segunda-feira, 22 de novembro de 2010

(...)



Nenhuma revelação pode ser tão dolorosa quanto uma descoberta do passado. Minha única coragem e tristeza.
Por tanto tempo pensei que a saudade que sinto de você fosse meramente falta de seu sexo. Um dia, uma noite, encontrei uma prostituta idêntica a você. Observando seus movimentos sensuais, me vi à procura de qualquer gesto sutil que escondesse uma lembrança sua, viva, sorrindo pela manhã.
Sou como o vinho: amo tanto quanto sou vulgar.

domingo, 14 de novembro de 2010

O coração

Há muito venho adiando uma história que não deixa de me atormetar sequer por uma noite. Porque ninguém acreditaria em minhas palavras, ou porque sei como um momento pode se tornar infeliz ao transformar-se em passado. Dentre estes momentos, entre diversos felizes ou tristes, não há qual possa ser mais assombroso do que algo que não possamos compreender e tenha se dado diante de nossos próprios olhos.
Aconteceu-me em uma época muito confusa. Estava desempregado, em grande necessidade de dinheiro. Costumava tomar meus cafés da manhã em uma padaria no mínimo peculiar, em uma esquina qualquer de Niterói. Raramente conversava, as pessoas estavam sempre estressadas. Em contraste, havia este velho. Nunca o havia visto ter uma péssima manhã, estava sempre de bom humor e conversava com todos de forma entusiasmada, qualquer fosse o assunto em questão. Ao lado de muito dinheiro, o velho carregava consigo um excelente, porém doente, coração. Nunca havíamos trocado uma palavra sequer, mas sempre me punha a ouvir suas reconfortantes palavras às pessoas ao seu redor, palavras incrivelmente nunca piegas, mas sim vivas. Havia mais vida em cada uma delas do que em qualquer pessoa que se sentasse ao seu redor, e às vezes me espantava a impressão de que suas palavras fizessem com que as pessoas respirassem, ainda que o ônibus lotado que tivessem de tomar logo em seguida rapidamente removessem este resquício de vida de seus interiores.
Certa vez este velho chegou à padaria mais tarde que de costume, com um sorriso sustentado à força em sua boca e um grande abatimento em seus olhos. Sentou-se ao meu lado, pediu seu "pingado" e seu "pão na chapa", como de costume, e ficou em silêncio. Incrivelmente, nos olhávamos e era como se um diálogo já tivesse se iniciado entre nós há minutos, apesar do longo silêncio.
-Meu coração vai parar de bater dentro de alguns dias e eu não estou preparado para morrer - disse ele.
Aquilo me comoveu, mas não com sua situação, e sim com o quão injusto é o fato de não haver um sentido no mundo. Seria muito mais prudente que a morte levasse um infeliz como eu a privar aquele velho de seu enorme amor pela vida. Permaneci em silêncio, sem saber o que dizer.
-Você sabe, eu tenho muito dinheiro. Talvez, se você pudesse pulsar meu coração até que eu me sinta mais preparado. Posso pagá-lo o quanto for necessário.
Fui pego de surpresa, como você deve estar pensando. Como poderia pulsar seu coração? Seria justo que o fizesse? Posso mesmo permitir que um sujeito, em lugar da natureza, decida o momento de sua morte? Enquanto o velho explicava-me sobre um aparelho que me permitira pulsar manualmente seu coração, me vinha à cabeça, além de diversas perguntas como as anteriormente ditas, minha enorme necessidade de dinheiro, além de grande admiração por aquele velho.
O fato é que aceitei. E o que me soava, a primeira vista, monótono e moralmente grotesco, acabou por se mostrar bem diferente. Primeiro, mudei-me para a casa do velho. Passava as noites em claro de forma a mantê-lo vivo, minhas mãos estavam sempre formigando e dormentes, mas sentia nelas um propósito. Assustava-me a velocidade que me era exigida em suas pulsações. Meu coração estava sempre lento, mas aquele velho estava sempre entusiasmado, obrigava-me sempre a manter seu coração o mais rápido que minhas mãos pudessem aguentar, mas sempre o pedia de forma polida e bem humorada.
Foi um momento feliz de minha vida por muito tempo. Era como se nossos sentimentos começassem a se misturar; como se, de alguma forma, o velho mantivesse também minha pulsação. Este foi, na verdade, o problema. A medida que os sentimentos do velho me invadiam, meus sentimentos também pareciam afetá-lo. Aos poucos o velho foi ficando mais cabisbaixo, sempre pedindo que eu acelerasse sua pulsação e, ainda que fizesse meu máximo, continuava infeliz, desanimado para com a vida. Como se percebesse que, por mais que eu acelerasse seus batimentos, seu coração continuava morto, dependente. Nossa vida (já nos referíamos a ela desta forma, como se fosse apenas uma) havia se tornado miseravelmente infeliz. Ele sentia a infelicidade como uma doença transmissível e crescente, enquanto eu me sentia seu eterno carrasco. Talvez eu devesse tê-lo deixado morrer enquanto ele ainda possuía uma boa impressão da vida. Não porque a natureza seja sábia, mas talvez porque o velho tivesse feito uma escolha muito errada.
Enquanto pensava isto, assistia ao velho dormir confortavelmente ao meu lado. Deixar-se falecer por causas naturais é talvez tão imbecil quanto matar-se por ser infeliz. Ainda que nenhuma das duas sejam necessariamente imbecis, mas iguais. O homem deveria escolher o dia de sua morte. Um dia que se divertisse de forma tão simples e reconfortante, que a vida fosse seu travesseiro em sua infância. Depois deste momento, simplesmente colocar uma arma em sua cabeça e atirar, enquanto sorri.
Foi neste momento que passei a diminuir gradativamente a pulsação do velho. Ele não se agitava, ao contrário, parecia confortável como nunca. Talvez estivesse tendo um daqueles sonhos muito infantis que parecem nunca abandonar a cabeça dos adultos. O velho estava com um semblante bonito, como costumava ser quando seu coração não havia o abandonado, enquanto bebia seu "pingado" e comia seu "pão na chapa". Impulsivamente parei sua pulsação. Assisti ao velho, aos poucos, tranquilamente, morrer, sem perder aquele sorriso de seu semblante. Então o beijei e dormi como há nunca não dormia.
Desde este momento, meu falecido coração procura, em palavras, a vida que aquele velho possuía dentro de si.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Letícia



