo porque eu talvez tenha sido o maior de todos. Era-me difícil também aceitá-lo, mas algo me dizia que eu devia estar do lado dele o tempo inteiro. Um dia, na Educação Física, estávamos treinando cobranças de pênaltis, o professor estava no gol e ninguém conseguia acertar a cobrança. Quando chegou a vez de Túlio tentar, todo mundo ria: se nem os melhores, com suas pernas perfeitas, suas vidas perfeitas, seus sorrisos perfeitos, conseguiam fazer o gol, como ele conseguiria? É algo que aconteceu, e ainda ninguém consegue explicar. Como é feliz presenciar uma sensação como essa: uma sensação inexplicável. Acho que nunca verei alguém tão feliz como o vi naquele dia. Consigo me recordar vividamente de nós três – eu, Túlio e Guilherme Henrique – pulando, abraçados, de forma completamente desengonçada (Túlio não podia pular direito com o aparelho em suas pernas), comemorando aquele gol. Todos sabem como amo meu time, Palmeiras, mas acho que nunca comemorei um gol como aquele dia.
Lembro-me de um ensaio para uma apresentação em um Festival de Inglês no colégio, já no terceiro ano. Eu namorava, já há um ano a essa altura, e nunca havia dado qualquer valor para o namoro até esse dia, quando meu namoro já estava em crise e eu já tinha errado tanto que a garota já não tinha qualquer dúvida de que seria melhor pra ela terminar comigo. Neste dia eu me sentei em um canto, tirei pela primeira vez minha aliança e fiquei ali, a girando em meus dedos e pensando. Só ali, tarde demais, percebi que amava aquilo que havia desprezado tanto. E desde este dia não há um momento sequer da minha vida que eu não tenha certeza do quanto amo o que mais desprezo em meu interior: a existência. Esta vida medíocre, sempre triste, com raros momentos simples e insuperáveis. É incrível como nunca sabemos que um momento é especial quando este está acontecendo, assim como sempre julgamos especial, no exato instante em que este se dá em nossas vidas, um momento que não significa nada. A existência pode ser tão sensacional, que ainda que sejamos muito medíocres, ela consegue nos superar e se manifestar em nossas vidas em momentos raros e cientificamente inexplicáveis. Por mais que possamos compreender todas as reações químicas que ocorrem em nosso interior e são responsáveis por tudo isso, não compreendemos perfeitamente por que elas ocorrem em determinados momentos, não compreendemos o momento, não compreendemos o fenômeno.
Minha tia Letícia. Não posso dizer que ela compreendia tudo isto perfeitamente, mas posso dizer que nunca conheci alguém que compreendesse tudo isto tão bem quanto ela. Ela era simplesmente genial, autodidata em todos seus conhecimentos, viveu sua vida inteira em Miraí, uma pequena cidade mineira, próxima ao estado do Rio de Janeiro. Cidade que teve enorme força cultural, embora esta venha se perdendo com o tempo. Seria hipócrita dizer que choro todos os dias por não a ter conhecido melhor, mas não há uma expressão artística minha que não esteja revestida de lágrimas de frustração por não tê-lo feito. Tive logo na ponta de meu nariz uma pessoa da grandeza de todos os escritores que leio e admiro nos dias de hoje e nunca me aproximei dela. Por muito tempo tentei compreender como uma pessoa como ela conseguiu por tanto tempo ficar em silêncio naquela cidade, uma pessoa que tinha tanta coisa a dizer. Hoje percebo que ela disse. Depois de muito tempo, aprendi uma lição extremamente valiosa com esta tão querida tia: Talvez seja realmente impossível mudar o mundo, mas talvez a vida sequer nisto consista. Há tanta coisa simples e bonita ao nosso redor, tantas pessoas que podemos amar de tal forma e de tal forma por elas sermos amados, que o mundo ao nosso redor talvez se transforme em outro mundo, um mundo sensacional, um mundo que todas as pessoas merecem conhecer e nele viver. Nunca realmente a conheci, mas a cada dia aprendo com minhas memórias sobre ela, minhas suposições sobre ela, o que realmente é a vida.
O que me dói é que, neste momento, deixo o texto de lado e passo a observar o a natureza viva que movimenta a cortina, minha caneca de água, o teclado sujo de meu notebook. Minhas crenças religiosas me impossibilitam de acreditar que um dia, quando eu morrer, poderei me sentar com você em um lugar lindo e conversar sobre tudo o que sempre quis conversar com você depois de sua morte. E me recordo de minha irmã recebendo aquele telefonema e que, antes de ela dizer qualquer coisa, eu já tinha a certeza de que você havia falecido. Tudo o que me resta é minha imaginação, e eu sou capaz de construir um momento com grande parte das pessoas que passaram por minha vida sem grandes dificuldades. Mas a verdade é que você era realmente uma escritora talentosa enquanto eu, apenas um pseudoescritor medíocre, fraco e arrogante. Nunca serei capaz de reproduzir você em meus pensamentos, e por mais que a natureza esteja agora viva em minha sala, eu me sinto completamente sozinho.


“Nessas alturas já entardecia e a mata já se tornava escura. Minha mãe, coitada, era só cansaço. Foi aí que resolvemos voltar. Quem sabe se outro dia retornamos e mais bem informados encontramos o lugar, consolávamos. Ela, conformada, resolveu aderir e novamente nos pusemos a caminho, de volta à casa.
E o diabinho lá, me azucrinando de novo:
- Podem voltar, hahaha! Podem voltar se quiserem, mas àquele tempo nunca mais!
Raios! Pensei em minha mãe e olhei-a de soslaio. Até que ela estava animada e corada de satisfação. Comentava a beleza do passeio e a oportunidade de rever as pessoas e lugares conhecidos. Ela não se decepcionara nem um pouco. Aquele era um novo momento vivido. Para ela a fonte da juventude tinha sido aquele chafariz antigo que a fizera menina de novo.
Também os amigos que reencontrara e com quem comungara belos momentos distantes. O resto fazia parte de outros momentos já vividos e que restavam bem arquivados em sua memória.
Mas para mim, que agora viajava pensativa, a imaginação ainda teimava em regredir no tempo em busca de tudo que minha mãe contava de sua infância e que eu não conhecia. Lá estavam bem direitinhos, perfilados e em posição de sentido, em vidrinhos rotulados pelos nomes, todos os crioulinhos e de mais personagens, nas prateleiras de minha memória.
Aguardando revista eu via o "Jeremias", "Natanael", "tia Toca", "Sinhá Peituda", "Zé Luiz", "Mariinha", "Manoel Abranches" e outros mais. Até o português Marsal, que roubou a tia Rosa para se casarem. Todos eles, todos esperando o renascer da Terra Prometida que se perdera no emaranhado dos anos.
Sim, ela se perdera de fato! Não porque não a encontramos, mas porque o tempo não se repete. Se teimávamos em encontrar-nos lá no horizonte longínquo com aquelas figuras inatingíveis, debalde, pois agora elas só existiam mesmo em nossa imaginação fértil.
Aos poucos quedei-me vencida e cansada, me dando conta de que todos os momentos de nossas vidas são impares e únicos. Não se repetem nunca...
E ai de nossa ilusão perdida que se desfaz em busca de um hipotético horizonte onde ela se evapora após uma caminhada inglória. O horizonte está lá onde o céu encontra a terra e parece ao alcance de nossas mãos. Podemos até tentar uma nova caminhada em sua busca, mas cada momento será bem diferente.
E, se buscássemos esse horizonte como ponto final de nossa jornada, verificamos que ele é feito de outros horizontes e que nossa busca se torna eterna.
Ao atingi-lo, o céu nos foge às mãos e lá se vão nossos castelos, nossos reis, nossos leões, virgens e querubins, produtos de nossa imaginação fantasiosa. E aí nos damos conta de que nossos pés continuam ali em terra firme enquanto se erguem em vão ao infinito nossos braços.
E nós nos perguntamos mais uma vez: Existirá esta Terra Prometida? Onde estará esta Avalon longínqua?”


