sexta-feira, 6 de abril de 2012

Chaos

Hábitos. É tudo o que somos a um observador exterior. Um conjunto de hábitos. A tendência a substituir a racionalidade por hábitos é inerente à própria amplitude racional do homem e sua baixa autoestima, ao encarar organismos como a história ou o tempo. Quanto mais extensa a história da humanidade, quanto mais quantitativos os valores culturais de seu meio, bem como a aceitação destes, menor a capacidade humana. Até que o homem se liberte da segurança, o relógio é um inimigo.

Não entendo por que revolta o homem a idéia de ser produto do meio. É possível que 99% dos seres humanos de um século sejam meros produtos do meio. É possível, portanto, que todas as pessoas que respiram, neste instante, sejam meros produtos do meio. Que não haja vida racional sobre a Terra em toda uma geração. Que a raça humana esteja temporariamente morta.

Só há uma possibilidade de o homem se desvincilhar do meio: um ser de intelectualidade superior, que viva em um ambiente conflituoso o suficiente para que o obrigue a usar a racionalidade em meio à gama de opções, princípios, opiniões, sob efeito da máxima relativização da verdade. Onde a verdade não seja simples, e várias verdades opostas sejam socialmente exigidas. Quanto maior a superioridade racional do ser humano, menor a necessidade de conflitos no ambiente para haver autodeterminação.

O homem aproxima-se de sua humanidade à medida em que se aproxima do caos.


Chaos, vírus do século XXI.

quinta-feira, 1 de março de 2012

The tree of life



The tree of life (“A árvore da vida”) – 2011

Direção: Terrence Malick
Roteiro: Terrence Malick
http://www.youtube.com/watch?v=lkUBECRoAwM




Detesto escrever críticas. Sonho em produzir no Cinema, e não criticar. No entanto, senti-me compelido a escrever sobre este que está entre os melhores filmes dos últimos vinte anos, equiparado aos grandes clássicos. Não vi problema em escrever a respeito de uma obra que me agradou em grande número de aspectos, apontando suas qualidades e me posicionando a respeito da dualidade da crítica em sua recepção.

Agrada-me, primeiramente, a abordagem hipotética em relação à existência ou não de vida superior, sem entrar realmente no mérito. É um filme para céticos e para crentes. Terrence Malick, através de um incrível audiovisual, invadido por frequentes questionamentos humanos, demonstra simultaneamente o quão pequeno é o ser humano perante o tamanho do Universo, tanto em extensão quanto ao tempo. Demonstrando que somos apenas uma página e que, se há vida superior, é provável que ela não nos assista de forma tão detalhada quanto esperamos e, ao mesmo tempo, a grandeza do ser humano, seu poder de produção e compreensão; seu alcance. Costumo dizer que, se há vida superior, um dos poucos momentos em que ela observou a humanidade em seu campo artístico foi no show do Pink Floyd em Pompeii (1972). Acredito que, se há vida superior, outro momento seria a cena no início da crítica.

Fora este aspecto, sobretudo, o diretor aborda as relações humanas. Nossas frequentes apelações a hipóteses superiores são expressões de nossa fraqueza e dúvida. Ao retratar o instituto familiar, o diretor demonstra nossas certezas infantis caindo, e a compreensão suprindo este vazio. Quando somos pequenos, costumamos pensar em nossos pais como donos da verdade, certos do que estão fazendo, quando na verdade são também humanos. Todos somos humanos perdidos, vivendo sem certezas, repletos de fraquezas inevitáveis. O diretor sugere que, ao compreendermos isto, abstraia-mos os erros que cometeram conosco e percebamos as intenções.

Oscilando entre a dor dos pais por perder um filho - e a busca destes por compreender o porquê disso - e a busca de um filho pela compreensão do tratamento de seus pais na infância, o diretor demonstra que frequentemente o ser humano prefere culpar algo hipotético e exigir explicações sobrenaturais a compreender algo material. Também reflete que, ainda que exista uma força superior, o teocentrismo por vezes nos impede de compreender que algumas coisas ainda estão simplesmente sujeitas ao acaso.

Por fim, vejo o desfecho não como uma defesa à visão clássica de vida pós-morte, mas sim como - a partir da compreensão da humanidade, tanto no quesito interno (todas as pessoas que lidam conosco estão repletas de dúvidas, não sabem perfeitamente como agir, assim como nós mesmos), quanto no quesito externo (somos pequenos diante da grandiosidade do universo e do tempo, devemos aceitar que algumas situações são meramente aleatórias; ainda que nos toquem mais em relação às outras pessoas, continuam ínfimas) – o alívio do personagem em compreender que a verdade, apesar de dura, em uma análise distante, não é tão infeliz. Ainda que seja, nos resta o conforto de, dotados de racionalidade, entender as relações físicas e humanas.

Gostaria de esclarecer que, ao meu ver, ao contrário do que muitos pensam, 2012 foi um ano terrível para festivais como o Oscar. Futuramente veremos a premiação como um clássico vexame, como muitas outras vezes já ocorreu na história.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Friends



Terminei o box de Friends e prometi a mim mesmo que darei um tempo da série que me ocupa tanto tempo há tantos anos.

Não precisa ir muito longe pra perceber como Friends é algo especial. Não há nenhuma referência comparável no estilo do seriado, porque é algo que alterou completamente o formato e de uma forma completamente natural. “Seinfeld”, maior referência da área, tem um excelente humor, um tom de casualidade, até certa continuidade. Mas Friends é um seriado além do completo.

A princípio, os próprios atores parecem destinados aos papéis. Muitos deles, como Courteney Cox (que foi indicada inicialmente para Rachel) e Jannifer Aniston (que foi indicada inicialmente para Monica), sentiram por si mesmas a qual personagem eram destinadas e insistiram com a produção para alterarem as personagens nas quais seriam testadas.

David Schwimmer e Matt LeBlanc, segundo os autores, foram escolhidos sem grande necessidade de reflexão, tão bem se adequaram aos papéis em seus testes.

Nos excelentes especiais do box vê-se uma Lisa Kudrow apaixonada por sua personagem, explorando detalhes de forma exaustiva. Lisa passou a ter aulas de violão no decorrer da série e, após aprender alguns poucos acordes (percebam, na maioria das músicas ela usa apenas E, D, A), decidiu que quanto mais aprendesse, menos seria condizente com a Phoebe, como uma atriz que verdadeiramente domina sua personagem, e o resultado foram as canções simples que se tornaram hinos entre os fãs de Friends.

Sou suspeito para falar de Matthew Perry, como grande fã. Matthew sempre fora considerado um grande ator, mas as oportunidades não surgiam a ele adequadamente. Chegou a escrever um piloto de série semelhante ao de Friends, e por isso foi indicado para os testes ao papel de Chandler. David Crane diz que chegaram a duvidar do roteiro, pelos testes de Chandler, porque era um personagem engraçado, e que a princípio seria fácil para um ator, mas nenhum deles dava certo. E Matthew Perry se encaixou perfeitamente para o papel.

Percebam que, além de os próprios esboços dos personagens terem caminhado em direção aos atores, os atores não só deram vida às idéias dos personagens, como terminaram suas construções com situações de suas vidas reais; o nariz de Rachel, a história conturbada entre Matthew Perry e seus pais. Chandler e Phoebe, que a princípio seriam coadjuvantes da série, inevitavelmente foram incorporados como dois entre os seis principais.

David Crane também expressa diversas vezes sua preferência pelas cenas em que os seis atuam juntos no set. Nessas cenas, bem como nos erros de gravação, percebe-se a incrível sintonia entre os atores, e o domínio de cada um em relação aos seus respectivos personagens.

