sábado, 24 de dezembro de 2011

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

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Em quase vinte anos de guerra, o Coronel Aureliano Buendía tinha estado muitas vezes em casa, mas o estado de urgência em que chegava sempre, o aparato militar que o acompanhava a toda parte, a aura de lenda que dourava a sua presença e à qual nem a própria Úrsula foi insensível, terminaram por convertê-lo num estranho. Na última vez que esteve em Macondo e ocupou uma casa com as suas três concubinas, não foi visto na sua a não ser duas ou três vezes, quando teve tempo para aceitar convites para comer. Remedios, a bela, e os gêmeos, nascidos em plena guerra, mal o conheciam. Amaranta não conseguia conciliar a imagem do irmão que passara a adolescência fabricando peixinhos de ouro com a do guerreiro mítico que havia interposto entre ele e o resto da humanidade uma distância de três metros. Mas quando se soube da proximidade do armistício e se pensou que ele regressava outra vez convertido num ser humano, resgatado por fim para o coração dos seus, os afetos familiares adormecidos po tanto tempo renasceram com mais força do que nunca.
- Finalmente - disse Úrsula - vamos ter outra vez um homem em casa.
Amaranta foi a primeira a suspeitar de que o haviam perdido para sempre. Uma semana antes do armistício, quando ele entrou em casa em escolta, precedido por dois ordenanças descalços que depositaram no corredor os arreios da mula e o baú dos versos, saldo único da sua antiga bagagem imperial, ela o viu passar em frente ao quarto de costura e o chamou. O Coronel Aureliano Buendía pareceu ter dificuldade em reconhecê-la.
- Sou Amaranta - disse ela de bom humor, feliz pela sua volta, e lhe mostrou a mão com a atadura negra. - Olhe.
O Coronel Aureliano Buendía dirigiu-lhe o mesmo sorriso da primeira vez em que a viu com a atadura, na remota manhã em que voltou a Macondo sentenciado à morte.
- Que horrror - disse - como o tempo passa!
O exército regular teve que proteger a casa. Ele chegara escarnecido, cuspido, acusado de ter endurecido a guerra apenas para vendê-la mais cara. Tremia de febre e de frio e tinha outra vez as axilas cheias de furúnculos. Seis meses antes, quando ouviu falar do armistício, Úrsula abriu e varreu a alcova nupcial, e queimou mirra nos cantos, pensando que ele regressaria disposto a envelhecer devagar entre as mofadas bonecas de Remedios. Mas na verdade, nos dois últimos anos ele pagara as suas quotas finais à vida, inclusive a do envelhecimento. Ao passar diante da oficina de ourivesaria, que Úrsula tinha preparado com especial cuidado, nem sequer percebeu que as chaves estavam postas no cadeado. Não notou os minúsculos e profundos estragos que o tempo fizera na casa e que depois de uma ausência tão prolongada teriam parecido um desastre a qualquer homem que conservasse vivas as suas recordações. Não o magoou a cal descascada nas paredes, nem os sujos algodões de teia de aranha nos cantos, nem a poeira das begônias, nem os túneis do cupim nas vigas, nem o musgo das dobradiças, nem nenhuma das armadilhas insidiosas que lhe estendia a saudade. Sentou-se na varanda, embrulhado na manta e sem tirar as botas, como que esperando apenas que estiasse, e permaneceu a tarde inteira vendo a chuva cair sobre as begônias. Úrsula compreendeu então que ñao o teria em casa por muito tempo. "Se não é a guerra", pensou, "só pode ser a morte". Foi uma suposição tão nítida, tão convincente, que ela a identificou como um presságio.
Nessa noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo partiu o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcadio Segundo, partiu o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, e sim um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos tinham concebido desde que tomaram consciência de que eram iguais foi repetido em honra do recém-chegado. Mas o Coronel Aureliano Buendía não percebeu. Parecia tão alheio a tudo que nem sequer prestou atenção a Remedios, a bela, que passou despida para o quarto. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar a sua abstração.
- Se você vai embora outra vez - disse-lhe no meio do jantar - pelo menos trate de se lembrar de como éramos esta noite.
Então o Coronel Aureliano Buendía se deu conta, sem espanto, de que Úrsula era o único ser humano que tinha conseguido desentranhar a sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhá-la na cara, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele tivera o presságio de que uma panela de sopa fervendo ia cair da mesa, e a encontrou espedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, os calos, as úlceras e as cicatrizes que deixara nela mais de meio século de vida cotidiana e comprovou que estes estragos não provocavam nele sequer um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para procurar no seu coração o lugar onde se haviam apodrecido os afetos e não conseguiu encontrá-lo. Em outra época, pelo menos, experimentava um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia na sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentira os seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso tinha sido arrasado pela guerra. A própria Remedios, sua esposa, era naquele momento a imagem apagada de alguém que podia ter sido sua filha. As inumeráveis mulheres que conhecera no deserto do amor, e que espalharam a sua semente em todo o litoral, não tinham deixado nenhum rasto nos seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto na escuridão e ia embora antes da alvorada, e no dia seguinte era apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que sentiu pelo seu irmão José Arcadio quando ambos eram crianças, e não estava baseado no amor, mas na cumplicidade.
- Perdão - desculpou-se diante do pedido de Úrsula - É que esta guerra acabou com tudo.
Nos dias subsequentes ocupou-se em destruir todas as marcas da sua passagem pelo mundo. Reduziu a oficina de ourivesaria até deixar apenas os objetos impessoais, deu as suas roupas aos ordenanças e enterrou as suas armas no quintal com o mesmo sentido de penitência com que o seu pai havia enterrado a lança que dera morte a Prudencio Aguilar. Conservou somente uma pistola, e com uma bala apenas. Úrsula não interveio. A única vez que se meteu foi quando ele estava se preparadno para destruir o retrato da Remedios que se conservava na sala, iluminado por uma lâmpada eterna. "Esse retrato deixou de pertencer a você há muito tempo", disse a ele. "É uma relíquia de família". Na véspera do armistício, quando já não havia em casa um só objeto que permitisse recordá-lo, levou à padaria da casa o baú com os versos, no momento em que Santa Sofía de la Piedad se preparava para acender o forno.
- Acenda com isto - disse a ela, entregando-lhe o primeiro rolo de papéis amarelados. - Arde melhor, porque são coisas muito antigas.
Santa Sofía de la Piedad, a silenciosa, a condescendente, a que nunca contrariara nem os próprios filhos, teve a impressão de que aquele era um ato proibido.
- São papéis importantes - disse.
- Nada disso - disse o coronel. - São coisas que uma pessoa escreve para si mesma.
- Então - ela disse - queime o senhor mesmo, coronel.
Não apenas o fez, mas espedaçou também o baú com uma machadinha e jogou os cavacos no fogo. Horas antes, Pilar Ternera o visitara. Depois de tantos anos sem vê-la, o Coronel Aureliano Buendía se assombrou de quanto havia envelhecido e engordado, e de quanto havia perdido o esplendor do seu riso; mas também se assombrou da profundidade que havia atingido na leitura das cartas. "Cuidado com a boca", disse ela, e ele se perguntou se da outra vez em que dissera, no apogeu da glória, não havia sido uma visão surpreendentemente antecipada do seu destino. Pouco depois, quando o seu médico pessoal acabou de lhe extirpar os furúnculos, ele pergunto sem demonstrar interesse particular qual era o lugar exato do coração. O médico o auscultou e pintou-lhe em seguida um círculo no peito com um algodão sujo de iodo.
A terça-feira do armistício amanheceu fresca e chuvosa. O Coronel Aureliano Buendía apareceu na cozinha antes das cinco e tomou o seu café sem açúcar habitual. "Num dia como este você veio ao mundo", Úrsula disse a ele. "Todos se assustaram com os seus olhos abertos". Ele não lhe prestou atenção, porque estava alerta aos preparos da tropa, aos toques de corneta e às vozes de comando que estragavam a alvorada. Ainda que depois de tantos anos de guerra estes ruídos lhe devessem parecer familiares, desta vez sentiu o mesmo desalento nos joelhos, e o mesmo arrepio da pele que tinha sentido na juventude, em presença de uma mulher nua. Pensou confusamente, enfim capturado numa armadilha da saudade, que talvez se tivesse se casado com ela teria sido um homem sem guerra e sem glória, um artesão sem nome, um animal feliz. Esse estremecimento tardio, que não figurava nas suas previsões, amargou-lhe o café da manhã. às sete horas, quando o Coronel Gerineldo Márquez foi procurá-lo em companhia de um grupo de oficiais rebeldes, encontrou-o mais taciturno do que nunca, mais pensativo e solitário. Úrsula tratou de jogar-lhe sobre os ombros uma manta nova. "O que é que o governo vai pensar", disse a ele. "Vão imaginar que você se rendeu porque já não tinha nem com que comprar uma manta". Mas ele não a aceitou. Já na porta, vendo que a chuva continuava, deixou que lhe pusessem um velho chapéu de feltro de José Arcadio Buendía.
- Aureliano - Úrsula disse a ele então - prometa-me que se você encontrar por aí com a hora difícil, você vai pensar na sua mãe.
