sábado, 19 de fevereiro de 2011

Muros e Grades

http://www.youtube.com/watch?v=Vfq-z24wGnw

Este texto seria completamente desnecessário se eu andasse com uma câmera na mochila. Na verdade, ele é totalmente ineficaz perto do que eu poderia passar com uma única fotografia. Uma fotografia que vive em minha cabeça, uma imagem nítida. Quase posso tocá-la.

Tudo isto, este enorme fato singular, aconteceu em uma de minhas viagens entre Juiz de Fora e Niterói. Uma mais particular, porque, enquanto eu colocava meus fones no ouvido, dentro do ônibus, o motorista veio nos comunicar, irritado, que não poderia mudar seu trajeto como muitos estavam pedindo. Pelo que pude entender, chegaríamos em um horário de engarrafamento e estava rolando uma onda de assaltos na Av. Brasil.

Na época, as minhas viagens de Juiz de Fora a Niterói eram invadidas por uma tranquilidade que até hoje não consigo compreender. Eu saía de Juiz de Fora onde minha vida seria tranquila em relação à minha família e me dirigia pra Niterói, onde minha vida parecia entrar em uma tempestade. Ainda assim, enquanto eu não pisasse com os pés no lado de fora do ônibus, eu era invadido por uma vontade de ouvir um som nos meus fones, ficar deitado tranquilamente na poltrona, raramente gostava de ler um livro, apenas quando eu viajasse à noite. Mas ainda assim, o que eu curtia mesmo era ficar olhando a paisagem e ouvindo música. Havia pontos da viagem que eram meus favoritos. A Serra de Petrópolis, que é simplesmente incrível. Os viadutos do Gentileza, que era o momento em que me tocava que estava chegando ao Rio. Lembro-me de uma favela interminável e, erguendo-se entre suas construções, um outdoor exaltando a beleza do Maracanã. Como eu tinha vontade de tirar uma foto disso. O Rio é realmente muito curioso, não? Gostava também da ponte Rio-Niterói, Ponte Presidente Costa e Silva. Era o momento em que me sentia como se estivesse observando o Rio de um lugar muito alto. Enquanto eu não enxergava nenhum ser humano, mas apenas as construções, ficava imaginando o que pensaria alguém que estivesse tão longe que nos julgasse apenas pelo que fazemos do mundo, pelos prédios, favelas ou pelas avançadas elaborações de engenharia que se pode ver na Baía de Guanabara.

Morei no Ingá, muito próximo ao prédio do Direito da UFF. “Em frente ao Clube Português”, era como eu descrevia o lugar para os taxistas e conhecidos. Morava entre duas favelas e via muita coisa enquanto ficava em silêncio. Esta foi a época em que decidi parar de julgar, mas apenas observar, e foi uma experiência incrível. Morar perto de favelas não é igual à impressão que temos por relatos e pelos jornais, mas ao mesmo tempo não é tão diferente dela quanto dizem os cariocas. Lembro-me de costumar ir buscar um hambúrguer logo na entrada de um dos morros, e ficar por lá comendo, sem ter medo. Dizem que os traficantes não permitem assaltos na entrada da favela, é um lugar mais seguro do que algumas ruas depois.

Perto de minha casa uma mulher morava na rua, altamente magra, viciada em crack. Lembro-me de uma vez em que ela, tremendo e com raiva nos olhos, passou do meu lado me olhando e gritando comigo, me ameaçando. Mas fora do efeito de drogas, ela me trouxe uma das mais tristes lembranças de minha vida. Um dia em que uma tristeza me invadiu de tal forma que não consegui ficar na faculdade, saí no meio da aula e, enquanto me dirigia pro apartamento, ela me abordou, chorando, dizendo que devia quinze reais para os traficantes e que queria parar de usar as drogas. Você até pode me julgar inocente, mas eu senti de tal forma a sinceridade naquele dia, ainda que ela pudesse mudar de idéia por efeitos da abstinência, ainda assim acreditei plenamente em suas intenções. Mas outra coisa que vocês podem não entender direito, mas nesta época eu realmente não tinha dinheiro pra nada. Era tudo contado, se eu queria sair em um fim de semana, tinha de planejar antes por um tempo. Eu realmente não tinha quinze reais pra dar, e tudo o que eu pude fazer foi passar pelo porteiro olhando para o outro lado, porque as lágrimas já haviam invadido meus olhos antes que eu pudesse girar a chave do apartamento e entrar. Sempre vou me sentir em dívida com esta mulher, que sequer sei o nome.