Aprendi com séries como “Friends” ou “Lost” o quão importante é criar personagens que sejam vivos e completos. Lost, com as inúmeras falhas de planejamento do roteiro, sobrevive graças aos personagens envolventes e independentes. Em Friends, os personagens são de tal forma vivos que os fãs são capazes de brincar com eles em situações independentes ao enredo da série; sabemos como eles reagiriam a determinadas situações com as quais nos deparamos na vida, e isso os torna quase nossos amigos imaginários. Foi exatamente esse brilhantismo de cada um que tornou a série tão diferenciada, fugindo dos padrões normais e se tornando quase uma novela de qualidade. Além do humor – nunca deixado de lado -, queríamos saber o que aconteceriam com as diversas situações, cuja continuidade montava um longo e identificável enredo por toda a série, além do constante dinamismo. Nunca deixando o humor de lado, ríamos e sentíamos como um ator-espectador, que não podia tomar parte. Quando Joey e Rachel começam a se relacionar, o fã consegue sentir o que sentem os próprios personagens na série; a vontade de que Rachel e Ross ficassem juntos, mas sempre mantendo em mente os sentimentos puros de Joey e, claro, não conseguindo deixar de lado o fato de adorá-lo também.

O envolvimento, além disto, não era só interior à série e não se prendia somente aos atores. Foram estes atores, grandes amigos, que ajudaram Matthew Perry a superar seu problema com o álcool e remédios. E o envolvimento de Chandler e Monica, do qual muitos fãs reclamam por tirar um pouco da qualidade dos personagens, pela caricaturização e pela frequência de situações muito semelhantes e, de certa forma, enjoativas, parecem ter sido também a percepção dos autores de que, tal era o envolvimento de Matthew Perry com o personagem Chandler, talvez fosse hora de dar ao próprio personagem um tom de superação e felicidade, coincidente com a superação do próprio ator.

Enfim, a série em toda sua complexidade dramática supracitada, acaba por ser importante para os fãs em sua própria vida, confortando-nos de uma forma única. Acho impossível que algum dia eu deixe de rever alguns episódios, ainda que de vez em quando. É como sentir saudades de verdadeiros amigos. Mesmo porque boa parte de meus amigos são também fãs de Friends e de certa forma é um meio que tenho de matar as saudades que tenho deles. Também porque Friends nos ensina a ver a vida como uma grande e divertida piada, e passar por ela encarando seus problemas com bom humor, coragem e otimismo. Também a sermos felizes ainda que convivendo com tais problemas, que às vezes são até necessários.

Sem entrar no mérito qualidade, no mundo do Cinema/séries/musicais/etc, Friends é sem dúvidas algo pelo que sinto, sobretudo, carinho.

Não sei como terminar isso.

“Sure, where?”

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

SSDD

SSDD

Ficou sendo o lema deles, mas Jonesy não conseguia se lembrar de modo algum quem começou a dizer primeiro. O troco é um sufoco, este era dele. Freddy me foda e quase uma dezena de obscenidades mais pitorescas quem inventou foi Beaver. Foi Henry quem lhes ensinou a dizer o que vai em volta vem de volta, coisa de babaquice zen. Henry gostava, mesmo quando eram meninos. Mas SSDD; o que dizer de SSDD? De que cuca fundida tinha saído?
Isso não importava. O que importava era que eles acreditavam na primeira metade dessa coisa quadno formaram um quarteto, na coisa inteira quando formaram um quinteto, e depois na segunda metade dela quando tornaram a formar um quarteto.
Quando só os quatro tornaram a se reunir, os dias ficaram mais sinistros. Havia mais dias de Freddy me foda. Sabiam disso, mas não por quê. Sabiam que alguma coisa estava errada com eles - pelo menos diferente -, mas não o quê. Sabiam que tinham sido apanhados, mas não exatamente como. E tudo isso bem antes das luzes no céu. Antes de McCarthy e Becky Shue.
SSDD: às vezes é só o que a gente diz. E às vezes a gente não crê em outra coisa se não nas trevas. E aí, como é que a gente segue em frente?


1988: até Beaver fica na fossa

Dizer que o casamento de Beaver não deu certo é o mesmo que dizer que o lançamento do ônibus espacial challenger deu um pouco errado. Joe "Beaver" Clarendon e Laurie Sue Kenopensky viveram juntos oito meses e depois tchau, minha garota se mandou, me ajudem a dar a porra da volta por cima.
O "Beav" é basicamente um sujeito feliz, qualquer um da turma vai dizer isso, mas está numa fase negra. Não vê nenhum dos velhos amigos (os que ele considera amigos para valer), a não ser numa ´nica semana em novembro, mês em que se reúnem todo ano, e novembro passado ele e Laurie Sue ainda estavam se segurando. Por um fio, claro, mas ainda se segurando. Agora ele passa um bocado de tempo - demais, ele sabe - nos bares do distrito de Old Port, em Portland. O Porthole, o Seaman's Club e o Free Street Pub. Anda bebendo demais, fumando demais da velha erva, e de manhã quase sempre evita se olhar no espelho do banheiro; os olhos vermelhos se desviam do reflexo e ele pensa: Tenho que parar com as boates. Logo, logo vou ter o mesmo tipo de problema que o Pete teve. Vou pirar de vez.
Parar com as boates, parar com as farras, uma puta idéia, e depois lá está ele de volta, lambe-porre, que se dane. Nesta quinta-feira é o Free Street, e aposto que vai estar com um chopinho na mão, um fuminho no bolso, alguma antiga música instrumental, que lembra um pouco The Ventures, tocando na vitrola automática. Não se lembra direito do nome desta, que foi popular antes do tempo dele. Mesmo assim, conhece; ouve bastante a rádio de música antiga de Portland desde que se divorciou. Música antiga acalma. Uma porção de música nova... Laurie Sue conhecia e gostava de um monte delas, mas Beaver não curte.
O Free Street está praticamente vazio, mais ou menos uma meia dúzia de sujeitos da turma num dos reservados, bebendo cerveja Millers e tirando cartas de um baralho engordurado para ver quem vai pagar cada rodada. O que é esta música instrumento com essas guitarras murmurantes? "Out of Limits"? "Telstar"? Não, tem um sintetizador em "Telstar" que nesta não tem. E quem é que liga para isso? Os outros camaradas estão conversando sobre Jackson Browne, que tocou no Centro Cívico ontem à noite e fez um show duca, na opinião do George Pelsen, que estava lá.
-Vou contar pra vocês uma outra coisa que foi duca - diz George, olhando para eles de um jeito de impressionar. Ergue o queixo saliente, mostrando uma mancha roxa no pescoço. - Sabem o que é isto?
-Um chupão, não é? - Kent Astor pergunta, com certa timidez.
-Você é inteligente pacas - George retruca. - Eu estava parado do lado da porta dos bastidores depois do show, eu e um bando de caras, na esperança de conseguir um autógrafo do Jackson. Ou talvez, não sei, do David Lindley. Ele é legal.
Kent e Sean Robideau concordam que Lindley é legal - não um deus da guitarra, de jeito nenhum (Mark Knopfler, do Dire Straits, é um deus da guitarra; e Angus Young, do AC/DC, e - claro, Clapton), mas mesmo assim legal. Lindley faz um som de ritmo acelerado; tem também um cabelo rasta de impressionar. Até os ombros.
Beaver não entra na conversa. De repente, quer se mandar daqui, deste bar fedido, que não leva a nada, e tomar um pouco de ar fresco. Sabe aonde é que George vai chegar com a história, e é tudo mentira.
O nome dela não é Chantay, vocês não sabem como é que ela se chama, ela passou como vento por vocês como se vocês nem estivessem lá, o que é que vocês iam significar para uma garota como ela, de qualquer modo, só mais um cabeludo classe-operária numa outra cidade classe-operária da Nova Inglaterra, subiu no ônibus da banda e sumiu da vida de vocês. A porra da vidinha desinteressante que vocês levam. Chantays é o nome do grupo que a gente está ouvindo, não Mar-Kets ou Bar-Kays, mas Chantays, é "Pipeline", com o Chantays, e essa coisa no teu pescoço não é um chupão, é um arranhão do aparelho de barbear.
É nisso que pensa, e depois ouve um choro. Não no Free Street, mas na cabeça dele. Um choro que rolou faz tempo. Entra bem na cabeça da gente, esse choro, entra como cacos de vidro, e ah! porra, Freddy, me foda, alguém faça ele parar de chorar. Fui eu quem fez ele parar, Beaver pensa. Fui eu. Fui eu quem fez ele parar. Eu o abracei e cantei para ele.
Enquanto isso, George Pensen está contando para eles que a porta dos bastidores finalmente se abriu, mas quem saiu não foi Jackson Browne, muito menos David Lindley; foi o trio das gatinhas cantoras, uma chamada Randi, uma chamada Susi e uma chamada Chantay. Gostosinhas, ah, tão altas e apetitosas.
-Cara - diz Sean, revirando os olhos. É um sujeito gorducho cujas aventuras sexuais consistem em de vez em quando fazer umas excursões até Boston, onde fica observando as garotas do Foxy Lady fazer strip-tease e as garçonetes do Hooters. - Ô, cara, a danada da Chantay. - Faz um gesto de tocar punheta. Nisso, pelo menos, pensa o Beav, ele parece um profissional.
-Aí comecei a papear com elas... com ela, praticamente, a Chantay, e perguntei pra ela se ela não queria conhecer um pouco da vida noturna de Portland. Então a gente...
O beav tira um palito do bolso e o enfia na boca, saindo de sintonia. De repente, tudo o que ele quer é o palito. Não a cerveja na frente dele, não o fuminho no bolso, decerto não o papo-furado do George Pensen de como ele e a mítica Chantay subiram na traseira da caminhonete dele, bendita seja aquela coberta de acampamento, quando o astral do George rola não teima que ele não dá bola.
É tudo uma canseira, Beaver pensa, e de uma hora para a outra fica desesperadamente deprimido, mais deprimido do que quando Laurie Sue fez as malas e voltou para a casa da mãe. Isso não é do feitio dele, e de repente só quer se mandar daqui, encher os pulmões do ar fresco e salgado da beira-mar e achar um telefone. Quer fazer isso e então ligar para JOnesy e para Henry, ou um ou ouro, dá na mesma; quer perguntar: Escuta, cara, o que é que está acontecendo, e ouvir de um deles a resposta: Ah, vocês sabe, Beav, SSDD. Sem animação, sem diversão.
Ele se levanta.
-Ô, cara - George diz. Beaver estudou com George no Westbrook Junior College, e naquela época parecia bastante cuca-fresca, mas isso foi muitas cervejas atrás - Aonde é que está indo?
-Mijar - Beaver responde, rolando o palito de um canto da boca para o outro.
-Bom, então vai depressa e senta esse rabo aí porque eu estou chegando na melhor parte - George diz, e Beaver pensa: calcinhas sem fundilhos. Puxa, rapaz, hoje a antiga e esquisita vibração está forte, quem sabe é o barômetro ou sei lá eu. Baixando a voz, George diz: - Quando ergui a saia dela...
-Jà sei, estava usando calcinhas sem fundilhos - diz Beaver. Registra o olhar de surpresa, quase choque, nos olhos do George, mas não dá atenção. - Claro que quero ouvir essa parte.
Afasta-se, anda na direção do banheiro dos homens, que tem aquele cheiro róseo-amarelado de urina e desinfetante, passa por ele, passa pelo das mulheres, passa pela porta em que está escrito ESCRITÓRIO e sai na viela. O céu acima dele está cinzento e chuvoso, mas o ar está bom. Tão bom. Ele o respira muito fundo e torna a pensar. Sem animação, sem diversão. Dá um sorrisinho.
Anda por uns dez minutos, mastigando palitos e desanuviando a cabeça. Num determinado ponto, não consegue se lembrar exatamente quando, joga fura o fumo que estava no bolso. E depois liga para Henry do telefone público na loja Joe's Smoke, perto da Monument Square. Aguarda a secretária eletrônica - Henry ainda está na escola - mas na verdade Henry está em casa e tira o fone do gancho na segunda chamada.
-Como vai? - Beaver pergunta.
-Ah, você sabe - Henry responde. - A mesma merda, um outro dia. E você, Beav?
Beav fecha os olhos. Por um momento, tudo está bem de novo; tão bem quanto dá para estar neste mundo fodido, de qualquer modo.
-Quase na mesma, companheiro - responde. - Mais ou menos na mesma.