Ele lhe deu um sorriso distante, levantou a mão com todos os dedos estendidos, e sem dizer uma palavra abandonou a casa e enfrentou os gritos, vitupérios e balsfêmias que haveriam de persegui--lo até a saída do povoado. Úrsula colocou a tranca no portão, decidida a não tirá-la durante o resto da vida. "Nós vamos apodrecer aqui dentro", pensou. "Nós vamos nos transformar em cinza nesta casa sem homens, mas não vamos dar a este povo miserável o gsoto de nos ver chorar". Passou a manhã inteira procurando uma lembrança do filho nos cantos mais escondidos e não conseguiu encontrar.
O ato se realizou a vinte quilômetros de Macondo, à sombra de uma paineira gigantesca, em torno da qual se haveria de fundar mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e os do partido e a comissão rebelde que entregou as armas foram recebidos por um buliçoso grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam uma revoada de pombas assustasdas pela chuva. O Coronel Aureliano Buendía chegou numa mula enlameada. Estava barbado, mais atormentado pela dor dos furúnculos que pelo imenso fracasso dos seus sonhos, pois tinha chegado ao fim de qualquer esperança, além da glória e da saudade da glória. De acordo com o determinado por ele mesmo, não houve música, nem foguetes, nem sinos de júbilo, nem placas comemorativas, nem nenhuma outra manifestação que pudesse alterar o caráter triste do armistício. Um fotógrafo ambulante, que tirou o único retrato seu que poderia ser conservado, foi obrigado a destruir o filme sem o revelar.
O ato durou apenas o tempo indispensável para que se pusessem as assinaturas. Ao redor da rústica mesa colocada no centro de uma remendada barraca de circo onde sentaram os delegados, estavam os últimos oficiais que permaneceram fiéis ao Coronel Aureliano Buendía. Antes de recolher as assinaturas, o delegado pessoal do Presidente da República tentou ler em voz alta a ata da rendição, mas o Coronel Aureliano Buendía se opôs. "Não vamos perder tempo com formalidades", disse, e se dispôs a assinar os papéis sem os ler. Um dos oficiais, então, rompeu o silêncio soporífero da tenda.
- Coronel - disse - faça-nos o favor de não ser o primeiro a assinar.
O coronel Aureliano Buendía concedeu. Quando o documento deu a volta completa à mesa, em meio a um silêncio tão nítido que seria possível decifrar as assinaturas pelo puro floreio da pena no papel, o primeiro lugar ainda estava em branco. O Coronel Aureliano Buendía se dispôs a ocupá-lo.
- Coronel - disse então outro dos seus oficiais - o senhor ainda tem tempo para ficar bem.
Sem se perturbar, o Coronel Aureliano Buendía assinou a primeira cópia. Ainda não tinha acabado de assinar a última quando apareceu na porta da tenda um coronel rebelde, trazendo pelo cabresto uma mula carregada com dois baús. Apesar da sua extrema juventude, tinha um aspecto árido e uma expressão paciente. Era o tesoureiro da revolução na circunscrição de Macondo. Fizera uma penosa viagem de seis dias, arrastando a mula morta de fome, para chegar em tempo ao armistício. Com uma calma exasperante descarregou os baús, abriu-os, e foi colocando na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência daquela fortuna. Na desordem do ano anterior, quando o poder central se partiu em pedaços e a revolução degenerou numa sangrenta rivalidade de caudilhos, era impossível determinar qualquer responsabilidade. O ouro da rebelião, fundido em blocos que foram logo cobertos de barro cozido, ficou fora de qualquer controle. O Coronel Aureliano Buendía fez com que se incluíssem as setenta e duas barras de ouro no inventário da rendição, e fechou o ato sem permitir discursos. O esquálido adolescente permaneceu diante dele, olhando-o nos olhos com os seus serenos olhos cor de caramelo.
- Alguma coisa mais? - perguntou-lhe o Coronel Aureliano Buendía.
O jovem coronel trincou os dentes.
- O recibo - disse.
O Coronel Aureliano Buendía estendeu-lhe um, feito do seu próprio punho e letra. Em seguida, tomou um copo de limonada e comeu um pedaço de biscoito que as noviças serviram, e se retirou para uma tenda de campanha que lhe haviam preparado para quando quisesse descansar. Ali tirou a camisa, sentou-se na beira do catre e, às três e quinze da tarde, desferiu um tiro de pistola no círculo de iodo que o seu médico particular lhe pintara no peito. A essa hora, em Macondo, Úrsula destampou a panela do leite no fogão, estranhando que demorasse tanto a ferver, e encontrou-a cheia de vermes.
- Mataram Aureliano! - exclamou.
Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morreu. "Mataram-no à traição", precisou Úrsula, "e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos". Ao anoitecer viu através das lágrimas os rápidos e luminosos discos alaranjados que cruzaram o céu como uma exalação, e pensou que era um sinal da morte. Estava ainda debaixo do castanheiro, soluçando nos joelhos do marido, quando trouxeram o Coronel Aureliano Buendía embrulhado na manta dura de sangue seco e com os olhos abertos de raiva.
Estava fora de perigo. O projétil seguira uma trajetória tão desimpedida que o médico lhe enfiou um cordão molhado de iodo pelo peito e tirou-o pelas costas. "Esta é a minha obra-prima", disse a ele satisfeito. "Era o único ponto por onde podia passar uma bala sem atingir nenhum centro vital". O coronel Aureliano Buendía se viu rodeado de noviças misericordiosas que entoavam salmos desesperados pelo eterno descanso da sua alma, e então se arrependeu de não ter dado o tiro no céu da boca como tinha previsto, só para enganar o prognóstico de Pilar Ternera.
- Se eu ainda tivesse autoridade - disse ao médico - mandava fuzilar o senhor sem julgamento. Não por me ter salvo a vida, mas por me fazer cair no ridículo.
O fracasso da morte lhe devolveu em poucas horas o prestígio perdido. Os mesmos que inventaram a lorota de que vendera a guerra por um aposento cujas paredes estavam construídas com tijolos de ouro definiram a tentativa de suicídio como um ato de honra e o proclamaram mártir. Em seguida, quando recusou a Ordem do Mérito que o Presidente da República lhe outorgou, até os seus rivais mais encarniçados desfliaram no seu quarto, pedindo que desconhecesse os termos do armistício e promovesse uma nova guerra. A casa se encheu de presentes de solidariedade. Tardiamente impressionado com o apoio maciço dos seus antigos companheiros de armas, o Coronel Aureliano Buendía não descartou a possibilidade de satisfazê-los. Pelo contrário, em dado momento pareceu tão entusiasmado com a idéia de uma nova guerra que o Coronel Gerineldo Márquez pensou que ele só esperava um pretexto para proclamá-la. O pretexto se ofereceu, efetivamente, quando o Presidente da República se negou a conceder as pensões de guerra aos antigos combatentes, liberais ou conservadores, enquanto cada processo não fosse revisto por uma comissão especial e a lei das concessões aprovada pelo Congresso. "Isto é uma confusão", trovejou o Coronel Aureliano Buendía. "Vão morrer de velhice esperando o correio". Abandonou pela primeira vez a cadeira de balanço que Úrsula comprara para a sua convalescença e, andando de um lado para o outro da alcova, ditou uma mensagem taxativa para o Presidente da República. Nesse telegrama, que nunca foi publicado, denunciava a primeira violação do Tratado de Neerlândia e ameaçava proclamar a guerra de morte se a concessão das pensões não fosse resolvida ao fim de quinze dias. Era tão justa a sua atitude que permitia contar, inclusive, com a adesão dos antigos combatentes conservadores. Mas a única resposta do governo foi o reforço da guarda militar que colocara na porta da sua casa com o pretexto de protegê-la e a proibição de toda e qualquer espécie de visitas. Medidas similares foram adotadas em todo o país, com outros caudilhos de cuidado. Foi uma operação tão oportuna, drástica e eficaz que dois meses depois do armistício, quando o Coronel Aureliano Buendía teve alta, os seus instigadores mais decididos já estavam mortos ou expatriados ou haviam sido assimilados para sempre pela administração pública.
O Coronel Aureliano Buendía abandonou o quarto em dezembro, e bastou dar uma olhada na varanda para não voltar a pensar na guerra. Com uma vitalidade que parecia impossível na sua idade, Úrsula voltou a rejuvenscer a casa. "Agora vão ver quem sou eu", disse quandos oube que o filho viveria. "Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo o mundo, que esta casa de loucos". Mandou-a lavar e pintar, trocou os móveis, restaurou o jardim e semeou flores novas, e abriua s portas e janelas para que entrasse até os quartos a deslumbrante claridade do verão. Decretou o fim dos numerosos lutos superpostos e ela mesma mudou os velhos trajes rigorosos por roupas juvenis. A música da pianola voltou a alegrar a casa. Ao ouvi-la, Amaranta se lembrou de Pietro Crespi, da sua gardênia crepuscular e do seu cheiro de lavanda, e no fundo do seu murcho coração floresceu um rancor limpo, purificado pelo tempo. Uma tarde em que tentava pôr em ordem a sala, Úrsula pediu ajuda aos soldados que custodiavam a casa. O jovem comandante da guarda concedeu-lhes a permissão. Pouco a pouco, Úrsula lhes foi designando novas tarefas. Convidava-os para almoçar, presenteava-lhes roupas e calçados e os ensinava a ler e a escrever. Quando o governo suspendeu a vigilância, um deles ficou morando na casa, e esteve a seu serviço por muitos anos. No dia de Ano-Novo, enlouquecido pelas grosserias de Remedios, a bela, o jovem comandante da guarda amanheceu morto de amor junto à sua janela."