É difícil compreender racionalmente o que outra pessoa sente ou vê. Mas se um dia você quiser entender o mínimo do que uma pessoa sente no instante em que ela está com você, tente respirar no mesmo ritmo que ela e aprecie o que você sente a partir disto. Nada mais.
Todas as pessoas ao meu redor, salve raras exceções, estão tentando se tornar algo e gritar ao mundo o que elas se tornaram, o que elas sempre foram. Quando eu penso em apedrejar minha existência medíocre em meio a isto, fechar os olhos e me trancar em algum lugar, várias imagens me vêm à cabeça.
O olhar de minha mãe, transbordando um amor tão puro que eu, pessoa tão corrompida e inferior, jamais serei capaz de compreender. O amor que estamos acostumados está tão infinitamente ligado à pura necessidade pessoal, mesmo aquele em que deixaríamos de viver por outra pessoa, que não é nada além da necessidade tão intensa que sentimos da outra. Como uma pessoa pode tão puramente abrir mão de si mesma por outras pessoas desta forma? Simplesmente amar outras pessoas acima de si mesma, mas de uma forma real. Amar tanto, que possa ser capaz de simplesmente deixar a outra pessoa ir embora, se este for o melhor pra ela.
O olhar severo de meu pai. Como algumas pessoas simplesmente são, sem tentar ser, de forma que sequer percebem o quanto poderiam enriquecer o mundo se externassem o que pensam. Não consigo concentrar quando vejo um filme com meu pai, porque simplesmente sei que nunca vou conseguir compreender o que está à minha frente de forma tão rica quanto ele. Ou olhar pro mundo. Por mais que eu me considere alguém que compreende bem as pessoas, quando penso em meu pai, me sinto mera criança, na ponta dos pés, tentando enxergar algo novo por uma janela.
Quando penso em praguejar contra nossa existência medíocre, me vem uma memória à cabeça: meu amigo, Túlio. Éramos muito pequenos, estávamos na primeira série, quando ele quebrou a perna de forma grave. Ele teve de usar um aparelho que mantinha suas duas pernas abertas por todo o tempo em que estivemos em contato. Ninguém o aceitava, ele era a piada do colégio. Tinha apenas dois amigos: Eu e Guilherme Henrique. Não estou aqui sendo hipócrita, mesmo porque eu talvez tenha sido o maior de todos. Era-me difícil também aceitá-lo, mas algo me dizia que eu devia estar do lado dele o tempo inteiro. Um dia, na Educação Física, estávamos treinando cobranças de pênaltis, o professor estava no gol e ninguém conseguia acertar a cobrança. Quando chegou a vez de Túlio tentar, todo mundo ria: se nem os melhores, com suas pernas perfeitas, suas vidas perfeitas, seus sorrisos perfeitos, conseguiam fazer o gol, como ele conseguiria? É algo que aconteceu, e ainda ninguém consegue explicar. Como é feliz presenciar uma sensação como essa: uma sensação inexplicável. Acho que nunca verei alguém tão feliz como o vi naquele dia. Consigo me recordar vividamente de nós três – eu, Túlio e Guilherme Henrique – pulando, abraçados, de forma completamente desengonçada (Túlio não podia pular direito com o aparelho em suas pernas), comemorando aquele gol. Todos sabem como amo meu time, Palmeiras, mas acho que nunca comemorei um gol como aquele dia.