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Muito se perde na tradução, não tanto por incompetência do tradutor quanto por incompatibilidade dos idiomas, mas enfim.

Trecho de "O apanhador de sonhos" - Stephen King.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

A história de Remedios, a bela


“(...)
Remedios, a bela, foi a única que permaneceu imune à peste da companhia bananeira. Estacou numa adolescência magnífica, cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia e à desconfiança, feliz num mundo próprio de realidades simples. Não entendia por que as mulheres complicavam a vida com camisetas e anáguas, de modo que coseu uma bata de aniagem que enfiava simplesmente pela cabeça e resolvia sem mais trâmites o problema de se vestir, sem desmanchar a impressão de estar nua, que no seu modo de entender as coisas era a única maneira decente de se estar em casa. Amolaram-na tanto para que cortasse o cabelo cascateante que já batia na barriga da perna e para que fizesse um coque preso com pentes e tranças com laços coloridos que simplesmente raspou a cabeça e fez perucas para os santos. O assombroso do seu instinto simplificador era que quanto mais se desembaraçava da moda procurando a comodidade e quanto mais passava por cima dos convencionalismos em obediência à espontaneidade, mais perturbadora ficava a sua beleza inacreditável e mais provocante o seu comportamento para com os homens. Quando os filhos do Coronel Aureliano Buendía estiveram pela primeira ez em Macondo, Úrsula se lembrou de que levavam nas veias o mesmo sangue da bisneta e estremeceu com o horror esquecido. “Abra bem os olhos”, fez tão pouco-caso da advertência que se vestiu de homem e se espojou na areia para subir no pau-de-sebo e esteve a ponto de ocasionar uma tragédia entre os dezessete primos transtornados pelo insuportável espetáculo. Era por isso que nenhum deles dormia em casa quando visitavam o povoado, e os quatro que tinham ficado viviam às expensas de Úrsula em quartos alugados. Entretando, Remedios, a bela, teria morrido de rir se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana. Cada vez que aparecia na sala de jantar, contrariando as ordens de Úrsula, causava um pânico de exasperação entre os forasteiros. Era evidente demais que estava interiamente nua sob a bata grosseira e ninguém podia entender que o seu crânio pelado e perfeito não fosse um desafio e que não fosse uma criminosa provocação o descaso com que descobria as coxas para aliviar o calor e o prazer com que chupava os dedos depois de comer com as mãos. O que nenhum membro da família jamais soube foi que os forasteiros não tardaram a perceber que Remedios, a bela, desprendia um hálito perturbador, uma brisa de tormento que continuava perceptível várias horas depois de ela ter passado. Homens experimentados nos transtornos do amor, vividos no mundo inteiro, afirmavam não ter padecido nunca de uma ansiedade semelhante à que produzia o perfume natural de Remedios, a bela. Na varanda das begônias, na sala de visitas, em qualquer lugar da casa, se podia assinalar o lugar exato onde estivera e o tempo transcorrido desde que deixara de estar. Era um rastro definido, inconfundível, que ninguém da casa podia distinguir porque estava incorporado há muito tempo aos cheiros cotidianos, mas que os forasteiros identificavam imediatamente. Por isso eram eles os únicos que entendiam que o jovem comandante da guarda tivesse morrido de amor e que um cavaleiro vindo de outras terras tivesse caído em desespero. Inconsciente da aura inquietante em que se movimentava, do insuportável estado de íntima calamidade que provocava à sua passagem, Remedios, a bela, tratava os homens sem a menor malícia e acabava de transtorná-los com as suas inocentes complacências. Quando Úrsula conseguiu impor a ordem de que comesse com Amaranta na cozinha, para que os forasteiros não a vissem, ela se sentiu mais cômoda, porque afinal de contas ficava a salvo de qualquer disciplina. Realmente, tanto fazia comer em qualquer lugar, e não em horas fixas, mas de acordo com as alternativas do seu apetite. Às vezes se levantava para almoçar às três da madrugada, dormia o dia inteiro, e passava vários meses com os horários trocados, até que algum incidente casual voltava a pô-la em ordem. Quando as coisas andavam melhor, levantava-se às onze da manhã e se trancava durante duas horas completamente nua no banheiro, matando escorpiões enquanto espantav o denso e prolongado sono. Em seguida, jogava água em si mesma tirando-a da caixa com uma cuia. Era um ato tão prolongado, tão meticuloso, tão rico de situações serimoniais, que quem não a conhecesse bem poderia pensar que estava entregue a a uma merecida adoração do seu próprio corpo. Para ela, entretanto, aquele rito solitário carecia de qualquer sensualidade, e era simplesmente uma maneira de matar o tempo enquanto não sentia fome. Um dia, quando começava a se banhar, um forasteiro levantou uma telha do teto e ficou sem respiração diante do tremendo espetáculo de sua nudez. Ela viu os olhos aflitos através das telhas quebradas e não teve nenhuma reação de vergonha, mas sim de preocupação.
-Cuidado – exclamou. – Você vai cair.
-Só quero ver você – murmurou o forasteiro.
-Ah, bem, - ela disse. – Mas tenha cuidado que essas telhas estão podres.