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Trecho de "Cem anos de solidão", Gabriel García Márquez

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Livro de Jó - Capítulo 7

Capítulo 7

"1 A vida do homem sobre a terra é uma luta, seus dias são como os dias
de um mercenário.
2 Como um escravo que suspira pela sombra, e o assalariado que
espera seu soldo,
3 assim também eu tive por sorte meses de sofrimento, e noites de dor
me couberam por partilha.
4 Apenas me deito, digo: Quando chegará o dia? Logo que me levanto:
Quando chegará a noite? E até a noite me farto de angústias.
5 Minha carne se cobre de podridão e de imundície, minha pele racha e
supura.
6 Meus dias passam mais depressa do que a lançadeira, e se
desvanecem sem deixar esperança.
7 Lembra-te de que minha vida nada mais é do que um sopro, de que
meus olhos não mais verão a felicidade;
8 o olho que me via não mais me verá, o teu me procurará, e já não
existirei.
9 A nuvem se dissipa e passa: assim, quem desce à região dos mortos
não subirá de novo;
10 não voltará mais à sua casa, sua morada não mais o reconhecerá.
11 E por isso não reprimirei minha língua, falarei na angústia do meu
espírito, queixar-me-ei na tristeza de minha alma:
12 Porventura, sou eu o mar ou um monstro marinho, para me teres
posto um guarda contra mim?
13 Se eu disser: Consolar-me-á o meu leito, e a minha cama me
aliviará,
14 tu me aterrarás com sonhos, e me horrorizarás com visões.
15 Preferiria ser estrangulado; antes a morte do que meus tormentos!
16 Sucumbo, deixo de viver para sempre; deixa-me; pois meus dias são
apenas um sopro.
17 O que é um homem para fazeres tanto caso dele, para te dignares
ocupar-te dele,
18 para visitá-lo todas as manhãs, e prová-lo a cada instante?
19 Quando cessarás de olhar para mim, e deixarás que eu engula minha
saliva?
20 Se pequei, que mal te fiz, ó guarda dos homens? Por que me tomas
por alvo, e me tornei pesado a ti?
21 Por que não toleras meu pecado e não apagas minha culpa? Eis que
vou logo me deitar por terra; tu me procurarás, e já não existirei."


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Livro de Jó, Antigo Testamento

Snowflakes

http://www.youtube.com/watch?v=wdPK5Zh5xW4

Moscow - Russia
Song: The National - Daughters of the Soho Riots

"My wife loves when it snows. I hate it"

sábado, 26 de novembro de 2011

Última noite branca

Última noite em St. Petersburg. Amanhã (27/11/2011), às 11:53, vou de trem para Moscow, uma viagem de 10 horas sentado, porque não tive grana pra comprar outra passagem com cama. Tenho 1300 rublos no bolso (um real equivale a quinze rublos). Pego um avião de Moscow para Paris às 20h do dia 28/11/2011 e, até lá, tenho de ficar andando pela rua, porque não tenho grana pra ficar em lugar nenhum também. Minhas botas, que comprei na semana passada, estão mais velhas do que muitos de vocês. Chegando a Paris, tenho duas horas para pegar outro vôo pro RJ, o que significa que, se algum desses horários atrasarem, eu estarei fodido. Chegando ao RJ, pego um ônibus do aeroporto pra rodoviária e fico esperando mais uma vez por um ônibus pra Juiz de Fora. Como não vou dormir absolutamente nada por dois dias, era pra eu estar dormindo agora (a madrugada já iniciou aqui), mas como era de se esperar, não consigo dormir.

Mas a única coisa que me incomoda é que ainda posso ser encontrado no mapa.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pesadelos

Os pesadelos nunca deixarão que você se esqueça da insanidade, como cicatrizes.

Um dia um homem casado, com sua vida feita, após beijar seus filhos e sua mulher e deitar-se, acordará de madrugada, com o corpo completamente suado, e não se dará ao trabalho de acordar sua esposa, por saber que será um incômodo em vão.

Assim como um empresário bem sucedido, após um dia muito produtivo, em sua cama solitária, acordará assustado, no escuro, e tentará se concentrar e dormir para seu atarefado dia seguinte.