Trecho de “Terra Prometida” – Letícia Maria Recipute (25/01/2003)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O grito

O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose

Todo feixe de luz que invade
É um nascimento
E nem todo bebê que geme
O faz por sofrimento
A fome já não é mais vaidade
E a cegueira que consome
Já não escolhe idade
Nem toda bandeira ostenta um ideal
E a raiva de quem perdeu sua liberdade
Já não mais está abaixo de bem ou mal

O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose

Toda geração é um formigueiro de idéias prontas
A juventude é um relógio parado
Louvamos o fracasso antigo
Escrevemos em um papel usado
A luxúria de mudar o mundo
Mata de frio o velho morimbundo
E a água da chuva se confunde com lágrimas

O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose
O grito virou hipnose

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Lúpus



Todas as pessoas detestam a sociedade, mas todas querem seus pais perfeitamente sociais.
Os pais são nossa eterna recordação ou expectativa de conforto e segurança, ainda que sejam símbolos da ausência destes em nossa vida.
As pessoas sentem a necessidade, independente de sua inerência (ou não) natural, de convivência, dispondo de todos os sacrifícios necessários para que se mantenham em contato social.
O que está em questão não é o desgosto verbal do ser humano pela sociedade, mas um desgosto verdadeiro e raramente percebido. O desgosto verbal pela sociedade pode se tornar algo completamente social, o que é de fato, infelizmente, eficaz, exatamente em função do desgosto real em questão. Este desgosto verbal faz com que o outro ser social tenha sensação de finalmente encontrar alguém que compreende algo que está em seu interior - este desgosto verdadeiro, que é quase inexpressável, embora passível de compreensão por qualquer um.
A sociedade em sua forma atual e em suas formas historicamente conhecidas é um simples vírus, um vício. Obedecemos normas completamente exteriores, que detestamos, em prol do convívio social. Estas normas, postas desta forma, obviamente deveriam ter função de facilitar e tornar agradável o convívio social, mas elas acabam por tomar forma de preços, os quais pagamos. Preços que destroem o que procuramos.
É como um remédio alucinógeno. Inicialmente, por mais que os preços sejam altos, o benefício é válido, e pagamos por ele. Depois, o benefício se torna tão irrisório, que não pagaríamos por ele ainda que os preços abaixassem ou se tornasse gratuito. São normas que destroem não só o convívio social, como a ânsia humana pelo contato com outros homens. Isto porque a relação entre estas normas e o convívio está completamente alterada: o primeiro não facilita o segundo, o primeiro é condição necessária para o segundo, situação que acaba por tornar o convívio um incoveniente, algo que necessitamos e precisamos de alguma forma conseguir pagar por. E este pagamento está na construção de quem somos. É uma doença tão intensa, que a maioria das pessoas tentará moldar sua postura de acordo com esta sociedade ou de forma completamente contrária a esta sociedade e que seja interessante, para que possa participar da mesma de uma forma relevante sem necessariamente destruí-la, ainda que seja reconhecido como um vilão social.
Quando tomo um comprimido qualquer, sinto exatamente o gosto desta doença, sinto as partes de mim que se ocupam dela e das quais não consigo me livrar, expelir. São como fungos por todo o meu corpo, mais velhos até mesmo do que minha memória. Depois me vem à cabeça o preço, o formato desta necessidade, o sumiço de qualquer perspectiva. Por fim, é como se não houvesse mais alimento para aqueles fungos, mas eles continuassem ali, famintos, e tudo o que eu pudesse fazer é esperar alguém retirá-los de meu corpo pra mim. Ou alguém resolver retirar seus próprios fungos enquanto eu retirasse os meus, juntos.
Esta sensação é a que identifico como a única sensação social pura - despida de qualquer construção externa - que conseguimos alcançar sozinhos e livres. Ela é a responsável por minha imaginação - que ocupa tanto espaço em meu tempo -, é a única razão pela qual me mantenho vivo.
Se esta base, uma idéia tão simples, consegue transmitir uma sensação tão diferente e interessante, imagine o que poderia acontecer se duas pessoas livres pudessem se encontrar? É algo que eu talvez nunca conheça em toda minha vida, mas que sempre esperarei conhecer.
A vida como temos agora, porém, é como um cigarro aceso pelo filtro.

domingo, 3 de outubro de 2010

h) Pode-se ser o juiz de seus semelhantes? Fé até o fim.