O rosto do forasteiro tinha uma dolorosa expressão de espanto e parecia lutar surdamente contra os seus impulsos primários, para não dissipar a miragem. Remedios, a bela, pensou que ele sofria de medo de que as telhas quebrassem e se banhou mais depressa do que de costume, para que o homem não continuasse em perigo. Enquanto se jogava água, disse a ele que era um problema que o teto estivesse naquele estado, pois ela acreditava que a camada de folhas apodrecidas pela chuva era o que enchia o banheiro de escorpiões. O forasteiro confundiu aquela conversa com uma forma de dissimular a complacência, de modo que quando ela começou a se ensaboar cedeu à tentação de dar um passo adiante.
-Deixe-me ensaboá-la – murmurou
-Agradeço sua boa intenção – disse ela. – mas posso perfeitamente fazê-lo sozinha com as minhas duas mãos.
-Só as costas – suplicou o forasteiro.
-Seria um desperdícios – ela disse. – Nunca se viu ninguém ensaboar as costas.

Depois, enquanto se enxugava, o forasteiro implorou com os olhos cheios de lágrimas que se casasse com ele. Ela lhe respondeu sinceramente que nunca se casaria com um homem tão bobo que perdia quase uma hora, e até ficava sem almoçar, só para ver uma mulher tomar banho. Por fim, quando vestiu a bata, o homem não pôde suportar a comprovação de que realmente não usava nada embaixo, como todo mundo suspeitava, e se sentiu marcado para sempre com o ferro ardente daquele segredo. Então arrancou mais duas telhas para se atirar no interior do banheiro.
-É muito alto! – ela o preveniu assustada. – Você vai se matar!

As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na sua pele o sufocante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo ambarino impregnado daquele perfume secreto, e então compreenderam que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da morte, até a poeira dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente de horror com os outros dois homens que haviam morrido por Remedios, a bela. Faltava ainda uma vítima para que os forasteiros e muitos dos antigos habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía não exalava o sopro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plantações. Para o povo de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis avenidas ladeadas de bananeiras, onde o silêncio parecia trazido de outra parte, ainda sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. Às vezes não se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que entretanto se tornava perfeitamente compreensível no outro extremo da plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de risadas e sobressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do passeio como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que Úrsula não teve coragem de privar Remedios, a bela, da divesão e lhe permitiu ir numa tarde, desde que pusesse um chapéu e uma roupa adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas valas se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, ameaçados por um perigo invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar. Remedios, a bela, e suas espantadas amigas conseguiram se refugiar numa casa próxima quando estavam já para serem assaltadas por um tropel de machos ferozes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos, cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marcas de casta, selo de invulnerabilidade. Remedios, a bela, não contou a ninguém que um dos homens, aproveitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre com uma mão que mias parecia uma garra de águia aferrada aos bordos de um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento instantâneo e vira os olhos desconsolados que ficaram impressos no seu coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da sua audácia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e uma multidão de forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue.

A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irresfutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes doq eu você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa”. No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que, neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tarde esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios,a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continua acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deus-dará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
-Você está se sentindo mal? – perguntou a ela.
Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade.
-Pelo contrário – disse – nunca me senti tão bem.

Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amarante sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não caiur, no momento em que Remedios, a bela, comaçava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis a mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar.
(...)”


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Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Overdose

O homem fechou a porta atrás de si com a cautela que se toca um recém nascido, aparentando se esconder de algo. Já na calçada, sentindo o vento percorrer seu corpo, percebeu que sua blusa ainda estava em sua mão. Foi naquela noite de frio atípica, em meio ao verão, em que o homem se pôs a caminhar pela cidade enganosamente grande em que morava, repleta de costumes interioranos e cuja população se isolava pelos subúrbios, restando ao centro o silêncio da madrugada de dias úteis. Entre as luzes dos postes e a da lua, jaziam cômodos apagados e mortos.

Levou suas duas mãos aos bolsos de sua blusa, em parte pelo frio, em parte para assumir um tom ameaçador, ao avistar, à distância, uma pessoa vir em sua direção na mesma calçada em que caminhava. Não conseguia identificar suas roupas ou sua expressão facial, mas era uma rua perigosa. Abaixou a cabeça para passar ao lado de uma pessoa que, na aproximação, era completamente inofensiva, e acabou por reparar nos jeans apertados e desbotados que usava. Eram como sonhos antigos e esquecidos. As desbotadas esperanças. Lembranças do que era vivo, que se apagavam no fraco e transformado preto. Seu pontudo e já disforme tênis branco, que escolhera a dedo anos atrás, quando tudo era uma oportunidade de expressão. Toda aquela vestimenta calada, envolvendo um corpo já mudo. Uma barreira prendendo pensamentos em ebulição e sentimentos hibernantes.

Encaminhava-se à única rua que poderia encontrar-se viva àquela hora. Ergueu o pulso esquerdo e percebeu que havia esquecido seu relógio em casa. “Me dá uma moeda, senhor”. Enquanto tirava uma moeda da carteira, observou que a lanchonete que frequentava a essa hora estava aberta. “O homem que acredita em destino é o mesmo que aceita esmolas”, pensou.

Não possuía emprego fixo, suas finanças dinâmicas se encontravam em uma semana difícil. Entrou na lanchonete conferindo sua carteira, e não tinha dinheiro para lanchar. Fez seu pedido, sentou-se na mesma mesa de sempre. Os garçons não sussurraram sobre ele, como faziam com os clientes costumeiros. Ali, de cabeça baixa, imóvel, ficou até que seu lanche chegasse. Permaneceu imóvel à chegada do lanche. Observava-o à sua frente, sem fome. Atentava-se às conversas vazias ao seu redor, pelo simples prazer de ouvir vozes. Pareciam falar outro idioma, tamanho seu desinteresse pelo conteúdo, tamanha sua concentração nas formas. O lanche maltratado, disforme, baseado unicamente em quantidade, o ambiente semi-limpo, as vozes, as vozes, sorrisos, gestos. Vieram-lhe as náuseas. Focava-se em seu lanche como um doente, sem tocá-lo, aparentemente distante. Mas estava ali, completamente presente, de uma forma que não podia evitar. Fechou seus olhos, sentindo tudo girar, até chegar ao limite daquela situação repugnante. Até que toda a vibração se transformasse em equilíbrio. E as palavras fizessem sentido. Os discursos tomassem forma de conteúdo, ainda que desprezível. E o desinteresse parecesse novamente conveniente. Até que o sonho se acabasse, e a vida ordinária fosse novamente banal. Até que o preço do inatingível fosse tolerável. Até que pudesse abrir os olhos e equilibrar-se em seus próprios pés, que pudesse andar novamente naquelas roupas empoeiradas, velhas, que guardavam algo que não queria perder. Que aquele corpo oco pudesse sentir novamente o impulso de buscar o que o instinto previa.