Um padre, a despeito de toda sua dedicação, acordará lembrando-se de que seu interior questiona sua própria fé, ao redor da qual gira sua vida.

Um mendigo, deitado em qualquer lugar coberto de uma calçada, enrolado em um velho cobertor, acordará sem compreender como o interior de sua mente pode assombrá-lo mais do que o próprio mundo.

Há algo que une a existência de todas as pessoas que sentem o mundo. E por mais que se tente ignorá-lo, é impossível deixar de senti-lo. Há uma razão pela qual nenhum corpo se encaixe naturalmente ao seu, e é em vão qualquer esforço para tentar explicar a solidão. Algumas pessoas estão fadadas a ela e terão de aprender a lidar com sua convivência, sem qualquer explicação.



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Sábado viajarei para Amsterdam e, posteriormente, Moscou e São Petersburgo. Se não encontrar inspiração na viagem, vou deletar este blog e desistir de escrever. Honestamente, estou cansado.

domingo, 23 de outubro de 2011

http://www.youtube.com/watch?v=vQVeaIHWWck

"A consciência é um inferno" - disse o bêbado.

domingo, 16 de outubro de 2011

A manhã de um miserável

Acorde. A luz grita pela janela, fazendo seu cérebro pulsar, como quem conta o tempo em dor. Você dormiu no sofá de novo. Levante-se, olhe ao seu redor. Duas garrafas de vinho no chão, uma câmera ao seu lado, poucas recordações. Objetos ordinários. Você está em apartamento qualquer, mas o conhece melhor do que gostaria. Todos aqueles objetos que todas as pessoas precisam pra sobreviver, muitos os quais você conhece melhor do que conhece as pessoas. Seus detalhes são mais identificáveis que suas utilidades. As pessoas, você as quer conhecer, sabe que todas são individualmente racionais e interessantes, apesar de os homens se tornarem meros animais ao saírem de suas casas, algo que você não suporta. Mas não se pode pular etapas. Ninguém confiará o bastante em você para simplesmente entrar em seu apartamento, fugir de todos os outros, sem antes ter te conhecido. Você abre sua janela e então se lembra do porquê de manter as cortinas sempre fechadas. Olha para seus vizinhos, para as janelas, para as luzes, sabendo de cor tudo o que eles farão em suas rotinas medíocres. Observa, então, que sua mão treme. Há quanto tempo não come? Pega sua câmera e, filmando o chão, vai até a geladeira. Todos os tipos de congelados, aparentemente saborosos. Mas isto não importa. Você simplesmente precisa comer, pra que seu corpo pare de perturbá-lo. O gosto da comida já lhe é indiferente há muito tempo. Uma produção em massa de animais para que simplesmente sejam mortos e postos em sua geladeira. Unicamente porque o homem é mais forte, mais esperto. Estes animais, nascidos em cativeiros fétidos, sem dispor de tempo pra sequer imaginar em que consista suas vidas, eram, ainda assim, mais felizes que você. Seu maço de cigarros. Cujo gosto há muito já perdeu sua graça. Já não acalmam. Você o mantém fechado. Estragam seus dentes, você precisará deles pra entrevistas de emprego futuramente. Vá ao espelho, arrume-se dignamente. Percebe então, ao ver seu reflexo pelas lentes de sua câmera, o corpo sem sonhos que é. Por opção própria, como todas as pessoas. Preferimos sempre esquecer que a existência é curta, mergulhar na futilidade de uma vida ordinária e deixar para reclamar sobre a incompletude quando a velhice nos roubar os escapismos da juventude. Você se lembra, então, que não gosta de ser filmado. Lembra-se de como as pessoas se sentem desconfortáveis quando sua câmera está em suas mãos. De certa forma, você as compreende. Mas não pode ter certeza disto. E nem faz questão, aborrecido como está pelo começo de mais um dia. Dê mais um passeio por seu apartamento, com a câmera na mão. Iluda-se de que tudo será melhor quando você puder se mudar com frequência, nunca parar no mesmo lugar. Mas você sabe que todos esses objetos ao seu redor seguem um padrão – bem como as tradições - e ainda que acorde em diferentes apartamentos, em diferentes cidades, em diferentes países com diferentes culturas, acordará rodeado por pessoas iguais, patéticas. Como você. O padrão é intragável.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Os olhos do vício

O vício assiste ao mundo, com pesar.
O bar esvaziava à medida que a madrugada o invadia. A garçonete, com sua roupa vulgar e sua cara estereotipada, servia sua última dose de whisky. Ela sabia que aquele era o momento em que seu patrão transformava o balcão em um improvisado palco, momento em que ela se transportava ao seu segundo emprego. Torcia para que o tatuador - cujo nome desconhecia – fosse ao jukebox, para que pudesse dançar algo mais lento e agradável. Era horrível quando qualquer homem novo o fizesse, colocando algo vulgar para se divertir com os amigos. É estranho como uma cidade cresce até certo ponto, diminuindo a partir de tal, formando microcidades em seu interior. Apesar de desconhecer os nomes dos frequentadores ou nunca com eles ter trocado sequer uma palavra, sabia muito sobre a personalidade de cada um. Este tatuador, por exemplo, era um dos mais talentosos em todo o enorme concentrado urbano em que viviam, mas não tinha nenhuma credibilidade por ter aprendido a tatuar em seu próprio corpo, tornando-o um emaranhado de desenhos tortuosos e de baixa qualidade, principalmente em suas partes mais visíveis. Por outro lado, gostava de morar em um lugar tão grande, onde sabia que poderia recomeçar simplesmente mudando de bairro. Ou se iludia com essa ideia. Parte das pessoas de emprego medíocre é livre em sua mente, apesar de escravas do dinheiro, da rotina medíocre que exercem pelo necessário para sobreviverem. Outras pessoas, de empregos melhores, são meros escravos do tempo. Há ainda os que são escravos de sua própria vulgaridade. Já parou para pensar quantas pessoas são autônomas o bastante para, caso estejam insatisfeitas com sua vida, poderem simplesmente alterá-la por completo?
Felizmente, o tatuador se dirigiu ao jukebox, escolhendo uma canção a qual deixarei por conta de sua própria imaginação. Desta forma, a mulher poderia se mover lentamente, de acordo com o peso do cansaço em seus olhos. Às vezes, enquanto dançava, pensava que não precisava deste segundo emprego. O dinheiro sequer era compensador, boa parte das gorjetas ia ao seu patrão. Não possuía família. Não possuía grandes ambições. De certa forma, sequer possuía responsabilidades. Mas era incrível o poder do cansaço. Enquanto dançava, observava as pessoas ao seu redor e o constatava. Seu patrão, fumando um cigarro, conversava sorridente com um grupo de amigos, provavelmente a oferecia. Imaginava se ele sequer sabia seu nome, provavelmente pensava nela como a mulher de seios menores, ou da bunda maior, de acordo com seu humor. O tatuador mal assistia à dança, simplesmente tomava mais uma dose de cachaça. Provavelmente havia tirado pouco dinheiro naquela semana, ou estaria bebendo whisky. No balcão, mais próximo a ela, outro frequentador: mais bem vestido, sabia que este era viciado em jogos, compreendia sua infelicidade: quanto mais gostasse de algo, mais provável seria perdê-lo. Cabisbaixo, procurava finalizar sua bebida antes que a perdesse em alguma aposta. Para ele, era horrível pensar no amanhã.
Porém, já não sentia raiva daquelas pessoas. Sabia que cada um estava ali apenas por um motivo, pelo mesmo motivo que ela: o cansaço. Também já não a desprezava pela mesma razão; a idade comera sua arrogância, a possibilitara notar que não era tão diferente deles, e que suas posições também não eram de todo diferentes, desprezando-se o que socialmente se pensava. No fim das contas, eram apenas pessoas no final dos seus dias, de suas rotinas, cansadas demais para mudar, indiferentes demais para julgar. Não há certo ou errado quando se está cansado demais, apenas procura-se mover para frente, continuar o caminho que se construiu. Dançar, não importa a canção, não importa a companhia, se há qualquer companhia, se há qualquer sentido, se a música é boa ou ruim. Move-se para frente.
Ao finalizar sua dança, sem qualquer freguês que pretendesse com ela algo além, a mulher se vestiu e, na saída da espelunca na qual trabalhava, pensou em acender um cigarro. Mas não teve ânimo para tal. Não é de se estranhar que haja, na vida, vícios, sendo esta própria um vício. Mas que de tão viciosa, comia seus próprios vícios, e seu próprio amor por viver.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Grande inquisidor