Lembro-me de um ensaio para uma apresentação em um Festival de Inglês no colégio, já no terceiro ano. Eu namorava, já há um ano a essa altura, e nunca havia dado qualquer valor para o namoro até esse dia, quando meu namoro já estava em crise e eu já tinha errado tanto que a garota já não tinha qualquer dúvida de que seria melhor pra ela terminar comigo. Neste dia eu me sentei em um canto, tirei pela primeira vez minha aliança e fiquei ali, a girando em meus dedos e pensando. Só ali, tarde demais, percebi que amava aquilo que havia desprezado tanto. E desde este dia não há um momento sequer da minha vida que eu não tenha certeza do quanto amo o que mais desprezo em meu interior: a existência. Esta vida medíocre, sempre triste, com raros momentos simples e insuperáveis. É incrível como nunca sabemos que um momento é especial quando este está acontecendo, assim como sempre julgamos especial, no exato instante em que este se dá em nossas vidas, um momento que não significa nada. A existência pode ser tão sensacional, que ainda que sejamos muito medíocres, ela consegue nos superar e se manifestar em nossas vidas em momentos raros e cientificamente inexplicáveis. Por mais que possamos compreender todas as reações químicas que ocorrem em nosso interior e são responsáveis por tudo isso, não compreendemos perfeitamente por que elas ocorrem em determinados momentos, não compreendemos o momento, não compreendemos o fenômeno.
Minha tia Letícia. Não posso dizer que ela compreendia tudo isto perfeitamente, mas posso dizer que nunca conheci alguém que compreendesse tudo isto tão bem quanto ela. Ela era simplesmente genial, autodidata em todos seus conhecimentos, viveu sua vida inteira em Miraí, uma pequena cidade mineira, próxima ao estado do Rio de Janeiro. Cidade que teve enorme força cultural, embora esta venha se perdendo com o tempo. Seria hipócrita dizer que choro todos os dias por não a ter conhecido melhor, mas não há uma expressão artística minha que não esteja revestida de lágrimas de frustração por não tê-lo feito. Tive logo na ponta de meu nariz uma pessoa da grandeza de todos os escritores que leio e admiro nos dias de hoje e nunca me aproximei dela. Por muito tempo tentei compreender como uma pessoa como ela conseguiu por tanto tempo ficar em silêncio naquela cidade, uma pessoa que tinha tanta coisa a dizer. Hoje percebo que ela disse. Depois de muito tempo, aprendi uma lição extremamente valiosa com esta tão querida tia: Talvez seja realmente impossível mudar o mundo, mas talvez a vida sequer nisto consista. Há tanta coisa simples e bonita ao nosso redor, tantas pessoas que podemos amar de tal forma e de tal forma por elas sermos amados, que o mundo ao nosso redor talvez se transforme em outro mundo, um mundo sensacional, um mundo que todas as pessoas merecem conhecer e nele viver. Nunca realmente a conheci, mas a cada dia aprendo com minhas memórias sobre ela, minhas suposições sobre ela, o que realmente é a vida.
O que me dói é que, neste momento, deixo o texto de lado e passo a observar o a natureza viva que movimenta a cortina, minha caneca de água, o teclado sujo de meu notebook. Minhas crenças religiosas me impossibilitam de acreditar que um dia, quando eu morrer, poderei me sentar com você em um lugar lindo e conversar sobre tudo o que sempre quis conversar com você depois de sua morte. E me recordo de minha irmã recebendo aquele telefonema e que, antes de ela dizer qualquer coisa, eu já tinha a certeza de que você havia falecido. Tudo o que me resta é minha imaginação, e eu sou capaz de construir um momento com grande parte das pessoas que passaram por minha vida sem grandes dificuldades. Mas a verdade é que você era realmente uma escritora talentosa enquanto eu, apenas um pseudoescritor medíocre, fraco e arrogante. Nunca serei capaz de reproduzir você em meus pensamentos, e por mais que a natureza esteja agora viva em minha sala, eu me sinto completamente sozinho.