“A conta, por favor”.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

2012




Alguém está muito fodido amanhã. São três horas e eu deveria estar dormindo, mas simplesmente não consigo.
Terminei 2011 e comecei 2012 com uma obsessão: começar a lutar boxe.
Acabo de assistir ao "Raging Bull", um dos primeiros filmes que vi de meu diretor favorito (Scorsese), e comecei a pensar no porquê de tamanha obsessão.
A época da gravação do filme é o ápice do vício do diretor em cocaína. Ele foi convencido pelo De Niro a pôr o vício de lado e fazer o filme, que pensava ele ser o último de sua carreira. Esta carregada e pessimista biografia me explicou perfeitamente o por que da minha obsessão pelo esporte.
A última luta de boxe que vi, que não fosse em preto e branco, foi a do Mike Tyson contra o Evander Holyfield, da clássica e infeliz mordida de orelha. Lembro de sentir neste dia exatamente o que era o patético.
Deixei de acompanhar o esporte até conhecer Cassius Clay, o famoso Muhammad Alli (que detestaria ser chamado por mim pelo seu nome de batismo, anterior à sua conversão ao islamismo). Pessoas inteligentes, carregadas e que não conseguem comunicar tudo o que existem dentro delas me despertam um interesse fora do comum; enquanto lia sobre sua vida, percebia aos poucos o ídolo, tantas vezes aplaudido e tantas vezes vaiado, gigante dentro dos ringues e por sua coragem política, percebia o quão genial era esse cara que exigia convívio para que fosse compreendido. É uma frustração, mas que me deixa de resto o ânimo de conhecer muitas pessoas que com ele se parecem. Via-me espelhado naquele cara, toda uma agressividade que enclausurava sentimentos puros.
O Scorsese poderia nunca ter feito esse filme, morrido cheirando pó, seria consagrado como gênio, o que aconteceu com muitos que pararam cedo. Antes de "Raging Bull", já havia feito o que é pra mim o maior filme da história ("Taxi Driver") e outros grandes filmes como "New York, New York" ou "Mean Streets". Mas ele escolheu continuar e superar. Acho que gosto de Boxe pelos mesmos motivos destes caras que pra mim são heróis (De Niro, Scorsese), caras que não são tão diferentes dos grandes boxeadores. A técnica do boxe é importante, mas os grandes boxeadores apanharam muito mais da vida, aprenderam o boxe nas esquinas, em casa com suas famílias, na dureza teimosa e imaleável de suas ideologias.
2011 foi um ano de sonhos pra mim. Fodi muita coisa por besteira, bebi mais do que deveria, pensei menos do que poderia, agi menos do que era necessário e, principalmente, abandonei a espontaneidade que sempre guardei comigo.
A vida nunca vai ser estável, mas nunca deixará de ser incrível. Nunca deixe de confiar que ela possa te surpreender, sempre lute por ela.
Feliz 2012 a todos vocês, não que eu não ache banal querer revigorar o espírito em mudanças de anos, mas é algo que nunca é dispensável, indiferente à data.