É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A acção passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante1.Em França, os "clercs de la basoche"2e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espectáculos ingénuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste género, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam- se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles "de que até Deus se esquece" - expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?" -, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é justa!". Pois bem: o meu poemazito teria sido deste género, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: "Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores".

É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: "Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev3, que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda".

Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A acção passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, "como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei4.Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança - e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:

- És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez - diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.

- Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã - objectou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. - É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?

- Admite essa última hipótese - respondeu lvã, rindo - se o realismo moderno te tornou a esse ponto refractário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
- E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?

- Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos." Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. "Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?" - pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: "Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" - acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completámos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
- Não compreendo outra vez - interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma
troça?

- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objectivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
- Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
- Mas é o ponto capital do discurso do velho.

"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada - continua ele - falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te "tentou". É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as "tentações" que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o facto de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: "Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.

"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.

"Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: "Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?" Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. "Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!" Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: "Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram." Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: "Fazei de nós escravos, mas alimentai- nos." Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! Também se hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas que há-de ser dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se finalmente dóceis. Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo- nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade - indivíduos e colectividade - : "diante de quem se inclinar?" Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reuna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!

Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: "Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai." Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-to: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de chamá-Lo com desespero e esta blasfémia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfémia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exactamente Oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitámos Roma e o gládio de César e declarámo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objectivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.

No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter connosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra "Mistério!" Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua lib erdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão- de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-à tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.

Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por biliões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles.

Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvámos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o número". Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um
sorriso nos lábios.
Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes
tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.

- Mas... é absurdo! - exclamou, corando. - O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.

- Espera, espera - disse-lhe rindo lvã. - Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
- Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas
vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.

- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?

- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quase zangado. – Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
- Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça". Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército "ávido do poder apenas para os vis bens", não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia directriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o
ar de um autor que não suporta a tua crítica.

- Talvez tu sejas também mação - disse de súbito Aliocha. - Não acreditas em Deus - continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça. - Como acaba o teu poema? - prosseguiu ele, baixando os olhos. - Não há mais nada?

- Há. O fim que eu tinha pensado era este: "O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
- E o velho?
O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.

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Capítulo, "O grande inquisidor", da obra "Irmãos Karamazov" de Dostoievski.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Presente

http://www.youtube.com/watch?v=zH8-lQ9CeyI

Antes fechava os olhos em alívio de saber que estava certo. Depois, fechava os olhos em lamentação por saber que estava errado. Hoje, fecho os olhos por não saber distinguir as direções.

O Hoje e o amanhã são como duas casas que dividem a mesma parede como fundação.
Alguém que vive o agora nunca pode vislumbrar o futuro para ser feliz. Olhando para frente notamos que o presente é inútil, que todos os erros são meros fatos cômicos desde que tudo dê certo, que todo deslize é fatal se tudo dá errado. Notamos que, em algum ponto, nossos sonhos se transformam em ruínas e nosso presente nos consome.

E eu, que sempre sonhei em ser escritor,
Vejo hoje que meu lápis era uma faca e meu papel era meu próprio corpo.
E que as marcas mais permanentes são as que provocamos em nós mesmos.

E eu, que sempre sonhei em escritor, já não posso mais dar aos meus textos um fim.

E a mim, que sempre me julguei tão forte, resta apenas a beleza do horizonte formado pelo que não se identifica.
Cegando-me ao futuro, vejo qualquer possibilidade.
Aprendo a confiar na sorte.
E passo a admirar o acaso.


Marcelo Riceputi

domingo, 14 de agosto de 2011

Dia dos pais

http://www.youtube.com/watch?v=YSEUpC7WToI

Já tive minhas várias diferenças com meu pai, mas hoje vejo que é alguém que amo indubitavelmente. Queria estar em casa comemorando o Dia dos Pais com ele, mas como não posso, fica aqui minha singela homenagem. Caras como ele já não se fazem mais. Valorizem mais o pai que vocês têm em casa.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Mudo

O cigarro vai queimando
Continuo procurando
O tom certo pra canção

Vou sambando, até sem jeito
Sem escolha, sem conceito
Vazio de coração

Por dentro vou ardendo
Procurando um alento
Para lembranças sem por quê

E o cigarro vai queimando
Sem ritmo, sem canto
Sem encanto, sem razão

Um dia pego o ritmo
Rimo um passo, um sentido
Um amor, uma ilusão

Pois o samba é assim mesmo
Você dança, estufa o peito
E a tristeza é um perdão

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A política

A política impede a abstração livre da Arte.

A política direciona a Ciência por caminhos incoerentes, tornando seu desenvolvimento útil lento e chulo.

A política iguala a Religião a um opióide.

A política subverte o Direito em uma arma.

A política mata mais do que a Fome.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Olhos desbotados

O homem se apoiava com um dos cotovelos no balcão. Em sua outra mão, um copo de uísque. Sua maquiagem, borrada em alguns pontos, escorria e revelava sua falsa pele. Seu verdadeiro nariz jazia no chão. Não parecia triste. Apatia. Seus olhos encontravam cada traço em falso na madeira do balcão. Não sentia medo, não sentia fome. Encontrava-se naquele estado em que se chama a atenção por sua condição lastimável acima do que se passa por sua cabeça. Suas olheiras se misturavam a traços brancos de tinta barata. Parecia pensar em algo, causava tal impressão até a si mesmo, que não conseguia identificar do que se tratava. Imagens. Milhares de imagens, frames de milésimos de segundos, borrados, inidentificáveis, velozes, vis. Em contraste com sua pele maltratada e sua barba por fazer, seu sorriso era impecável. Era necessário. Não tinha certeza disso. Certeza. Certeza. Já não podia ter certeza sobre nada. Tinha um maço de cigarros barato em seu bolso. Ninguém fumava aquela marca. Normalmente teria vergonha de tirá-lo naquele local, mas o fez mesmo assim. Lembrou-se de que não podia fumar ali. A lei se preocupava que ele incomodasse os outros com banalidades. Olhou ao seu redor e várias pessoas estavam fumando, ainda assim. Ainda assim, perdeu a vontade de fumar. Estava ficando tarde, precisava ir pra casa. Seu copo dançava em sua mão. Acordaria cedo no outro dia. Olhá-lo era como olhar o mar. O garçom perguntou-lhe algo sobre uma mulher tê-lo abandonado. Não respondeu. Não estava absorto em pensamentos, mas estes sim se espalhavam em migalhas por cada porção de seu corpo. Precisava procurá-los em lugares que não a cabeça. Qualquer coisa era melhor que seu apartamento. Não dormiria se fosse preciso. Se preciso fosse, não estaria ali. Esqueceu o que era preciso. Uma última piada e, então, iria pra casa.