"Lembra-te de que não podes ser o juiz de ninguém. Porque antes de julgar um criminoso, deve o juiz saber que é ele próprio tão criminoso quanto o acusado, e talvez mais que todos culpado do crime dele. Quando tiver compreendido isto, poderá ser juiz. Por mais absurdo que isto pareça, é verdade. Porque se eu mesmo fosse um justo, talvez não houvesse diante de mim um criminoso. Se podes encarregar-te do crime do acusado que julgas em teu coração fá-lo imediatamente e sofre em seu lugar; quanto a ele, deixa-o ir sem censuras. E mesmo se a lei te instituiu juiz dele, tanto quanto é possível, faze também a justiça naquele espírito, porque, uma vez partido, condenar-se-á ele ainda mais severamente que o teu tribunal. Se ele se vai insensível a teu bom tratamento e zombando de ti, não fiques impressoinado; é que a hora dele ainda não chegou, mas chegará; e, no caso contrário, um outro em lugar dele compreenderá, sofrerá, condenar-se-á, acusar-se-á a si mesmo, e a verdade será cumprida. Crê firmemente nisto; é aí que repousam a esperança e a fé dos santos. Não te canses de agir. Se te lembrares, à noite, antes de dormir, de que não cumpriste o que era preciso, levanta-te logo para cumpri-lo. Se os que te cercam, por malícia ou indiferença, recusam ouvir-te, põe-te de joelhos e pede-lhes perdão, porque, na verdade, é culpa tua se não querem escutar-te. Se não podes falar àqueles que estão envinagrados, serve-os em silêncio e na humildade, sem jamais desesperar. Se todos te abandonam e se te expulsam com violência, ao ficares sozinho, prosterna-te, beija a terra, rega-a com tuas lágrimas, e essas lágrimas darão frutos ainda mesmo que ninguém te veja, nem te ouça na tua solidão. Crê até o fim, mesmo que todos os homens se hajam desviado e tenhas ficado fiel sozinho; leva então tua oferenda e louva a Deus, por teres sido o único a manter a fé. E se dois, tais como vós, se reúnem, então eis a plenitude do amor vivo, beijai-vos com efusão e louvai o Senhor, porque sua verdade cunmpriu-se, ainda que apenas em vós dois.
Se tu mesmo pecaste e estás mortalmente aflito por isso, rejubila-te por um outro, por um justo, rejubila-te por ser ele, em compensação, um justo e não ter pecado.
Se estás indignado e aflito por causa da iniquidade dos homens, a ponto de quereres vingar-te, teme acima de tudo esse sentimento; impõe-te o mesmo castigo que fosses tu mesmo culpado do crime deles. Aceita esse castigo e suporta-o, teu coração se acalmará, compreenderás que tu também és culpado, porque terias podido esclarecer os celerados mesmo na qualidade de único justo, e não o fizeste. Esclarecendo-os, ter-lhes-ias mostrado um outro caminho, e o autor do crime não o teria talvez cometido, graças à luz. Se os homens ficarem mesmo insensíveis a essa luz, malgrado teus esforços, e negligenciarem sua salvação, fica firme e não duvides do poder da luz celeste; persuade-te de que, se não foram eles salvos agora, sê-lo-ão mais tarde. Senão, seus filhos serão salvos em lugar deles, porque tua luz não perecerá, mesmo se estiveres morto. O justo desaparece, mas a luz fica. Após a morte do salvador é que a gente se salva. O gênero humano repele seus profetas, massacra-os, mas os homens amam seus mártires e veneram aqueles que eles mesmos fizeram perecer. É pela coletividade que trabalhas, pelo futuro que ages. Não procures recompensa jamais, porque tens já uma grande nesta terra: tua alegria espiritual, de que somente o justo partilha. Não temas nem os grandes nem os poderosos, mas sê sábio e sempre digno. Segue a medida, conhece os termos, instrui-te a este respeito. Retirado na solidão, reza. Prosterna-te com amor e beija a terra. Ama incansavelmente, insaciavelmente, todos e tudo, procura esse êxtase e essa exaltação. Rega a terra de lágrimas de alegria, ama essas lágrimas. Não te envergonhes desse êxtase, ama-o, porque é um grande dom de Deus, concedido somente aos eleitos".


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Trecho da obra "Irmãos Karamazov", Dostoiévski.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Cara para um amigo. Carta para os velhos tempos.



Cara, não sei bem por quê, mas me deu uma vontade incontrolável de vir aqui e encher uma caixa de diálogo de besteiras, não tão bestas quanto parecem ser.
Às vezes, quando me sinto mal, milhares de memórias me vêm à cabeça, muitas delas com você, apesar de uma amizade não tão longa. Lembro quando comecei a tocar com bandas, a primeira vez que você me viu tocando num ensaio da Fenris. Maurício na bateria, eu tocando guitarra e cantando, só isso. Naquele dia voltamos pra casa conversando sobre música, eu irritando você, você me irritando e nós dois nos entendendo.
Quando começamos a tocar na Legendarius, me senti como se tivesse finalmente encontrado algo que há muito vinha procurando. Nós simplesmente sabíamos sobre o que se tratava música. Todas nossas cicatrizes de adolescente misturadas a sorrisos. A balalaika no fim de semana era uma mistura de superação e diversão. Aqueles momentos representam exatamente do que se trata música, independente da qualidade que saísse dos nossos instrumentos.
E esses milhares de defeitos que você tem e faz questão de não abrir mão, de teimosia, tendo consciência de que largá-los é perder uma parte valiosa do que você é. Cada um deles é parte essencial de nossa amizade e da admiração que tenho por você. Não gostaria mais ou menos de você se você os perdesse, mas gostaria menos de você se você abrisse mão de algo de forma que te fizesse se sentir vazio, seja esse algo bom ou ruim.
Só queria renovar algo que não consigo ver morrer. Mesmo que agora não tenha absolutamente nada pra fazer em Varginha, nós amadurecemos tanto de forma tão rápida e, ainda assim, nos mantemos reunindo, fazendo qualquer merda, qualquer horário, porque sabemos o valor de tudo o que aconteceu. Essa é uma boa cicatriz que não pode sair do nosso corpo.
Com o tempo vou descobrindo que a amizade não é encontrar alguém com todas as qualidades que você espera, mas sim alguém que te faça se sentir você mesmo, mesmo que a pessoa tenha os defeitos que você nunca esperou. E esses defeitos realçam nela as qualidades que você nunca procurou, mas que se tornam indispensáveis pra você com o passar do tempo.
E esse passar do tempo não consegue apagar certas coisas. Não importa o que você seja agora, não importa o que você se torne, você é um irmão pra mim e sempre será.
Um abraço e se cuide, meu caro "Nocêra".