http://www.youtube.com/watch?v=5wwItkoapuA

sábado, 24 de dezembro de 2011

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

"(...)
Em quase vinte anos de guerra, o Coronel Aureliano Buendía tinha estado muitas vezes em casa, mas o estado de urgência em que chegava sempre, o aparato militar que o acompanhava a toda parte, a aura de lenda que dourava a sua presença e à qual nem a própria Úrsula foi insensível, terminaram por convertê-lo num estranho. Na última vez que esteve em Macondo e ocupou uma casa com as suas três concubinas, não foi visto na sua a não ser duas ou três vezes, quando teve tempo para aceitar convites para comer. Remedios, a bela, e os gêmeos, nascidos em plena guerra, mal o conheciam. Amaranta não conseguia conciliar a imagem do irmão que passara a adolescência fabricando peixinhos de ouro com a do guerreiro mítico que havia interposto entre ele e o resto da humanidade uma distância de três metros. Mas quando se soube da proximidade do armistício e se pensou que ele regressava outra vez convertido num ser humano, resgatado por fim para o coração dos seus, os afetos familiares adormecidos po tanto tempo renasceram com mais força do que nunca.
- Finalmente - disse Úrsula - vamos ter outra vez um homem em casa.
Amaranta foi a primeira a suspeitar de que o haviam perdido para sempre. Uma semana antes do armistício, quando ele entrou em casa em escolta, precedido por dois ordenanças descalços que depositaram no corredor os arreios da mula e o baú dos versos, saldo único da sua antiga bagagem imperial, ela o viu passar em frente ao quarto de costura e o chamou. O Coronel Aureliano Buendía pareceu ter dificuldade em reconhecê-la.
- Sou Amaranta - disse ela de bom humor, feliz pela sua volta, e lhe mostrou a mão com a atadura negra. - Olhe.
O Coronel Aureliano Buendía dirigiu-lhe o mesmo sorriso da primeira vez em que a viu com a atadura, na remota manhã em que voltou a Macondo sentenciado à morte.
- Que horrror - disse - como o tempo passa!
O exército regular teve que proteger a casa. Ele chegara escarnecido, cuspido, acusado de ter endurecido a guerra apenas para vendê-la mais cara. Tremia de febre e de frio e tinha outra vez as axilas cheias de furúnculos. Seis meses antes, quando ouviu falar do armistício, Úrsula abriu e varreu a alcova nupcial, e queimou mirra nos cantos, pensando que ele regressaria disposto a envelhecer devagar entre as mofadas bonecas de Remedios. Mas na verdade, nos dois últimos anos ele pagara as suas quotas finais à vida, inclusive a do envelhecimento. Ao passar diante da oficina de ourivesaria, que Úrsula tinha preparado com especial cuidado, nem sequer percebeu que as chaves estavam postas no cadeado. Não notou os minúsculos e profundos estragos que o tempo fizera na casa e que depois de uma ausência tão prolongada teriam parecido um desastre a qualquer homem que conservasse vivas as suas recordações. Não o magoou a cal descascada nas paredes, nem os sujos algodões de teia de aranha nos cantos, nem a poeira das begônias, nem os túneis do cupim nas vigas, nem o musgo das dobradiças, nem nenhuma das armadilhas insidiosas que lhe estendia a saudade. Sentou-se na varanda, embrulhado na manta e sem tirar as botas, como que esperando apenas que estiasse, e permaneceu a tarde inteira vendo a chuva cair sobre as begônias. Úrsula compreendeu então que ñao o teria em casa por muito tempo. "Se não é a guerra", pensou, "só pode ser a morte". Foi uma suposição tão nítida, tão convincente, que ela a identificou como um presságio.
Nessa noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo partiu o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcadio Segundo, partiu o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, e sim um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos tinham concebido desde que tomaram consciência de que eram iguais foi repetido em honra do recém-chegado. Mas o Coronel Aureliano Buendía não percebeu. Parecia tão alheio a tudo que nem sequer prestou atenção a Remedios, a bela, que passou despida para o quarto. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar a sua abstração.
- Se você vai embora outra vez - disse-lhe no meio do jantar - pelo menos trate de se lembrar de como éramos esta noite.
Então o Coronel Aureliano Buendía se deu conta, sem espanto, de que Úrsula era o único ser humano que tinha conseguido desentranhar a sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhá-la na cara, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele tivera o presságio de que uma panela de sopa fervendo ia cair da mesa, e a encontrou espedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, os calos, as úlceras e as cicatrizes que deixara nela mais de meio século de vida cotidiana e comprovou que estes estragos não provocavam nele sequer um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para procurar no seu coração o lugar onde se haviam apodrecido os afetos e não conseguiu encontrá-lo. Em outra época, pelo menos, experimentava um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia na sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentira os seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso tinha sido arrasado pela guerra. A própria Remedios, sua esposa, era naquele momento a imagem apagada de alguém que podia ter sido sua filha. As inumeráveis mulheres que conhecera no deserto do amor, e que espalharam a sua semente em todo o litoral, não tinham deixado nenhum rasto nos seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto na escuridão e ia embora antes da alvorada, e no dia seguinte era apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que sentiu pelo seu irmão José Arcadio quando ambos eram crianças, e não estava baseado no amor, mas na cumplicidade.
- Perdão - desculpou-se diante do pedido de Úrsula - É que esta guerra acabou com tudo.
Nos dias subsequentes ocupou-se em destruir todas as marcas da sua passagem pelo mundo. Reduziu a oficina de ourivesaria até deixar apenas os objetos impessoais, deu as suas roupas aos ordenanças e enterrou as suas armas no quintal com o mesmo sentido de penitência com que o seu pai havia enterrado a lança que dera morte a Prudencio Aguilar. Conservou somente uma pistola, e com uma bala apenas. Úrsula não interveio. A única vez que se meteu foi quando ele estava se preparadno para destruir o retrato da Remedios que se conservava na sala, iluminado por uma lâmpada eterna. "Esse retrato deixou de pertencer a você há muito tempo", disse a ele. "É uma relíquia de família". Na véspera do armistício, quando já não havia em casa um só objeto que permitisse recordá-lo, levou à padaria da casa o baú com os versos, no momento em que Santa Sofía de la Piedad se preparava para acender o forno.
- Acenda com isto - disse a ela, entregando-lhe o primeiro rolo de papéis amarelados. - Arde melhor, porque são coisas muito antigas.
Santa Sofía de la Piedad, a silenciosa, a condescendente, a que nunca contrariara nem os próprios filhos, teve a impressão de que aquele era um ato proibido.
- São papéis importantes - disse.
- Nada disso - disse o coronel. - São coisas que uma pessoa escreve para si mesma.
- Então - ela disse - queime o senhor mesmo, coronel.
Não apenas o fez, mas espedaçou também o baú com uma machadinha e jogou os cavacos no fogo. Horas antes, Pilar Ternera o visitara. Depois de tantos anos sem vê-la, o Coronel Aureliano Buendía se assombrou de quanto havia envelhecido e engordado, e de quanto havia perdido o esplendor do seu riso; mas também se assombrou da profundidade que havia atingido na leitura das cartas. "Cuidado com a boca", disse ela, e ele se perguntou se da outra vez em que dissera, no apogeu da glória, não havia sido uma visão surpreendentemente antecipada do seu destino. Pouco depois, quando o seu médico pessoal acabou de lhe extirpar os furúnculos, ele pergunto sem demonstrar interesse particular qual era o lugar exato do coração. O médico o auscultou e pintou-lhe em seguida um círculo no peito com um algodão sujo de iodo.
A terça-feira do armistício amanheceu fresca e chuvosa. O Coronel Aureliano Buendía apareceu na cozinha antes das cinco e tomou o seu café sem açúcar habitual. "Num dia como este você veio ao mundo", Úrsula disse a ele. "Todos se assustaram com os seus olhos abertos". Ele não lhe prestou atenção, porque estava alerta aos preparos da tropa, aos toques de corneta e às vozes de comando que estragavam a alvorada. Ainda que depois de tantos anos de guerra estes ruídos lhe devessem parecer familiares, desta vez sentiu o mesmo desalento nos joelhos, e o mesmo arrepio da pele que tinha sentido na juventude, em presença de uma mulher nua. Pensou confusamente, enfim capturado numa armadilha da saudade, que talvez se tivesse se casado com ela teria sido um homem sem guerra e sem glória, um artesão sem nome, um animal feliz. Esse estremecimento tardio, que não figurava nas suas previsões, amargou-lhe o café da manhã. às sete horas, quando o Coronel Gerineldo Márquez foi procurá-lo em companhia de um grupo de oficiais rebeldes, encontrou-o mais taciturno do que nunca, mais pensativo e solitário. Úrsula tratou de jogar-lhe sobre os ombros uma manta nova. "O que é que o governo vai pensar", disse a ele. "Vão imaginar que você se rendeu porque já não tinha nem com que comprar uma manta". Mas ele não a aceitou. Já na porta, vendo que a chuva continuava, deixou que lhe pusessem um velho chapéu de feltro de José Arcadio Buendía.
- Aureliano - Úrsula disse a ele então - prometa-me que se você encontrar por aí com a hora difícil, você vai pensar na sua mãe.
Ele lhe deu um sorriso distante, levantou a mão com todos os dedos estendidos, e sem dizer uma palavra abandonou a casa e enfrentou os gritos, vitupérios e balsfêmias que haveriam de persegui--lo até a saída do povoado. Úrsula colocou a tranca no portão, decidida a não tirá-la durante o resto da vida. "Nós vamos apodrecer aqui dentro", pensou. "Nós vamos nos transformar em cinza nesta casa sem homens, mas não vamos dar a este povo miserável o gsoto de nos ver chorar". Passou a manhã inteira procurando uma lembrança do filho nos cantos mais escondidos e não conseguiu encontrar.
O ato se realizou a vinte quilômetros de Macondo, à sombra de uma paineira gigantesca, em torno da qual se haveria de fundar mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e os do partido e a comissão rebelde que entregou as armas foram recebidos por um buliçoso grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam uma revoada de pombas assustasdas pela chuva. O Coronel Aureliano Buendía chegou numa mula enlameada. Estava barbado, mais atormentado pela dor dos furúnculos que pelo imenso fracasso dos seus sonhos, pois tinha chegado ao fim de qualquer esperança, além da glória e da saudade da glória. De acordo com o determinado por ele mesmo, não houve música, nem foguetes, nem sinos de júbilo, nem placas comemorativas, nem nenhuma outra manifestação que pudesse alterar o caráter triste do armistício. Um fotógrafo ambulante, que tirou o único retrato seu que poderia ser conservado, foi obrigado a destruir o filme sem o revelar.
O ato durou apenas o tempo indispensável para que se pusessem as assinaturas. Ao redor da rústica mesa colocada no centro de uma remendada barraca de circo onde sentaram os delegados, estavam os últimos oficiais que permaneceram fiéis ao Coronel Aureliano Buendía. Antes de recolher as assinaturas, o delegado pessoal do Presidente da República tentou ler em voz alta a ata da rendição, mas o Coronel Aureliano Buendía se opôs. "Não vamos perder tempo com formalidades", disse, e se dispôs a assinar os papéis sem os ler. Um dos oficiais, então, rompeu o silêncio soporífero da tenda.
- Coronel - disse - faça-nos o favor de não ser o primeiro a assinar.
O coronel Aureliano Buendía concedeu. Quando o documento deu a volta completa à mesa, em meio a um silêncio tão nítido que seria possível decifrar as assinaturas pelo puro floreio da pena no papel, o primeiro lugar ainda estava em branco. O Coronel Aureliano Buendía se dispôs a ocupá-lo.
- Coronel - disse então outro dos seus oficiais - o senhor ainda tem tempo para ficar bem.
Sem se perturbar, o Coronel Aureliano Buendía assinou a primeira cópia. Ainda não tinha acabado de assinar a última quando apareceu na porta da tenda um coronel rebelde, trazendo pelo cabresto uma mula carregada com dois baús. Apesar da sua extrema juventude, tinha um aspecto árido e uma expressão paciente. Era o tesoureiro da revolução na circunscrição de Macondo. Fizera uma penosa viagem de seis dias, arrastando a mula morta de fome, para chegar em tempo ao armistício. Com uma calma exasperante descarregou os baús, abriu-os, e foi colocando na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência daquela fortuna. Na desordem do ano anterior, quando o poder central se partiu em pedaços e a revolução degenerou numa sangrenta rivalidade de caudilhos, era impossível determinar qualquer responsabilidade. O ouro da rebelião, fundido em blocos que foram logo cobertos de barro cozido, ficou fora de qualquer controle. O Coronel Aureliano Buendía fez com que se incluíssem as setenta e duas barras de ouro no inventário da rendição, e fechou o ato sem permitir discursos. O esquálido adolescente permaneceu diante dele, olhando-o nos olhos com os seus serenos olhos cor de caramelo.
- Alguma coisa mais? - perguntou-lhe o Coronel Aureliano Buendía.
O jovem coronel trincou os dentes.
- O recibo - disse.
O Coronel Aureliano Buendía estendeu-lhe um, feito do seu próprio punho e letra. Em seguida, tomou um copo de limonada e comeu um pedaço de biscoito que as noviças serviram, e se retirou para uma tenda de campanha que lhe haviam preparado para quando quisesse descansar. Ali tirou a camisa, sentou-se na beira do catre e, às três e quinze da tarde, desferiu um tiro de pistola no círculo de iodo que o seu médico particular lhe pintara no peito. A essa hora, em Macondo, Úrsula destampou a panela do leite no fogão, estranhando que demorasse tanto a ferver, e encontrou-a cheia de vermes.
- Mataram Aureliano! - exclamou.
Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morreu. "Mataram-no à traição", precisou Úrsula, "e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos". Ao anoitecer viu através das lágrimas os rápidos e luminosos discos alaranjados que cruzaram o céu como uma exalação, e pensou que era um sinal da morte. Estava ainda debaixo do castanheiro, soluçando nos joelhos do marido, quando trouxeram o Coronel Aureliano Buendía embrulhado na manta dura de sangue seco e com os olhos abertos de raiva.
Estava fora de perigo. O projétil seguira uma trajetória tão desimpedida que o médico lhe enfiou um cordão molhado de iodo pelo peito e tirou-o pelas costas. "Esta é a minha obra-prima", disse a ele satisfeito. "Era o único ponto por onde podia passar uma bala sem atingir nenhum centro vital". O coronel Aureliano Buendía se viu rodeado de noviças misericordiosas que entoavam salmos desesperados pelo eterno descanso da sua alma, e então se arrependeu de não ter dado o tiro no céu da boca como tinha previsto, só para enganar o prognóstico de Pilar Ternera.
- Se eu ainda tivesse autoridade - disse ao médico - mandava fuzilar o senhor sem julgamento. Não por me ter salvo a vida, mas por me fazer cair no ridículo.
O fracasso da morte lhe devolveu em poucas horas o prestígio perdido. Os mesmos que inventaram a lorota de que vendera a guerra por um aposento cujas paredes estavam construídas com tijolos de ouro definiram a tentativa de suicídio como um ato de honra e o proclamaram mártir. Em seguida, quando recusou a Ordem do Mérito que o Presidente da República lhe outorgou, até os seus rivais mais encarniçados desfliaram no seu quarto, pedindo que desconhecesse os termos do armistício e promovesse uma nova guerra. A casa se encheu de presentes de solidariedade. Tardiamente impressionado com o apoio maciço dos seus antigos companheiros de armas, o Coronel Aureliano Buendía não descartou a possibilidade de satisfazê-los. Pelo contrário, em dado momento pareceu tão entusiasmado com a idéia de uma nova guerra que o Coronel Gerineldo Márquez pensou que ele só esperava um pretexto para proclamá-la. O pretexto se ofereceu, efetivamente, quando o Presidente da República se negou a conceder as pensões de guerra aos antigos combatentes, liberais ou conservadores, enquanto cada processo não fosse revisto por uma comissão especial e a lei das concessões aprovada pelo Congresso. "Isto é uma confusão", trovejou o Coronel Aureliano Buendía. "Vão morrer de velhice esperando o correio". Abandonou pela primeira vez a cadeira de balanço que Úrsula comprara para a sua convalescença e, andando de um lado para o outro da alcova, ditou uma mensagem taxativa para o Presidente da República. Nesse telegrama, que nunca foi publicado, denunciava a primeira violação do Tratado de Neerlândia e ameaçava proclamar a guerra de morte se a concessão das pensões não fosse resolvida ao fim de quinze dias. Era tão justa a sua atitude que permitia contar, inclusive, com a adesão dos antigos combatentes conservadores. Mas a única resposta do governo foi o reforço da guarda militar que colocara na porta da sua casa com o pretexto de protegê-la e a proibição de toda e qualquer espécie de visitas. Medidas similares foram adotadas em todo o país, com outros caudilhos de cuidado. Foi uma operação tão oportuna, drástica e eficaz que dois meses depois do armistício, quando o Coronel Aureliano Buendía teve alta, os seus instigadores mais decididos já estavam mortos ou expatriados ou haviam sido assimilados para sempre pela administração pública.
O Coronel Aureliano Buendía abandonou o quarto em dezembro, e bastou dar uma olhada na varanda para não voltar a pensar na guerra. Com uma vitalidade que parecia impossível na sua idade, Úrsula voltou a rejuvenscer a casa. "Agora vão ver quem sou eu", disse quandos oube que o filho viveria. "Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo o mundo, que esta casa de loucos". Mandou-a lavar e pintar, trocou os móveis, restaurou o jardim e semeou flores novas, e abriua s portas e janelas para que entrasse até os quartos a deslumbrante claridade do verão. Decretou o fim dos numerosos lutos superpostos e ela mesma mudou os velhos trajes rigorosos por roupas juvenis. A música da pianola voltou a alegrar a casa. Ao ouvi-la, Amaranta se lembrou de Pietro Crespi, da sua gardênia crepuscular e do seu cheiro de lavanda, e no fundo do seu murcho coração floresceu um rancor limpo, purificado pelo tempo. Uma tarde em que tentava pôr em ordem a sala, Úrsula pediu ajuda aos soldados que custodiavam a casa. O jovem comandante da guarda concedeu-lhes a permissão. Pouco a pouco, Úrsula lhes foi designando novas tarefas. Convidava-os para almoçar, presenteava-lhes roupas e calçados e os ensinava a ler e a escrever. Quando o governo suspendeu a vigilância, um deles ficou morando na casa, e esteve a seu serviço por muitos anos. No dia de Ano-Novo, enlouquecido pelas grosserias de Remedios, a bela, o jovem comandante da guarda amanheceu morto de amor junto à sua janela."