“Certa vez, conheci uma garota. Como era linda. Cada curva de seu corpo era deliciosa. Ia, porém, muito além disso. Ela sabia como libertar a cabeça de um homem. Convenceu-me de que poderia ser mais feliz dentre quatro paredes do que fora. Ia a festas sozinho, não conhecia pessoas, não bebia. Parava a admirar as luzes irregulares que se misturavam ao som e me faziam transbordar. Não precisava de nada, de ninguém. Não precisava de dinheiro ou roupas. Desconhecia marcas. Não fazia questão de minha consciência. A política era uma merda. Eu estava além das pessoas. Nada havia de errado com a vida vazia, que tudo significava se me sentisse bem com ela. As ruas mais sujas eram as mais belas. As mais vazias, as mais seguras. Quanto mais me encantava, mais me atraía. Quanto mais me atraía, mais transbordava. Eu era a única coisa que significava algo no mundo. Nós. Ela era parte de mim. Parte de toda esta complexidade que justificava o mundo, dava formas à vida. Cada lugar era apenas um detalhe, um esboço a ser preenchido por nós. Os músicos compunham somente para que montássemos nossas trilhas sonoras. Os escritores somente escreviam para que se identificassem conosco. As pichações nos muros eram apenas enfeites para fotografias. Os papéis eram apenas espaços para nossa benevolência em compartilhar experiências aos que tentavam entender por que existiam. Depois de um tempo, nem os usávamos muito. Não importava a qualidade dos cheiros e dos gostos, mas sua excentricidade. À música, bastava sua profundidade. Aos olhos, bastavam sua arrogância expressiva. As olheiras eram belos sinais de pensamento excessivo. Mas o que era ruim não torturava, apenas indicava o caminho do que era especial. Corríamos mais rápido do que a vida e, muito em breve, a alcançaríamos. Não exigiríamos explicações, porque já entenderíamos tudo. Apenas caçoaríamos dela, por sua pretensão em ser tão misteriosa. Debochávamos de tudo quanto fosse inferior, aumentando à medida de seu grau de inferioridade, até cessar em certo ponto, no qual atingisse o desprezível. No final, porém, era tudo um grande desprezo. Haver explicações ou significados era tudo uma besteira que estava abaixo de nossos pés. Flutuávamos no mundo que criávamos para nós sem sequer percebermos. As paredes se tornavam mais grossas, esquecíamos o que era o mundo real. Sorríamos ao seu lado vil como malucos, ignorávamos seu lado bom por o considerarmos vulgar demais perante a nossa criação. Nossas cores escuras brilhavam mais do que qualquer colorido de qualquer tecido rasgável, triturável, obsoleto. Nossas mentes tinham nojo de compartilhar qualquer sentimento com essas mentes mesquinhas de preocupações chulas dos demais seres humanos. Qualquer simples conversa – um pedido em um balcão de padaria ou uma pergunta profissional – nos causava náuseas. A única coisa que odiávamos era este pequeno elo indestrutível que nos ligava à vida comum por questão de sobrevivência. Alternávamo-nos entre empregos banais sempre sorrindo, pensando no quanto cuspíamos na humanidade por sermos tão talentosos e não fornecermos qualquer tipo de progresso. Achamos a cura e queríamos que todos os outros queimassem na doença, pra que ainda houvesse arte. Se todos fossem como nós, tudo seria desespero. Precisaríamos encontrar outro caminho. Éramos um universo indivisível, indisponível. Duas pessoas em um corpo estrangeiro inserido em meio a uma raça fétida”.

A medida que desenvolvia a piada, um estranho brilho acendia nos olhos do homem. Já não parecia mais estar encostado em um balcão, em um bar. À sua frente, uma cortina se abria em uma enorme janela, e o céu escuro contrastava com o intenso brilho das estrelas.

“Com o tempo, algo pareceu estar errado. O universo se dividia, como se nos castigasse. Lembrava-nos de que éramos humanos. Apenas um de nós podia saber toda a verdade, compreender tudo. O outro deveria ser mero espectador, sentir-se feliz pela oportunidade de estar ao lado de alguém que a tudo compreendia, que reunia em si o significado de tudo. Voltávamos um contra o outro, e eu era a parte mais fraca do dueto. Em muito pouco tempo, sucumbi, tornei-me um escravo. Meu desespero era apenas uma questão de tempo, até que eu me tornasse alvo de pena. Era apenas questão de tempo até que fosse abandonado. Foi o que aconteceu. O vazio que sempre estivera em mim, comprimido como uma pequena e poderosa esfera maciça e negra, agora se expandia lentamente, imprimia violenta força a meus órgãos, encurtava meus pensamentos, desfazia minha lógica. Escapava em sangue, em indiferença ardida. Os objetos que antes ignorava, cavava com unhas em busca de qualquer conteúdo que se perdera no tempo. Vagava pelas ruas cabisbaixo, esperando que em uma falha de sentido, trombasse com ela, também cabisbaixa, perdida sua arrogância, e ela voltasse a me possuir, me ajudasse a reconstruir o que antes havia de tão grandioso e eu já não me lembrava. Meus olhos eram tomados de tal vazio, que tinha a sensação de não fazer diferença olhar ou não a um objeto. Fechá-los ou abri-los. Minhas perspectivas esvaziaram-se até que não fizesse diferença sonhar ou manter-se lúcido e acordado. Minha vontade era tão curta que a voluntariedade de meus movimentos perdia seu propósito. A cortina se fechava a minha frente, mas não queria terminar o show. Apenas não sabia como continuá-lo.”

O brilho que antes se acendia atordoante nos olhos do homem, agora descendia progressivamente. A cortina fechava-se a sua frente, sem provocar qualquer reação. Procurava em seu pano algum detalhe que pudesse prender sua atenção, em vão. Já os conhecia de cor.

“Foi assim que conheci a infelicidade. Assim me apaixonei por ela. Assim ela me abandonou".

Com uma golada, o homem terminou mais um de seus incontáveis copos, que seria ainda um grão de areia diante dos muitos que viriam. Percebeu que havia se esquecido de dar à sua história qualquer graça, pra que ao menos pudesse arrancar de terceiros os sorrisos que já não podia acender espontaneamente. Mas isso não importava. Não estava em horário de serviço.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Idade



Sempre temos a sensação de que, a cada dia, envelhecemos mais rápido.
A verdade é que, quanto mais envelhecemos, mais efêmeras são as coisas.
A semana vira fim de semana.
O mês vira salário.
O ano vira férias.
Até que tudo fica no máximo do tamanho de um sorriso.

Depois, quando olhamos pra trás, algumas coisas, de tão pequenas, ficam enormes.
Tentamos explicar, mas ninguém nos ouve.
Acho que só a idade convence mesmo.

sábado, 9 de julho de 2011

"Heroes" - David Bowie

http://www.youtube.com/watch?v=2WNC6ltZe0I

"I, I can remember
Standing by the wall
And the guns, shot above our heads
And we kissed, as though nothing could fall
And the shame was on the other side
...
Oh, we can beat them, for ever and ever
We could be heroes, just for one day."