http://www.youtube.com/watch?v=wrivjzw0RlI

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Feche os olhos e dance

Todos já foram a uma festa que simplesmente não poderia ser descrita. Do tipo com poucas pessoas, do tipo que a banda se perde em músicas que nunca tocaria em uma festa comum. Em um lugar ordinário, no qual nunca se imaginaria uma festa, mas que se transforma no lugar perfeito pra uma na mente de todos os que nela estiveram presentes.
A banda tocava “O caminho do bem”, mas não era um cover perfeito. A música havia se tornado única, própria, como uma composição de todos os corpos que se deixavam embalar por ela. A pouca iluminação especial do lugar vibrava com todas as mãos pro alto, pessoas que dançavam como se aquele fosse o único lugar vivo no planeta, ao menos naquele instante. As cabeças dançavam ritmadas, mesmo aquelas que não estavam acostumadas a seguir a música.
Dentre tantas cabeças, uma se destacava, como se fosse natural. Parecia ter sido criada para aquele ambiente. Cabelos chanel, muito escuros, aparentemente pintados. Olhos delineados e castanhos, aparentemente muito velhos, mas os mais jovens olhos daquela noite. Os olhos não pertenciam à noite, a noite pertencia aos olhos. De pele muito clara, usava uma blusa folgada, de alças estreitas, caindo leves ao corpo, deixando a um top a incumbência de esconder os seios. Era baixa – ainda que usasse um salto considerável, o qual não parecia atrapalhar a dança - e magra, talvez até magra demais. Longas meias escuras subiam por bonitas pernas até encontrar o que parecia interessar os diversos homens que dançavam ao seu redor. Uma saia alcançava a parte superior de seus joelhos. Dançava lentamente, de forma sensual e ao mesmo tempo nada vulgar, apesar de deixar transparecer na inocência daquela mulher algo de muito misterioso. Era uma dança tão sutil – e ao mesmo tempo bem composta – que parecia fazer parte daquela melodia, mas da forma certa. Não era um solo, era algo que dava à música um ambiente e permitia que ela alcançasse as pessoas. Seus olhos se fechavam e abriam a todo tempo, como se, apesar de às vezes longe daquele ambiente, estivessem sempre atentos, à espreita, procurando algo. Não sabia o que era, mas sabia que precisava encontrar algo, e não era algo convencional. Fechava os olhos e olhava para o alto, para as luzes, para as teias de aranha abandonadas nas junções da parede com o teto.
Piscou e olhou para a varanda, onde um homem destoava daquele lugar, olhando a rua vazia. Não era, porém, descartável ao ambiente. De repente era como se tudo pudesse desmoronar se não houvesse aquela peça incomum em um canto. Como se o ambiente pudesse novamente se tornar comum, impróprio para uma festa. Como se a música pudesse voltar a ser apenas um cover normal e, como se imagina, inferior ao próprio Tim Maia.
Parou de dançar e puxou um dos homens ao seu redor. A música pareceu ter diminuído seu volume, como se alguém em algum lugar estivesse gravando uma cena ao redor daquela mulher, querendo que todos os que estivessem atentos pudessem ouvir suas palavras.
-Você conhece aquele cara? – apontando para o homem na varanda.
-É o Rafael. – sorriu – Ele é estranho deste jeito, mesmo.
A mulher então voltou a dançar, se aproximando lentamente do homem. Colocou suavemente sua mão na parte interior da coxa de quem, aparentemente, conhecia muito mal aquele rapaz que não parecia querer participar da festa. A mão da mulher estava próxima ao lugar onde ele desejava que ela estivesse, mas não tão próxima quanto ele esperava. A mulher então o beijou nos lábios e, aproximando-se de sua orelha, disse:
-Obrigada, querido.
Começou, então, a caminhar em direção à varanda, deixando o homem no que se supunha ser uma pista de dança, ainda com os olhos fechados.
Rafael havia acendido mais um cigarro e parecia ainda olhar para o mesmo ponto da rua vazia, como se não estivesse realmente ali. A mulher apoiou seus braços nas grades da varanda e, tirando um cigarro de sua bolsa, dirigiu-se a ele:
-Posso fumar do seu lado?
Rafael não respondeu. Aparentemente sequer ouvir o que aquela mulher havia lhe dito.
-Meu nome é Sofia.
Seguiu-se um silêncio constrangedor. A pergunta seguinte está implícita, aquele homem, porém, parecia estúpido, ou morto. Sofia pôs-se a pensar e percebeu que ele talvez não devesse realmente responder àquela pergunta convencional. Já sabia o nome dele, por que perguntou? Por que as coisas devem seguir estes roteiros simplesmente estúpidos? Não poderia simplesmente começar a conversar com o homem, já se referindo a ele com seu nome? É provável que isto o assustasse, é verdade, mas era melhor do que o tédio. Qualquer coisa é melhor do que o tédio, por mais horrível que ela possa parecer, ao menos a princípio, antes que a experimentemos.
-Você dança, Rafael?
Rafael, porém, não só não se assustou, como não esboçou qualquer reação àquela fala. Sofia cogitou que a rua fosse para ele uma memória, uma memória mais interessante que qualquer coisa nova que pudesse acontecer àquele homem. Talvez fosse uma rua vazia apenas para ela, enquanto pra ele fosse um filme, fosse sua cena favorita do cinema. Lembrou-se de repente de Uma Thurman dançando “Girl, you’ll be a woman soon” em "Pulp Fiction". Como adorava aquela cena. Se ela estivesse sendo reproduzida agora em uma televisão em algum canto deste bar, era provável que ela se dirigisse até ele e a assistisse até o fim, sem querer ser incomodada. Havia, porém, algo de impulsivo que a forçava a incomodar aquele homem. Talvez fosse ele o que ela deveria encontrar naquele dia. Talvez ela estivesse apenas sendo muito tola, imaginativa, infantil.