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Trecho de "Cem anos de solidão", Gabriel García Márquez

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Livro de Jó - Capítulo 7

Capítulo 7

"1 A vida do homem sobre a terra é uma luta, seus dias são como os dias
de um mercenário.
2 Como um escravo que suspira pela sombra, e o assalariado que
espera seu soldo,
3 assim também eu tive por sorte meses de sofrimento, e noites de dor
me couberam por partilha.
4 Apenas me deito, digo: Quando chegará o dia? Logo que me levanto:
Quando chegará a noite? E até a noite me farto de angústias.
5 Minha carne se cobre de podridão e de imundície, minha pele racha e
supura.
6 Meus dias passam mais depressa do que a lançadeira, e se
desvanecem sem deixar esperança.
7 Lembra-te de que minha vida nada mais é do que um sopro, de que
meus olhos não mais verão a felicidade;
8 o olho que me via não mais me verá, o teu me procurará, e já não
existirei.
9 A nuvem se dissipa e passa: assim, quem desce à região dos mortos
não subirá de novo;
10 não voltará mais à sua casa, sua morada não mais o reconhecerá.
11 E por isso não reprimirei minha língua, falarei na angústia do meu
espírito, queixar-me-ei na tristeza de minha alma:
12 Porventura, sou eu o mar ou um monstro marinho, para me teres
posto um guarda contra mim?
13 Se eu disser: Consolar-me-á o meu leito, e a minha cama me
aliviará,
14 tu me aterrarás com sonhos, e me horrorizarás com visões.
15 Preferiria ser estrangulado; antes a morte do que meus tormentos!
16 Sucumbo, deixo de viver para sempre; deixa-me; pois meus dias são
apenas um sopro.
17 O que é um homem para fazeres tanto caso dele, para te dignares
ocupar-te dele,
18 para visitá-lo todas as manhãs, e prová-lo a cada instante?
19 Quando cessarás de olhar para mim, e deixarás que eu engula minha
saliva?
20 Se pequei, que mal te fiz, ó guarda dos homens? Por que me tomas
por alvo, e me tornei pesado a ti?
21 Por que não toleras meu pecado e não apagas minha culpa? Eis que
vou logo me deitar por terra; tu me procurarás, e já não existirei."


