sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Os olhos do vício

O vício assiste ao mundo, com pesar.
O bar esvaziava à medida que a madrugada o invadia. A garçonete, com sua roupa vulgar e sua cara estereotipada, servia sua última dose de whisky. Ela sabia que aquele era o momento em que seu patrão transformava o balcão em um improvisado palco, momento em que ela se transportava ao seu segundo emprego. Torcia para que o tatuador - cujo nome desconhecia – fosse ao jukebox, para que pudesse dançar algo mais lento e agradável. Era horrível quando qualquer homem novo o fizesse, colocando algo vulgar para se divertir com os amigos. É estranho como uma cidade cresce até certo ponto, diminuindo a partir de tal, formando microcidades em seu interior. Apesar de desconhecer os nomes dos frequentadores ou nunca com eles ter trocado sequer uma palavra, sabia muito sobre a personalidade de cada um. Este tatuador, por exemplo, era um dos mais talentosos em todo o enorme concentrado urbano em que viviam, mas não tinha nenhuma credibilidade por ter aprendido a tatuar em seu próprio corpo, tornando-o um emaranhado de desenhos tortuosos e de baixa qualidade, principalmente em suas partes mais visíveis. Por outro lado, gostava de morar em um lugar tão grande, onde sabia que poderia recomeçar simplesmente mudando de bairro. Ou se iludia com essa ideia. Parte das pessoas de emprego medíocre é livre em sua mente, apesar de escravas do dinheiro, da rotina medíocre que exercem pelo necessário para sobreviverem. Outras pessoas, de empregos melhores, são meros escravos do tempo. Há ainda os que são escravos de sua própria vulgaridade. Já parou para pensar quantas pessoas são autônomas o bastante para, caso estejam insatisfeitas com sua vida, poderem simplesmente alterá-la por completo?
Felizmente, o tatuador se dirigiu ao jukebox, escolhendo uma canção a qual deixarei por conta de sua própria imaginação. Desta forma, a mulher poderia se mover lentamente, de acordo com o peso do cansaço em seus olhos. Às vezes, enquanto dançava, pensava que não precisava deste segundo emprego. O dinheiro sequer era compensador, boa parte das gorjetas ia ao seu patrão. Não possuía família. Não possuía grandes ambições. De certa forma, sequer possuía responsabilidades. Mas era incrível o poder do cansaço. Enquanto dançava, observava as pessoas ao seu redor e o constatava. Seu patrão, fumando um cigarro, conversava sorridente com um grupo de amigos, provavelmente a oferecia. Imaginava se ele sequer sabia seu nome, provavelmente pensava nela como a mulher de seios menores, ou da bunda maior, de acordo com seu humor. O tatuador mal assistia à dança, simplesmente tomava mais uma dose de cachaça. Provavelmente havia tirado pouco dinheiro naquela semana, ou estaria bebendo whisky. No balcão, mais próximo a ela, outro frequentador: mais bem vestido, sabia que este era viciado em jogos, compreendia sua infelicidade: quanto mais gostasse de algo, mais provável seria perdê-lo. Cabisbaixo, procurava finalizar sua bebida antes que a perdesse em alguma aposta. Para ele, era horrível pensar no amanhã.
Porém, já não sentia raiva daquelas pessoas. Sabia que cada um estava ali apenas por um motivo, pelo mesmo motivo que ela: o cansaço. Também já não a desprezava pela mesma razão; a idade comera sua arrogância, a possibilitara notar que não era tão diferente deles, e que suas posições também não eram de todo diferentes, desprezando-se o que socialmente se pensava. No fim das contas, eram apenas pessoas no final dos seus dias, de suas rotinas, cansadas demais para mudar, indiferentes demais para julgar. Não há certo ou errado quando se está cansado demais, apenas procura-se mover para frente, continuar o caminho que se construiu. Dançar, não importa a canção, não importa a companhia, se há qualquer companhia, se há qualquer sentido, se a música é boa ou ruim. Move-se para frente.
Ao finalizar sua dança, sem qualquer freguês que pretendesse com ela algo além, a mulher se vestiu e, na saída da espelunca na qual trabalhava, pensou em acender um cigarro. Mas não teve ânimo para tal. Não é de se estranhar que haja, na vida, vícios, sendo esta própria um vício. Mas que de tão viciosa, comia seus próprios vícios, e seu próprio amor por viver.