David Bowie - Heroes

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Society

http://www.youtube.com/watch?v=pRUGvArWXLk

"(...) I woke up as the sun was reddening; and that was the one distinct time in my life, the strangest moment of all, when I didn't know who I was - I was far away from home, haunted and tired with travel, in a cheap hotel room I'd never seen, hearing the hiss of steam outside, and the creak of the old wood of the hotel, and footsteps upstairs, and all the sad sounds, and I looked at the cracked high ceiling and really didn't know who I was for about fifteen strange seconds. I wasn't scared; I was just somebody else, some stranger, and my whole life was a haunted life, the life of a ghost. I was halfway across America, at the dividing line between East of my youth and the West of my future, and maybe that's why it happened right there and then, that strange red afternoon".
Trecho the "On the Road" - Jack Kerouac

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Saudades

É uma linha tênue, o que há entre a solidão e a saudade.
Poderia dizer que a solidão é sentir falta de algo que não se conhece, enquanto a saudade, sentir falta de algo conhecido. Estaria sendo simplista.
É saudade sentir falta de algo que te deixa curioso a todo tempo, te surpreende e te completa de alguma forma que não se compreende. A saudade arde o prazer de se estar vivo, de querer conhecer, viajar, acordar. Saudade do toque, do arrepio, do que te faz repensar tudo o que há sobre si próprio.
É esta a curiosa diferença entre a saudade e a solidão: a presença. Afinal, a saudade é uma presença, uma indispensável presença.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Trecho de "On the road" - Jack Kerouac

"(...) They rushed down the street together, digging everything in the early way they had, which later became so much sadder and perceptive and blank. But then they danced down the streets like dingledodies, and I shambled after as I've been doing all my life after people who interest me, because the only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars and in the middle you see the blue centerlight pop and everybody goes 'Awww!'"

terça-feira, 26 de abril de 2011

Um segundo

Aquele segundo. Não importa a duração, se dez ou oitenta minutos, todas as pessoas estão, invariavelmente, mergulhadas, procurando aquele segundo, rezando por crenças nas quais elas próprias não acreditam, para que este segundo, que nem sempre se manifesta, aconteça. Um segundo de silêncio. Não como aquele hipócrita um minuto de silêncio pela morte de alguém importante, em que as pessoas estão cumprinto seu papel social enquanto pensam merda em suas cabeças. Um segundo de puro silêncio. Esquece-se todos os banais ao seu redor, esquece-se os pensamentos que te tornam banais e fazem com que você se odeie. Esquece-se a pessoa banal embaixo de você. Um segundo. Sozinho, ainda que não esteja. É como se sente a pessoa que se afoga, quando consegue emergir por um instante, ainda que saiba que não há chances de sobreviver. A cabeça sobressai ao mar, a tempestade e as ondas silenciam, nenhum pensamento senão o prazer de respirar. Os braços relaxam por um segundo e se entregam à morte. As pernas já não se agitam. Um segundo. Tic. Não completa-se o barulho do relógio. E então, ruídos, barulho, tempestade, banalidades, insegurança, diversões sociais que não enganam seu próprio corpo. Um segundo e então, a vida. Em toda uma vida, uma pessoa consegue escapar de tudo por, digamos entre dois a oito minutos. Um segundo. E cada vez que este segundo aparece, mais vezes se deseja e mais despreza-se os outros segundos demorados e inúteis da vida. Tenta-se parar o tempo, em vão. Tac.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

4:27



4:27. Quatro e vinte e sete. Meu despertador tocou mais cedo, não interessa por quê. Levanto-me com meus olhos quase fechados, tento olhar ao meu redor. Meu quarto toma a forma a qual desejei por toda a vida e eu a admiro por pequenos buracos lacrimosos e cansados. O sol não haver nascido não me chama atenção. O sol está sempre posto em mim, e a luz não faz qualquer diferença.
Fiz café e andei por meu apartamento. Meu sofá estava coberto de poeira. Minha cama estava coberta de poeira. Meus cadernos, minha câmera, minha guitarra. Tudo em que tocava se convertia em pó no instante seguinte. A brisa ligeiramente congelante da manhã levava tudo e dava ao pó formas delicadas do acaso. Eu assistia a tudo isto sem sorrir. Não era como um dos pesadelos que costumava ter quando adolescente. Estava realmente sozinho. Poeira e sonhos. Passado e futuro. Meu corpo era invadido de sensações que fugiam de meu controle. E os belos finais de meus textos ficaram presos em outrora. E no futuro.
É bom acordar antes de a vida começar, onde há espaço para tudo.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Los Heraldos Negros

"Hay golpes en la vida, tan fuertes… Yo no sé.
Golpes como del odio de Dios; como si ante ellos,
la resaca de todo lo sufrido
se empozara en el alma… Yo no sé.

Son pocos; pero son… Abren zanjas oscuras
en el rostro más fiero y en el lomo más fuerte.
Serán tal vez los potros de bárbaros atilas;
o los heraldos negros que nos manda la Muerte.

Son las caídas hondas de los Cristos del alma,
de alguna fe adorable que el Destino blasfema.
Esos golpes sangrientos son las crepitaciones
de algún pan que en la puerta del horno se nos quema.

Y el hombre… Pobre… pobre! Vuelve los ojos, como
cuando por sobre el hombro nos llama una palmada;
vuelve los ojos locos, y todo lo vivido
se empoza, como un charco de culpa, en la mirada.

Hay golpes en la vida, tan fuertes … Yo no sé!"


Cesar Vallejo

(...)

Vendi-me para ti como objeto de luxo
Propaganda enganosa de prazo delimitado
Horrorosa criança abandonada às ruas
Pedindo esmola aos mendigos ao lado

Prometi-lhe a poesia
E, afinal, a ganhei de ti
Um fardo

quinta-feira, 7 de abril de 2011

(...)



"From a certain point onward, there is no turning back. That is the point that must be reached.” — Franz Kafka

Cartas



Gosto de cartas curtas e banais. Que falem sobre o clima ou a cidade. Elas têm o poder de acender a saudade e ao mesmo a presença; nos contornos das palavras, no calor de sua caligrafia. Sem precisar pensar, confortavelmente, como é o sentimento de se estar de verdade com alguém. Conhecer cada curva das letras, poder reler em um tempo tão breve quanto a duração de um beijo. Do primeiro, do último, do póstumo.

domingo, 13 de março de 2011

Anotação de 18/10/2010

Se você para por uma viagem e olha pra trás na sua vida, para as inúmeras fases boas e fases ruins, ainda que momentos singulares de tristeza ou felicidade, você consegue perceber que não há nada que possa te acontecer e você não possa superar assim como não há felicidade que você não possa absorver.


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Sempre carrego comigo, em viagens, bloquinhos de papel pra fazer anotações de coisas que quero transformar em textos. Encontrei perdida esta anotação de 18/10/2010, de uma viagem entre Rio de Janeiro e São Paulo. Resolvi simplesmente colocá-la aqui, ao invés de transformá-la em um texto.

Dedico aos meus amigos do GD Fuckers.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Time of your life



http://tinyurl.com/yh9spe3

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Muros e Grades

http://www.youtube.com/watch?v=Vfq-z24wGnw

Este texto seria completamente desnecessário se eu andasse com uma câmera na mochila. Na verdade, ele é totalmente ineficaz perto do que eu poderia passar com uma única fotografia. Uma fotografia que vive em minha cabeça, uma imagem nítida. Quase posso tocá-la.

Tudo isto, este enorme fato singular, aconteceu em uma de minhas viagens entre Juiz de Fora e Niterói. Uma mais particular, porque, enquanto eu colocava meus fones no ouvido, dentro do ônibus, o motorista veio nos comunicar, irritado, que não poderia mudar seu trajeto como muitos estavam pedindo. Pelo que pude entender, chegaríamos em um horário de engarrafamento e estava rolando uma onda de assaltos na Av. Brasil.