Virou-se de costas ao homem e começou, então, a dançar lentamente muito próxima a ele. Estava realmente muito sensual. Até seu perfume barato parecia ter-se transformado em um perfume francês, que exalava de seu pescoço suado ao ponto certo - como se, naquele momento do que mal era um diálogo, já estivesse no ápice de uma relação sexual – e bem próximo do rosto de Rafael. O homem então virou-se para que a mulher pudesse ficar mais próxima dele e, aproximando-se de seu ouvido, finalmente disse algo:
-Eu costumava esperar a madrugada, para que as ruas, que eu via movimentadas todos os dias, estivessem vazias e eu então pudesse caminhar por elas e pensar livremente. Hoje, já não há mais propósito nisto. Nesta época, as pessoas eram vazias, mas ainda havia tesão, e eu as via como madeiras ocas, esteticamente agradáveis. Agora, é como se a madrugada fosse como o dia. As ruas estão sempre vazias e eu estou sempre sozinho.
Sofia então levou as mãos ao cabelo e, após quase agachar-se, levantou-se lentamente, inclinando para a frente, arrastando as nádegas pela perna do rapaz, até atravessar a virilha e chegar próximo à barriga, inclinando-se então para trás, pondo seu pescoço nos ombros do homem que, apesar de magro, os possuía largos. Era sua vez de aproximar sua boca a um dos ouvidos do homem e preencher o silêncio. Não tinha certeza se o queria fazer. Sentia uma enorme excitação naquele homem silencioso, como se em suas poucas palavras repousasse algo que a deixasse confortável o suficiente para ficar nua ali mesmo, em meio àquela multidão.
-Quer dizer então que você não pode me ajudar a encontrar o que estou procurando?
Rafael, de repente, sentiu-se despertar. Não fazia idéia de como havia chegado ali. Olhou ao seu redor e ninguém dançava, todos estavam parados, o observando fixamente, com olheiras profundas. No palco, restara apenas o baixista. Nunca havia presenciado algo daquele tipo: a banda inteira retirar-se do palco e restar apenas o baixista. Seus dedos percorriam o instrumento levemente, e não da forma agressiva como se costuma ver nos solos de baixo desacompanhados de outros instrumentos. As notas eram suaves, não tremiam nem um pouco, mas eram, apesar de tranqüilas, sinistras. Havia algo de macabro naquilo tudo. O baixista possuía as olheiras mais profundas do lugar e o observava de forma agressiva, como se quisesse matá-lo e então comer toda sua carne, até que não restasse qualquer vestígio seu no mundo. Parecia nervoso, cansado daquilo tudo, como se estivesse ali por obrigação apenas, esperando que ele terminasse logo com Sofia e a cortina pudesse, então, abaixar-se no palco. Correu os olhos pela festa e todos haviam voltado a dançar normalmente. “Foi um delírio momentâneo”, pensou. “É um daqueles sonhos novamente”. Sentiu, então, uma vontade incontrolável de vomitar.
-Meu pau ainda sobe, se é o que você quer saber. Só não estou tão certo se ele pode proporcionar a mim o mesmo prazer que pode proporcionar a você. Preciso ir ao banheiro.
Com seus braços, removeu Sofia de sua frente. Tirou a jaqueta de couro que trajava e a jogou no chão. Parecia uma jaqueta cara e o homem não aparentava ter dinheiro o suficiente para comprar outra daquela no dia seguinte, mas simplesmente não se importava. Usava apenas uma regata branca por baixo. Partiu apressadamente para o banheiro, empurrando as pessoas que se posicionavam na sua frente. A maioria delas sequer percebeu o gesto agressivo; outras o encararam, mas voltaram a dançar segundos depois.
Sofia sentiu-se ofendida com as palavras. Percebeu então o quanto havia sido vulgar nestes últimos momentos. Fechou os olhos e tentou esquecer aquele curto momento estúpido. Interpretou a fala de Rafael como um convite e decidiu segui-lo ao banheiro. Não sabia bem o que estava fazendo, mas estava determinada a fazê-lo.
Já na entrada do banheiro, Rafael percebeu que a mulher o seguia e a esperou. Puxou-a pela mão para o banheiro masculino. Sofia realmente esperava que aquilo acontecesse no banheiro feminino, sentir-se-ia menos constrangida desta forma. Percebeu, então, que o queria tanto que mal conseguia sentir o constrangimento. Estava naquele estado em que se pode contornar qualquer coisa depois, o que importava é que aquilo acontecesse.
Rafael não foi nada sutil, a puxou pelos braços e a empurrou para uma das cabines, onde nem se preocupou em levantar sua blusa ou qualquer coisa do tipo. Abaixou seus jeans apertados e, pressionando a mulher contra a parede, colocou suas mãos por baixo de suas saias e abaixou sua calcinha. Levantou-a, escorando-a na parede, e a penetrou de forma violenta. Sofia passou os braços pelos ombros de Rafael e tentou segurar-se para não gritar. Rafael não produzia qualquer som e não parecia segurar-se para não fazê-lo. No entanto, parecia muito excitado. Estava preso em seu mundo. Não queria que Sofia dissesse nada. Também não queria dizer nada.
Sofia percebeu, então, que não ouvia mais nada ao seu redor. Falou e não ouviu sua própria voz. O homem parecia gritar, gemer. Ela simplesmente não ouvia. O prazer parecia trancá-la em um armário e encolhê-lo aos poucos. Já não estava sozinho, mas trouxe consigo a dor. A dor não era como uma ferida; aumentava o prazer e o prazer aumentava a dor. Os dois continuavam interagindo até um ponto em que tudo parecia prestes a explodir. O homem não havia colocado camisinha, ela não conseguia se importar. Sequer entendia por que havia lembrado deste detalhe.
Sentiu, então, a vontade de vomitar do homem penetrar seu corpo. Prazer, dor, náuseas, silêncio. Tudo aquilo parecia duelar com sua mente por seu corpo. Sua mente parecia ceder, queria desfazer-se. Tudo era muito confuso. Como podia saber que o homem tinha vontade de vomitar? Era impossível. Notou que sabia muito sobre o homem. Rafael nada havia dito, mas ela sabia tudo. Conhecia o homem melhor do que a si própria, e não havia nisto muita diferença. Tudo o que o homem era estava nela, escondido em algum lugar. Rafael era mais Sofia do que ela própria.

