domingo, 14 de novembro de 2010

O coração

Há muito venho adiando uma história que não deixa de me atormetar sequer por uma noite. Porque ninguém acreditaria em minhas palavras, ou porque sei como um momento pode se tornar infeliz ao transformar-se em passado. Dentre estes momentos, entre diversos felizes ou tristes, não há qual possa ser mais assombroso do que algo que não possamos compreender e tenha se dado diante de nossos próprios olhos.
Aconteceu-me em uma época muito confusa. Estava desempregado, em grande necessidade de dinheiro. Costumava tomar meus cafés da manhã em uma padaria no mínimo peculiar, em uma esquina qualquer de Niterói. Raramente conversava, as pessoas estavam sempre estressadas. Em contraste, havia este velho. Nunca o havia visto ter uma péssima manhã, estava sempre de bom humor e conversava com todos de forma entusiasmada, qualquer fosse o assunto em questão. Ao lado de muito dinheiro, o velho carregava consigo um excelente, porém doente, coração. Nunca havíamos trocado uma palavra sequer, mas sempre me punha a ouvir suas reconfortantes palavras às pessoas ao seu redor, palavras incrivelmente nunca piegas, mas sim vivas. Havia mais vida em cada uma delas do que em qualquer pessoa que se sentasse ao seu redor, e às vezes me espantava a impressão de que suas palavras fizessem com que as pessoas respirassem, ainda que o ônibus lotado que tivessem de tomar logo em seguida rapidamente removessem este resquício de vida de seus interiores.
Certa vez este velho chegou à padaria mais tarde que de costume, com um sorriso sustentado à força em sua boca e um grande abatimento em seus olhos. Sentou-se ao meu lado, pediu seu "pingado" e seu "pão na chapa", como de costume, e ficou em silêncio. Incrivelmente, nos olhávamos e era como se um diálogo já tivesse se iniciado entre nós há minutos, apesar do longo silêncio.
-Meu coração vai parar de bater dentro de alguns dias e eu não estou preparado para morrer - disse ele.
Aquilo me comoveu, mas não com sua situação, e sim com o quão injusto é o fato de não haver um sentido no mundo. Seria muito mais prudente que a morte levasse um infeliz como eu a privar aquele velho de seu enorme amor pela vida. Permaneci em silêncio, sem saber o que dizer.
-Você sabe, eu tenho muito dinheiro. Talvez, se você pudesse pulsar meu coração até que eu me sinta mais preparado. Posso pagá-lo o quanto for necessário.
Fui pego de surpresa, como você deve estar pensando. Como poderia pulsar seu coração? Seria justo que o fizesse? Posso mesmo permitir que um sujeito, em lugar da natureza, decida o momento de sua morte? Enquanto o velho explicava-me sobre um aparelho que me permitira pulsar manualmente seu coração, me vinha à cabeça, além de diversas perguntas como as anteriormente ditas, minha enorme necessidade de dinheiro, além de grande admiração por aquele velho.
O fato é que aceitei. E o que me soava, a primeira vista, monótono e moralmente grotesco, acabou por se mostrar bem diferente. Primeiro, mudei-me para a casa do velho. Passava as noites em claro de forma a mantê-lo vivo, minhas mãos estavam sempre formigando e dormentes, mas sentia nelas um propósito. Assustava-me a velocidade que me era exigida em suas pulsações. Meu coração estava sempre lento, mas aquele velho estava sempre entusiasmado, obrigava-me sempre a manter seu coração o mais rápido que minhas mãos pudessem aguentar, mas sempre o pedia de forma polida e bem humorada.
Foi um momento feliz de minha vida por muito tempo. Era como se nossos sentimentos começassem a se misturar; como se, de alguma forma, o velho mantivesse também minha pulsação. Este foi, na verdade, o problema. A medida que os sentimentos do velho me invadiam, meus sentimentos também pareciam afetá-lo. Aos poucos o velho foi ficando mais cabisbaixo, sempre pedindo que eu acelerasse sua pulsação e, ainda que fizesse meu máximo, continuava infeliz, desanimado para com a vida. Como se percebesse que, por mais que eu acelerasse seus batimentos, seu coração continuava morto, dependente. Nossa vida (já nos referíamos a ela desta forma, como se fosse apenas uma) havia se tornado miseravelmente infeliz. Ele sentia a infelicidade como uma doença transmissível e crescente, enquanto eu me sentia seu eterno carrasco. Talvez eu devesse tê-lo deixado morrer enquanto ele ainda possuía uma boa impressão da vida. Não porque a natureza seja sábia, mas talvez porque o velho tivesse feito uma escolha muito errada.
Enquanto pensava isto, assistia ao velho dormir confortavelmente ao meu lado. Deixar-se falecer por causas naturais é talvez tão imbecil quanto matar-se por ser infeliz. Ainda que nenhuma das duas sejam necessariamente imbecis, mas iguais. O homem deveria escolher o dia de sua morte. Um dia que se divertisse de forma tão simples e reconfortante, que a vida fosse seu travesseiro em sua infância. Depois deste momento, simplesmente colocar uma arma em sua cabeça e atirar, enquanto sorri.
Foi neste momento que passei a diminuir gradativamente a pulsação do velho. Ele não se agitava, ao contrário, parecia confortável como nunca. Talvez estivesse tendo um daqueles sonhos muito infantis que parecem nunca abandonar a cabeça dos adultos. O velho estava com um semblante bonito, como costumava ser quando seu coração não havia o abandonado, enquanto bebia seu "pingado" e comia seu "pão na chapa". Impulsivamente parei sua pulsação. Assisti ao velho, aos poucos, tranquilamente, morrer, sem perder aquele sorriso de seu semblante. Então o beijei e dormi como há nunca não dormia.
Desde este momento, meu falecido coração procura, em palavras, a vida que aquele velho possuía dentro de si.