Na época, as minhas viagens de Juiz de Fora a Niterói eram invadidas por uma tranquilidade que até hoje não consigo compreender. Eu saía de Juiz de Fora onde minha vida seria tranquila em relação à minha família e me dirigia pra Niterói, onde minha vida parecia entrar em uma tempestade. Ainda assim, enquanto eu não pisasse com os pés no lado de fora do ônibus, eu era invadido por uma vontade de ouvir um som nos meus fones, ficar deitado tranquilamente na poltrona, raramente gostava de ler um livro, apenas quando eu viajasse à noite. Mas ainda assim, o que eu curtia mesmo era ficar olhando a paisagem e ouvindo música. Havia pontos da viagem que eram meus favoritos. A Serra de Petrópolis, que é simplesmente incrível. Os viadutos do Gentileza, que era o momento em que me tocava que estava chegando ao Rio. Lembro-me de uma favela interminável e, erguendo-se entre suas construções, um outdoor exaltando a beleza do Maracanã. Como eu tinha vontade de tirar uma foto disso. O Rio é realmente muito curioso, não? Gostava também da ponte Rio-Niterói, Ponte Presidente Costa e Silva. Era o momento em que me sentia como se estivesse observando o Rio de um lugar muito alto. Enquanto eu não enxergava nenhum ser humano, mas apenas as construções, ficava imaginando o que pensaria alguém que estivesse tão longe que nos julgasse apenas pelo que fazemos do mundo, pelos prédios, favelas ou pelas avançadas elaborações de engenharia que se pode ver na Baía de Guanabara.

Morei no Ingá, muito próximo ao prédio do Direito da UFF. “Em frente ao Clube Português”, era como eu descrevia o lugar para os taxistas e conhecidos. Morava entre duas favelas e via muita coisa enquanto ficava em silêncio. Esta foi a época em que decidi parar de julgar, mas apenas observar, e foi uma experiência incrível. Morar perto de favelas não é igual à impressão que temos por relatos e pelos jornais, mas ao mesmo tempo não é tão diferente dela quanto dizem os cariocas. Lembro-me de costumar ir buscar um hambúrguer logo na entrada de um dos morros, e ficar por lá comendo, sem ter medo. Dizem que os traficantes não permitem assaltos na entrada da favela, é um lugar mais seguro do que algumas ruas depois.

Perto de minha casa uma mulher morava na rua, altamente magra, viciada em crack. Lembro-me de uma vez em que ela, tremendo e com raiva nos olhos, passou do meu lado me olhando e gritando comigo, me ameaçando. Mas fora do efeito de drogas, ela me trouxe uma das mais tristes lembranças de minha vida. Um dia em que uma tristeza me invadiu de tal forma que não consegui ficar na faculdade, saí no meio da aula e, enquanto me dirigia pro apartamento, ela me abordou, chorando, dizendo que devia quinze reais para os traficantes e que queria parar de usar as drogas. Você até pode me julgar inocente, mas eu senti de tal forma a sinceridade naquele dia, ainda que ela pudesse mudar de idéia por efeitos da abstinência, ainda assim acreditei plenamente em suas intenções. Mas outra coisa que vocês podem não entender direito, mas nesta época eu realmente não tinha dinheiro pra nada. Era tudo contado, se eu queria sair em um fim de semana, tinha de planejar antes por um tempo. Eu realmente não tinha quinze reais pra dar, e tudo o que eu pude fazer foi passar pelo porteiro olhando para o outro lado, porque as lágrimas já haviam invadido meus olhos antes que eu pudesse girar a chave do apartamento e entrar. Sempre vou me sentir em dívida com esta mulher, que sequer sei o nome.

Lembro-me que, fim de semana, via pessoas oferecerem drogas perto da Faculdade de Direito (o morro era literalmente do lado, sua subida ficava na esquina da faculdade). Que imagem estranha. Às vezes entrava em sala e ouvia meus professores falarem, excelentes professores, mas como poderia dar algum crédito às suas falas se via coisas como essa logo em frente ao lugar em que estudava?

Sempre me pegava conversando sobre futebol com os moradores, em um bar próximo à faculdade de Direito. Acho que me sentia melhor conversando com eles do que com as pessoas da minha sala. Achava estranha a impressão que tinha de que as pessoas da minha sala (salve raras e comuns exceções) nunca haviam sofrido na vida; que assunto posso ter com uma pessoa assim?

Havia também o toque de recolher. Depois das dez horas, em dias de semana, era perigosíssimo sair de casa. Eu fui o último da república a aceitar isto. Um dia esqueci-me de comprar comida e, faminto, descobri que não havia nada estocado. Por volta das 23h, resolvi sair e ir ao Sendas (havia um muito próximo de nossa casa) comprar algo pra comer. Por questão de puro acaso não fui assaltado. Rua deserta, um homem me seguindo, mas um carro de polícia estava parado logo a frente, averiguando algum outro incidente, o que o fez o homem parar. Tive de esperar quase uma hora no Sendas até estar certo de que podia voltar pra casa. Melhor dizendo, “casa”.

Mas em síntese, esta época fez com que eu perdesse todo o preconceito com favelas e seus moradores. São pessoas como em qualquer outro lugar, pessoas as quais precisamos compreender. Em alguns pontos, lamentar, em outros, admirar, como quaisquer outras pessoas.

Uma sensação que eu adorava nesta época era a de sair na rua à noite para usar o orelhão. Inicialmente eu não tinha telefone ou celular, o que era simplesmente sensacional. Demorei muito tempo pra aceitar o celular, acho horrível saber que você pode ser encontrado a qualquer instante (agora que tenho um, nunca atendo). Nesta época eu aparecia quando quisesse, à noite, em um orelhão, como em filmes antigos. Tenho até hoje, guardados, todos os cartões de orelhão que usei.

Por toda essa mistura de imagens e sensações, “Muros e Grades” nunca saiu do meu MP4. Estava sempre ouvindo. Sentia a música no momento em que saía de toda a segurança do meu apartamento à noite pra uma rua perigosa, pra usar o orelhão, mas ao mesmo tempo, quando chegava em casa novamente, lembrava de tudo o que eu via por ali em todos os outros horários de todos os outros dias. Quem é o vilão? Quem é o mocinho? Quais são as armas? Existem regras?

De volta ao ônibus, lá estávamos nós, nos aproximando da Av. Brasil. Enquanto uns se benziam mil vezes, outros escondiam celulares, cordões, brincos e outros objetos de valor. Em meio aquele clima de pura tensão, havia um cara estranho, portando apenas uma mochila da Juventus de Turim com algumas camisetas, um caderno e um livro, parado, ouvindo música, estranhamente despreocupado: eu. Acho que se assaltassem aquele ônibus, nem passariam por mim. Pra ser sincero, minha vida também não estava valendo tanto assim pra eu me preocupar com ela.

Eis que em um momento, no engarrafamento, a tensão era total. O ônibus estava parado, minha cabeça encostada no vidro, quando meu olhar distraído despertou e encontrou um cara, provavelmente da minha idade, sem camiseta, os olhos queimando de ódio e ao mesmo tempo incompreensão. Olhávamos um ao outro nos olhos e tudo o que nos separava era um vidro artificial. Nada mais, é incrível. NADA MAIS nos separava. Vivíamos no mesmo mundo, no mesmo país, na mesma cidade, tínhamos a mesma idade, éramos até parecidos fisicamente. Só havia uma coisa entre nós: vidro. Poderia ser um muro, madeira. Ficamos nos observando por muito tempo, sem desviar os olhos, até o ônibus conseguir movimentar-se de novo e nossas estradas seguirem, cada uma pro seu lado. Este instante me fez realmente sentir “Muros e Grades”, é o instante de minha vida que sempre me vem à cabeça quando ouço a música. Fiquei pensando o que aconteceria ali se aquele muro tão artificial não existisse. Não consegui visualizar o que aconteceria, só pude perceber que eu não me importaria.