Acordou em seu minúsculo apartamento. Sentia dores nas costas, dormia mais uma miserável noite naquele colchão horrível. Estava nua e se masturbava. No criado-mudo, ao lado de sua cama, havia um copo cheio até a metade de vodca pura, ruim, barata. Arremessou o copo contra a parede. Gritou, pôs-se de joelhos, puxou seus cabelos, chorou até a última lágrima, como se, secando-se as lágrimas, o sangue de seu corpo fosse parar de correr e ela finalmente pudesse ver-se livre de tudo aquilo.
Virou-se, então, e dormiu. Nua e só.

(...)

Hoje a música está viva
Suas unhas estão no vento
Suas cores estão nos lábios
Raios de luzes escuras
Sopros de lâminas partidas

Passando o dedo entre os cabelos
De jovens passageiros, já perdidos
Mas com coragem suficiente
Pra tentar mudar o mundo
Pra cravar os dentes em tudo
O que tiver sangue ou semente

Em toda noite, a música vive
Mas hoje sua madeira está oca
Revela por seu véu natural
Tudo o que há de bem ou mal
Como a mãe louca, que espera do filho morto
Permissão pra enterrar o próprio corpo.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O corpo

Minha vida está estacionada. Às vezes sinto vontade de empurrá-la com toda força, mas logo após, agarro-a e a imobilizo. Medo de envelhecer. Medo de sobreviver por muito tempo. Este medo da dependência e a vontade de que minha existência salte todas as etapas restantes e desapareça, uma vez que já está morta.
Encosto a cabeça na janela do ônibus, antes ou após minha aula, e me ponho a observar o asfalto a se movimentar infinitamente sob mim, o pneu a percorrê-lo agressivamente. Eu, no entanto, sei que continuo parado. Doeria se minha cabeça defendesse o asfalto? Talvez. Quando o ônibus está cheio, procuro um ponto para fixar meu olhar. Costumo optar por meu tênis, o que me mostra como a beleza não só pode estar nos detalhes, mas que também algumas coisas precisam ser não mais do que detalhes para que sejam belas. Procuro deixar a música o mais alto possível em meus fones de ouvido, para que não ouça nada ao meu redor; para que o exterior seja apenas imagens. Às vezes assisto à televisão, mas gosto de deixá-la muda. É estranho que, em um mundo com espaço para tantas palavras, grunhidos, gestos, o silêncio possa ser o mais confortável.
Mas meu tênis bem sabe que isto não é suficiente. Eu sei o que aqueles inúmeros estudantes estão dizendo. Às vezes tenho a sorte de pegar algum trabalhador, com uma cansativa jornada de trabalho – mal recompensada – e me sinto confortado. Posso ver que em sua cabeça não se formam palavras, mas a dor se expressa de forma plena. Ele a compreende, faz-me ter pena daqueles que buscam a compreensão argumentativamente nas palavras, nos choques de imagens. Nele, o sentimento parece ter forma própria, assim como as tantas outras formas de expressão.
Abaixo a cabeça e novamente lamento por todos os estudantes, debatendo suas aulas, cursos; suas idéias, como se nelas houvesse o fogo da vida. Enganaram-nos quando disseram que devemos estudar, ler, nos politizar, entender. Quando disseram que devemos nos interessar pelo interior – e não exterior – das pessoas. Que terrível engano, que consome tudo o que encontra.
A inteligência destrói tudo, todas as verdades. Mostra que em seu mundo, que tenta separar-se do corpo, tudo é artificialmente construído e que, quanto mais a compreensão derruba, mais aproxima-se o vazio. O corpo, não. O corpo invoca dores, libera hormônios, grita sensações. Da dor à sexualidade, todas as sensações são igualmente prazerosas, só elas provam que você ainda está vivo.
Lembro-me de imaginar que um dia, quando eu menos esperasse, uma garota estranha entraria no ônibus, se sentaria do meu lado e diria: “Você tá ouvindo The National? É minha banda favorita” – como nos filmes –, e daí viriam novamente as sensações, com elas o sangue voltaria a correr em meu corpo e, a partir daí, estaria vivo. Hoje olho à minha volta em um ônibus e vejo diversas possíveis garotas, com este potencial, e às vezes me provocam até um sorriso irônico, debochando de mim mesmo. Não as quero, porém, do meu lado. Quero que as sensações fiquem longe de mim e que eu permaneça para sempre um cadáver.
Este é o mundo do corpo. Não pertenço a ele.

domingo, 1 de agosto de 2010

Realidade

Primeiro, as bases da vida.
Um comprimido para manter-se acordado. Um comprimido para dar energias. Um comprimido para manter-se calmo na entrevista de trabalho. Um comprimido para esquecer o que não lhe é conveniente. Um comprimido para construir uma personalidade cheia de peculiaridades.

Segundo, para evitar a solidão.
Um comprimido pela boa aparência. Um comprimido para sorrir. Um comprimido para ser divertido. Um comprimido para dançar. Um comprimido para ereção. Um comprimido para brincar com os filhos. Um comprimido para tirar férias.

Finalmente, o momento em que os comprimidos não são necessários (embora possam ser úteis).

sábado, 31 de julho de 2010

Portador de grave doença é parte de história que faz crer no futuro da humanidade

"Sabe essas histórias que ainda fazem acreditar que a humanidade é boa? Esta é uma delas. Como um tsunami, essa gente invadiu uma casa ainda com mofo, piso de cimento cru e pouca luz. Bateu, entrou e transformou. Iluminou todos os espaços, retirou o mofo, levou piso bonito, começou a pintar e fez aquele menino sobrevivente ter a certeza que nem tudo está perdido. A mãe do menino chora de alegria. Belisca-se. Vive um sonho. O menino, embasbacado e de olhos acesos, repete: “Eu sabia que alguma coisa boa ia acontecer”.

E aconteceu. Mas, afinal, que história é essa? Voltemos 48 dias no tempo. No sábado, 12 de junho, o Correio contou a luta de Lucas Neres Pereira, 13 anos, para sobreviver. E a luta que travara, desde que nasceu, para ser mais forte que as previsões médicas. Portador de uma grave enfermidade pulmonar, a bronquiolite obliterante (doença respiratória causada por um vírus que destrói o pulmão e pode afetar outros órgãos, como o coração).

Lucas nasceu no Hospital Regional de Planaltina (HRP). Com um mês de vida, os primeiros sinais da grave doença: muito cansaço para respirar. Numa ida de emergência ao HRP, um médico plantonista pediu um raios X. E foi incapaz de ver que metade do pulmão do bebê estava comprometido. Indicou nebulização. Era, segundo aquele homem e jaleco branco, apenas um resfriado.

No dia seguinte, o cansaço aumentou. Irani Neres Santana, então com 22 anos, a mãe, desesperou-se. Com os filhos nos braços, embarcou para a Rodoviária do Plano Piloto. Chorava e pedia para ele não morrer. Ao desembarcar ali, um carro da Polícia Militar levou mãe e filho para o Hmib. O médico de plantão, o intensivista neonatal Carlos Zacconeta, estava de saída.

Ainda assim, voltou para atender aquela criança que morria. Sorte que nem toda gente de jaleco branco é igual. Um raios X às pressas revelou: Lucas tinha uma lesão severa em dois terços do pulmão esquerdo. Ficou ali por 80 dias, na UTI neonatal. E, nesse período, momentos vários de incerteza, dor e angústia. Houve dias em que até os médicos achavam que chegara ao fim. Irani chorava agarrada aos santos de devoção.

Como milagre, o menino valente surpreendia. Mas seu estado ainda era grave. Do Hmib, foi transferido para o Hospital de Base (HBDF). Lá, ficou aos cuidados da pneumologista Rita Heloísa Mendes, que cuidou de Lucas com dedicação comovente. Nunca escondeu qualquer informação — nem nos momentos delicados.

Com 13 meses de vida, a primeira cirurgia, para retirar parte do pulmão esquerdo. Era só o começo. Aos 7 anos, a segunda e a mais radical: retirada total do órgão. Meses de internação, recaídas, lágrimas e oração da mãe. Idas e vindas ao hospital. Preocupação com o pulmão direito, que já apresenta sinais de falência — dois terços já estão lesados.

Corrente solidária
Há 48 dias, portanto, esta história foi contada. Lucas e a mãe moravam numa casa humilde em Arapoanga, bairro de Planaltina. O banheiro, cheio de mofo, era o pior inimigo para a saúde do menino. Na casa, humilde, faltava muita coisa. E a luta pela sobrevivência, a dificuldade em comprar remédios e o aparelho de que precisava com urgência, o oxímetro, que mede a saturação de oxigênio no sangue.