Lembro-me que, fim de semana, via pessoas oferecerem drogas perto da Faculdade de Direito (o morro era literalmente do lado, sua subida ficava na esquina da faculdade). Que imagem estranha. Às vezes entrava em sala e ouvia meus professores falarem, excelentes professores, mas como poderia dar algum crédito às suas falas se via coisas como essa logo em frente ao lugar em que estudava?

Sempre me pegava conversando sobre futebol com os moradores, em um bar próximo à faculdade de Direito. Acho que me sentia melhor conversando com eles do que com as pessoas da minha sala. Achava estranha a impressão que tinha de que as pessoas da minha sala (salve raras e comuns exceções) nunca haviam sofrido na vida; que assunto posso ter com uma pessoa assim?

Havia também o toque de recolher. Depois das dez horas, em dias de semana, era perigosíssimo sair de casa. Eu fui o último da república a aceitar isto. Um dia esqueci-me de comprar comida e, faminto, descobri que não havia nada estocado. Por volta das 23h, resolvi sair e ir ao Sendas (havia um muito próximo de nossa casa) comprar algo pra comer. Por questão de puro acaso não fui assaltado. Rua deserta, um homem me seguindo, mas um carro de polícia estava parado logo a frente, averiguando algum outro incidente, o que o fez o homem parar. Tive de esperar quase uma hora no Sendas até estar certo de que podia voltar pra casa. Melhor dizendo, “casa”.

Mas em síntese, esta época fez com que eu perdesse todo o preconceito com favelas e seus moradores. São pessoas como em qualquer outro lugar, pessoas as quais precisamos compreender. Em alguns pontos, lamentar, em outros, admirar, como quaisquer outras pessoas.

Uma sensação que eu adorava nesta época era a de sair na rua à noite para usar o orelhão. Inicialmente eu não tinha telefone ou celular, o que era simplesmente sensacional. Demorei muito tempo pra aceitar o celular, acho horrível saber que você pode ser encontrado a qualquer instante (agora que tenho um, nunca atendo). Nesta época eu aparecia quando quisesse, à noite, em um orelhão, como em filmes antigos. Tenho até hoje, guardados, todos os cartões de orelhão que usei.

Por toda essa mistura de imagens e sensações, “Muros e Grades” nunca saiu do meu MP4. Estava sempre ouvindo. Sentia a música no momento em que saía de toda a segurança do meu apartamento à noite pra uma rua perigosa, pra usar o orelhão, mas ao mesmo tempo, quando chegava em casa novamente, lembrava de tudo o que eu via por ali em todos os outros horários de todos os outros dias. Quem é o vilão? Quem é o mocinho? Quais são as armas? Existem regras?

De volta ao ônibus, lá estávamos nós, nos aproximando da Av. Brasil. Enquanto uns se benziam mil vezes, outros escondiam celulares, cordões, brincos e outros objetos de valor. Em meio aquele clima de pura tensão, havia um cara estranho, portando apenas uma mochila da Juventus de Turim com algumas camisetas, um caderno e um livro, parado, ouvindo música, estranhamente despreocupado: eu. Acho que se assaltassem aquele ônibus, nem passariam por mim. Pra ser sincero, minha vida também não estava valendo tanto assim pra eu me preocupar com ela.

Eis que em um momento, no engarrafamento, a tensão era total. O ônibus estava parado, minha cabeça encostada no vidro, quando meu olhar distraído despertou e encontrou um cara, provavelmente da minha idade, sem camiseta, os olhos queimando de ódio e ao mesmo tempo incompreensão. Olhávamos um ao outro nos olhos e tudo o que nos separava era um vidro artificial. Nada mais, é incrível. NADA MAIS nos separava. Vivíamos no mesmo mundo, no mesmo país, na mesma cidade, tínhamos a mesma idade, éramos até parecidos fisicamente. Só havia uma coisa entre nós: vidro. Poderia ser um muro, madeira. Ficamos nos observando por muito tempo, sem desviar os olhos, até o ônibus conseguir movimentar-se de novo e nossas estradas seguirem, cada uma pro seu lado. Este instante me fez realmente sentir “Muros e Grades”, é o instante de minha vida que sempre me vem à cabeça quando ouço a música. Fiquei pensando o que aconteceria ali se aquele muro tão artificial não existisse. Não consegui visualizar o que aconteceria, só pude perceber que eu não me importaria.