“Nessas alturas já entardecia e a mata já se tornava escura. Minha mãe, coitada, era só cansaço. Foi aí que resolvemos voltar. Quem sabe se outro dia retornamos e mais bem informados encontramos o lugar, consolávamos. Ela, conformada, resolveu aderir e novamente nos pusemos a caminho, de volta à casa.
E o diabinho lá, me azucrinando de novo:
- Podem voltar, hahaha! Podem voltar se quiserem, mas àquele tempo nunca mais!
Raios! Pensei em minha mãe e olhei-a de soslaio. Até que ela estava animada e corada de satisfação. Comentava a beleza do passeio e a oportunidade de rever as pessoas e lugares conhecidos. Ela não se decepcionara nem um pouco. Aquele era um novo momento vivido. Para ela a fonte da juventude tinha sido aquele chafariz antigo que a fizera menina de novo.
Também os amigos que reencontrara e com quem comungara belos momentos distantes. O resto fazia parte de outros momentos já vividos e que restavam bem arquivados em sua memória.
Mas para mim, que agora viajava pensativa, a imaginação ainda teimava em regredir no tempo em busca de tudo que minha mãe contava de sua infância e que eu não conhecia. Lá estavam bem direitinhos, perfilados e em posição de sentido, em vidrinhos rotulados pelos nomes, todos os crioulinhos e de mais personagens, nas prateleiras de minha memória.
Aguardando revista eu via o "Jeremias", "Natanael", "tia Toca", "Sinhá Peituda", "Zé Luiz", "Mariinha", "Manoel Abranches" e outros mais. Até o português Marsal, que roubou a tia Rosa para se casarem. Todos eles, todos esperando o renascer da Terra Prometida que se perdera no emaranhado dos anos.
Sim, ela se perdera de fato! Não porque não a encontramos, mas porque o tempo não se repete. Se teimávamos em encontrar-nos lá no horizonte longínquo com aquelas figuras inatingíveis, debalde, pois agora elas só existiam mesmo em nossa imaginação fértil.
Aos poucos quedei-me vencida e cansada, me dando conta de que todos os momentos de nossas vidas são impares e únicos. Não se repetem nunca...
E ai de nossa ilusão perdida que se desfaz em busca de um hipotético horizonte onde ela se evapora após uma caminhada inglória. O horizonte está lá onde o céu encontra a terra e parece ao alcance de nossas mãos. Podemos até tentar uma nova caminhada em sua busca, mas cada momento será bem diferente.
E, se buscássemos esse horizonte como ponto final de nossa jornada, verificamos que ele é feito de outros horizontes e que nossa busca se torna eterna.
Ao atingi-lo, o céu nos foge às mãos e lá se vão nossos castelos, nossos reis, nossos leões, virgens e querubins, produtos de nossa imaginação fantasiosa. E aí nos damos conta de que nossos pés continuam ali em terra firme enquanto se erguem em vão ao infinito nossos braços.
E nós nos perguntamos mais uma vez: Existirá esta Terra Prometida? Onde estará esta Avalon longínqua?”


Trecho de “Terra Prometida” – Letícia Maria Recipute (25/01/2003)