A reportagem comoveu Brasília. O telefone de Irani começou a tocar logo nas primeiras horas daquela manhã de sábado. “Toca até hoje”, agradece a mãe. Gente que não quis se identificar. Mas ajudou. Gente que foi lá, ligou, visitou. Conferiu a história de perto.

A ajuda chegou como milagre. E de todos os lugares. Uma atrás da outra. Veio o oxímetro, que custa R$ 1,6 mil. E uma história que arrancou mais lágrimas de Irani. O aparelho, novinho em folha, foi doação de uma mãe que perdera o filho. O menino também se chamava Lucas. “Mas eu não vou morrer, não”, decreta Lucas, o valente.

Chegou também uma bala de oxigênio portátil, no valor de R$ 600, que lhe dará liberdade até para viajar. Cestas básicas, leite da dieta especial e dinheiro em conta. “Paguei tudo o que devia na farmácia”, diz Irani. E não parou por aí. Dois irmãos, comerciantes de Taguatinga, assumiram a reforma do banheiro cheio de mofo. Um major da PM deu as tintas.

E, no dia seguinte à publicação da reportagem, no domingo 13, uma turma do barulho — gente de todos os cantos do DF, homens, mulheres e até crianças — invadiu a casa do menino. Ele não sabia. Chegaram entoando o hino de guerra. O menino engasgou.

A Mancha Verde de Brasília, torcida organizada do Palmeiras, levou solidariedade e esperança para Lucas. Assumiu a reforma total da cozinha, da área externa e do novo quarto do garoto — com direito até a faixa do time na parede. Levaram também cestas básicas e uniforme completo do Verdão.

Como a torcida chegou ali? Na matéria de 12 de junho, numa única frase perdida no meio do texto, informou-se que o menino era torcedor do Palmeiras. Não havia outra menção. Foi o suficiente para tamanha mobilização. “Meu pai, palmeirense como eu, me acordou no sábado e disse: ‘Leia essa matéria. Precisamos fazer alguma coisa. Ele é palmeirense...’ Eu tava dormindo, nem escutei direito”, conta o assistente administrativo Bruno Liporoni, de 32 anos.

Ao acordar, Bruno leu o jornal. “O leite até esfriou na xícara. Liguei pra três amigos da Mancha Verde e decidimos que iríamos fazer alguma coisa.” E-mails foram disparados. No dia seguinte, Bruno e seu exército verde estavam lá, naquele lugar muito distante de onde todos vivem. Seguiu-se uma corrida para fazer o bem. “Percebi que quem recebe ajuda ganha menos do que aquele que pode ajudar. Fomos nós quem ganhamos”, emociona-se o rapaz.

Quarenta e oito dias se passaram. Visitas de integrantes da torcida, para acompanhar a obra (feita pelo tio de Lucas, o pizzaiolo Hidevá Neres, 30, que nas horas vagas se torna pedreiro) tornaram-se constantes. Na manhã de ontem, lá estava parte deles. Vieram até dois torcedores de Cuiabá (MT), para conhecer Lucas.

O menino que desafiou a medicina — muitos pacientes morrem antes dos 2 anos de vida — comoveu a torcida mais uma vez. “Essa é uma corrente do amor. Só quero agradecer a todos que me ajudaram”, disse, com sorriso de vida. Evângelo Franco, 45 anos, diretor do Centro de Ensino Especial 2 de Brasília e diretor de imprensa e mobilização da Mancha Verde, ouviu o que aquele menino disse.

Tentando esconder a emoção, ele admitiu: “A gente tinha obrigação de fazer isso. E que possa servir de exemplo para outros torcedores, outras ONGs. A filha de Franco, a adolescente Ana Luíza, 12, acompanhou o pai. Ao se deparar com realidade tão diferente da sua, refletiu: “Se todos fizessem um pouco, o mundo estaria melhor”. Ricardo Leal, 23, estudante de serviço social, resumiu: “É uma atitude cidadã”.

E o povo cantou. Bradou. Carregou-o. Marcou um superchurrasco na casa nova dele, assim que a pintura externa ficar pronta. Ele sorriu como se fosse a pessoa mais feliz do mundo. E é. Quem vive de forma surpreendente com apenas um quarto do pulmão direito (o transplante não lhe é indicado em função da anatomia do tórax) e obrigou uma gente de jaleco branco a rever tudo que pensava saber tem direito à felicidade.

Ele sabe disso. Tanto sabe, que faz planos. “O meu sonho é conhecer o Marcão (goleiro do Palmeiras).” Alguém duvida de que ele vai conseguir? A vida é engraçada. Um detalhe, perdido no meio de um texto, pode mudar a vida de alguém com a mesma velocidade de um gol. Daqueles que arrebentam a rede. Foi um golaço!"



Fonte: Correio Braziliense (www.correiobraziliense.com.br)

Por Marcelo Abreu



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É verdade: o único produto do futebol é a violência.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A esperança de um homem louco.

Era uma vez um homem louco. Por todos os dias de sua vida, este homem foi a uma praça movimentada de sua cidade e gritou, até que ficasse sem voz: "O amor salvará o mundo".
Havia, porém, um detalhe: este homem nunca acreditou em suas próprias palavras. Sempre se considerou um idiota que continuava a gritar algo em que não acreditava.

Até sua morte, o mundo não havia sido salvo pelo amor. Seu mundo interior? Também não foi salvo pelo amor. Ao contrário, o amor consumiu seu espírito ao lhe impor a dúvida. Por que gritava aquilo todos os dias, se não acreditava que era possível? Duvidava de si, do mundo, do amor. Decidiu parar de perguntar. E que erro gravíssimo, imperdoável.

Eu conheço pessoas que ainda gritam, todos os dias, que acreditam no amor. E não pararam de fazer perguntas. Fico feliz por elas. Elas me tornam feliz por saber que passarei minha vida miserável ainda com o conforto de poder enxergar o que há de mais belo no pensamento humano:

Esperança.

sábado, 26 de junho de 2010

E-storia

Vinte e seis de junho de 2010. Este foi o dia em que sua voz gritou em minha memória. Sem contexto, sem por quê, como estas coisas que parecem manifestações puras de vida, correndo de qualquer padrão.
Lembranças tristes ou felizes? Lembranças incertas, como todos nossos beijos. Eu nunca poderia dizer que te amo - ou amei - com convicção, assim como nunca poderia ter certeza de que estaria mentindo se dissesse. A arte pode se expressar de forma infeliz, alegre, nostálgica, otimista, mas nada se pode dizer sobre sua essência. Os relacionamentos comuns são expressões artísticas, nossa relação é a arte em sua essência. Misteriosa, independente, inconcebível. Entendo agora por que nunca consegui lhe escrever uma canção: você não está nas letras do papel, mas na mão que move o lápis. Seria triste dizer que te amo: nossa relação é tudo, pode ser qualquer coisa, nunca somente amor.
Dizem que pessoas especiais se conhecem pelo acaso. Te encontei quando minha vida havia desmoronado, em um lugar onde nenhum de nós queria estar, por causa de uma camiseta velha. Te reencontrei quando sua vida havia desmonronado, quando você passava pelo único sentimento que ouso dizer que compreendo. A partir de ali, fomos nada mais que dois perdidos tentando fugir de um mundo ao qual não pertenciam e construir outro onde pudéssemos começar de novo; não porque víamos o mundo da mesma forma e da mesma forma éramos vistos por ele: fugitivos, incógnitas, pessoas reais.
Cara, tu não vai nem acreditar, mas, sem você, "2001 - uma odisséia no espaço" tem uma cena a menos.
Cara, cê não vai acreditar, mas, que me perdoe o ortomolecular, você me faz pensar no futuro.
Você é incrível, Vilma. E linda.

sábado, 19 de junho de 2010

Idealismo e instinto

Deve-se abolir a correlação do raciocínio com a idéia simplória de progressão em princípio, meio e fim. O homem é um ser racional o tempo todo, este raciocínio variando no grau de desenvolvimento atingido, o que dependerá do indivíduo, e do grau de consciência do indivíduo para com a formação da linha de raciocínio, variando quanto à superficialidade desta. Logo, o homem pode visualizar um fim e realizar um processo consciente de busca a este, mas também pode receber à consciência um fim, dissecando desta todo o processo.
Algumas ações, porém, são baseadas em raciocínios cujos processos de desenvolvimento sequer chegam à consciência do indivíduo, este a realizando e muitas vezes desconhecendo até mesmo o fim, algumas vezes conhecendo, além do meio, somente o fim, sendo toda esta linha algumas vezes contraditórias às crenças de quem a realiza, de forma que, se conseguisse visualizá-la em sua formação, perceberia que é uma ação vulgarmente irracional(uma vez que lhe falta coerência), apesar de ainda ser produto do raciocínio. Estas ações nem sempre serão produto de mentes perturbadas ou patologias, podendo vir a ocorrer em mentes sadias. É certo, porém, que independente da natureza do raciocínio, haverá um princípio.
Portanto, o “instinto” será sempre uma definição vulgar. O homem tem finalidades puramente racionais e finalidades intrínsecas a necessidades biológicas. Se uma pessoa tem um fim de necessidade biológica, deve-se analisar também a presença de um ou mais meios para alcançá-la. Se um homem tiver fome, portanto, e vários meios de saciá-la, optará por um meio que esteja adequado à imensa quantidade de fatores ao seu redor (inclusive e principalmente de moralidade social); por sua vez, se não houver meios adequados às circunstâncias ao seu redor, a necessidade biológica forçará o indivíduo a apelar por sua sobrevivência pelo simples princípio de autopreservação (o que é da essência não somente do homem, como de qualquer ser vivo), o qual ainda assim passará (no caso do homem) por todo o processo racional, surgindo um fim que force um meio. Um homem que mata por fome, portanto, não mata instintivamente, mas por uma racionalidade forçada a circunstâncias.
A essência humana também se manifestará não só influenciando no desenvolvimento do raciocínio em qualquer âmbito, mas também lançando à consciência fins cujos processos de identificação da sua necessidade (em sua maioria) estão em partes da mente que o homem (determinado, que pratica a ação) ainda não alcançou compreensivamente, como uma ação tomada por alguém que prejudique uma outra pessoa sem trazer benefícios ao realizador.
Nota-se, porém, que os raciocínios seguem um padrão lógico igual, independente de seu grau de superficialidade mental, de forma que, ao desenvolver seu raciocínio em questões puramente intelectuais, o homem estará desenvolvendo ainda mais meios para procurar sua autopreservação e saciar suas necessidades biológicas e de sua essência. Vulgarmente, o desenvolvimento da racionalidade implicará também no desenvolvimento instintivo, ao desenvolver sua capacidade de busca a alternativas (superficiais ou não à mente) de saciar suas necessidades biológicas. Este pensamento não é reversível ao passo que um homem que se deixa guiar pelo instinto, estará deixando-se guiar por processos que muitas vezes não conhece conscientemente.
Os fins buscados por uma mente e a necessidade destes variarão, portanto, de acordo com questões biológicas, sociais, naturais e próprias do indivíduo.
Apesar da capacidade de desenvolvimento do raciocínio da qual o homem é dotado, deve-se levar em consideração também a predisposição ao desenvolvimento deste, que variará de indivíduo, não desconsiderando o fato que todos terão a capacidade de desenvolvê-lo, cada um atingindo as determinações de seu limite racional. A predisposição também indicará, além de um desenvolvimento quantitativo e qualitativo do raciocínio, maior alcance sobre a profundidade destes; uma compreensão do instinto, de forma vulgar. Esta predisposição poderá variar, podendo criar, por exemplo, a tendência natural a se alcançar um alto nível de desenvolvimento do processo ou podendo variar a intensidade de cada fator (biológico, social, natural ou própria do indivíduo) no momento de afetar o desenvolvimento do processo. A predisposição ao raciocínio, por sua vez, é gestante de responsabilidade para o indivíduo em relação a seus semelhantes.
Desenvolvendo o raciocínio, o homem desenvolverá também o alcance da essência de sua espécie, potencializando sempre o conflito tendencioso aos homens de racionalidade evoluída (não sendo estes superiores) entre sua mentalidade crítica e a essência “instintiva” que carrega. Para isto, a solução será sempre o grau de julgamento crítico que o homem poderá desenvolver sobre si mesmo e os outros. Esta crítica será, portanto, essencial não somente ao homem que pretende ser mais bem adaptado ao meio social ao seu redor, mas também ao homem que pretende uma reformulação do ser.
Apesar de todos os homens vazios terem, como finalidade de vida, uma satisfação pessoal vulgar, não se pode exatamente definir a finalidade de vida de um homem predisposto naturalmente ou intencionalmente à racionalidade, podendo-se dizer unicamente que não é uma finalidade vulgar, uma vez que um homem racional pode buscar produzir uma razão à sua existência e outros simplesmente ter como razão um desprezo a esta.


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Este é mais um rascunho do livro já citado anteriormente.