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Livro de Jó, Antigo Testamento

Snowflakes

http://www.youtube.com/watch?v=wdPK5Zh5xW4

Moscow - Russia
Song: The National - Daughters of the Soho Riots

"My wife loves when it snows. I hate it"

sábado, 26 de novembro de 2011

Última noite branca

Última noite em St. Petersburg. Amanhã (27/11/2011), às 11:53, vou de trem para Moscow, uma viagem de 10 horas sentado, porque não tive grana pra comprar outra passagem com cama. Tenho 1300 rublos no bolso (um real equivale a quinze rublos). Pego um avião de Moscow para Paris às 20h do dia 28/11/2011 e, até lá, tenho de ficar andando pela rua, porque não tenho grana pra ficar em lugar nenhum também. Minhas botas, que comprei na semana passada, estão mais velhas do que muitos de vocês. Chegando a Paris, tenho duas horas para pegar outro vôo pro RJ, o que significa que, se algum desses horários atrasarem, eu estarei fodido. Chegando ao RJ, pego um ônibus do aeroporto pra rodoviária e fico esperando mais uma vez por um ônibus pra Juiz de Fora. Como não vou dormir absolutamente nada por dois dias, era pra eu estar dormindo agora (a madrugada já iniciou aqui), mas como era de se esperar, não consigo dormir.

Mas a única coisa que me incomoda é que ainda posso ser encontrado no mapa.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pesadelos

Os pesadelos nunca deixarão que você se esqueça da insanidade, como cicatrizes.

Um dia um homem casado, com sua vida feita, após beijar seus filhos e sua mulher e deitar-se, acordará de madrugada, com o corpo completamente suado, e não se dará ao trabalho de acordar sua esposa, por saber que será um incômodo em vão.

Assim como um empresário bem sucedido, após um dia muito produtivo, em sua cama solitária, acordará assustado, no escuro, e tentará se concentrar e dormir para seu atarefado dia seguinte.

Um padre, a despeito de toda sua dedicação, acordará lembrando-se de que seu interior questiona sua própria fé, ao redor da qual gira sua vida.

Um mendigo, deitado em qualquer lugar coberto de uma calçada, enrolado em um velho cobertor, acordará sem compreender como o interior de sua mente pode assombrá-lo mais do que o próprio mundo.

Há algo que une a existência de todas as pessoas que sentem o mundo. E por mais que se tente ignorá-lo, é impossível deixar de senti-lo. Há uma razão pela qual nenhum corpo se encaixe naturalmente ao seu, e é em vão qualquer esforço para tentar explicar a solidão. Algumas pessoas estão fadadas a ela e terão de aprender a lidar com sua convivência, sem qualquer explicação.



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Sábado viajarei para Amsterdam e, posteriormente, Moscou e São Petersburgo. Se não encontrar inspiração na viagem, vou deletar este blog e desistir de escrever. Honestamente, estou cansado.

domingo, 23 de outubro de 2011

http://www.youtube.com/watch?v=vQVeaIHWWck

"A consciência é um inferno" - disse o bêbado.

domingo, 16 de outubro de 2011

A manhã de um miserável

Acorde. A luz grita pela janela, fazendo seu cérebro pulsar, como quem conta o tempo em dor. Você dormiu no sofá de novo. Levante-se, olhe ao seu redor. Duas garrafas de vinho no chão, uma câmera ao seu lado, poucas recordações. Objetos ordinários. Você está em apartamento qualquer, mas o conhece melhor do que gostaria. Todos aqueles objetos que todas as pessoas precisam pra sobreviver, muitos os quais você conhece melhor do que conhece as pessoas. Seus detalhes são mais identificáveis que suas utilidades. As pessoas, você as quer conhecer, sabe que todas são individualmente racionais e interessantes, apesar de os homens se tornarem meros animais ao saírem de suas casas, algo que você não suporta. Mas não se pode pular etapas. Ninguém confiará o bastante em você para simplesmente entrar em seu apartamento, fugir de todos os outros, sem antes ter te conhecido. Você abre sua janela e então se lembra do porquê de manter as cortinas sempre fechadas. Olha para seus vizinhos, para as janelas, para as luzes, sabendo de cor tudo o que eles farão em suas rotinas medíocres. Observa, então, que sua mão treme. Há quanto tempo não come? Pega sua câmera e, filmando o chão, vai até a geladeira. Todos os tipos de congelados, aparentemente saborosos. Mas isto não importa. Você simplesmente precisa comer, pra que seu corpo pare de perturbá-lo. O gosto da comida já lhe é indiferente há muito tempo. Uma produção em massa de animais para que simplesmente sejam mortos e postos em sua geladeira. Unicamente porque o homem é mais forte, mais esperto. Estes animais, nascidos em cativeiros fétidos, sem dispor de tempo pra sequer imaginar em que consista suas vidas, eram, ainda assim, mais felizes que você. Seu maço de cigarros. Cujo gosto há muito já perdeu sua graça. Já não acalmam. Você o mantém fechado. Estragam seus dentes, você precisará deles pra entrevistas de emprego futuramente. Vá ao espelho, arrume-se dignamente. Percebe então, ao ver seu reflexo pelas lentes de sua câmera, o corpo sem sonhos que é. Por opção própria, como todas as pessoas. Preferimos sempre esquecer que a existência é curta, mergulhar na futilidade de uma vida ordinária e deixar para reclamar sobre a incompletude quando a velhice nos roubar os escapismos da juventude. Você se lembra, então, que não gosta de ser filmado. Lembra-se de como as pessoas se sentem desconfortáveis quando sua câmera está em suas mãos. De certa forma, você as compreende. Mas não pode ter certeza disto. E nem faz questão, aborrecido como está pelo começo de mais um dia. Dê mais um passeio por seu apartamento, com a câmera na mão. Iluda-se de que tudo será melhor quando você puder se mudar com frequência, nunca parar no mesmo lugar. Mas você sabe que todos esses objetos ao seu redor seguem um padrão – bem como as tradições - e ainda que acorde em diferentes apartamentos, em diferentes cidades, em diferentes países com diferentes culturas, acordará rodeado por pessoas iguais, patéticas. Como você. O padrão é intragável.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Os olhos do vício

O vício assiste ao mundo, com pesar.
O bar esvaziava à medida que a madrugada o invadia. A garçonete, com sua roupa vulgar e sua cara estereotipada, servia sua última dose de whisky. Ela sabia que aquele era o momento em que seu patrão transformava o balcão em um improvisado palco, momento em que ela se transportava ao seu segundo emprego. Torcia para que o tatuador - cujo nome desconhecia – fosse ao jukebox, para que pudesse dançar algo mais lento e agradável. Era horrível quando qualquer homem novo o fizesse, colocando algo vulgar para se divertir com os amigos. É estranho como uma cidade cresce até certo ponto, diminuindo a partir de tal, formando microcidades em seu interior. Apesar de desconhecer os nomes dos frequentadores ou nunca com eles ter trocado sequer uma palavra, sabia muito sobre a personalidade de cada um. Este tatuador, por exemplo, era um dos mais talentosos em todo o enorme concentrado urbano em que viviam, mas não tinha nenhuma credibilidade por ter aprendido a tatuar em seu próprio corpo, tornando-o um emaranhado de desenhos tortuosos e de baixa qualidade, principalmente em suas partes mais visíveis. Por outro lado, gostava de morar em um lugar tão grande, onde sabia que poderia recomeçar simplesmente mudando de bairro. Ou se iludia com essa ideia. Parte das pessoas de emprego medíocre é livre em sua mente, apesar de escravas do dinheiro, da rotina medíocre que exercem pelo necessário para sobreviverem. Outras pessoas, de empregos melhores, são meros escravos do tempo. Há ainda os que são escravos de sua própria vulgaridade. Já parou para pensar quantas pessoas são autônomas o bastante para, caso estejam insatisfeitas com sua vida, poderem simplesmente alterá-la por completo?
Felizmente, o tatuador se dirigiu ao jukebox, escolhendo uma canção a qual deixarei por conta de sua própria imaginação. Desta forma, a mulher poderia se mover lentamente, de acordo com o peso do cansaço em seus olhos. Às vezes, enquanto dançava, pensava que não precisava deste segundo emprego. O dinheiro sequer era compensador, boa parte das gorjetas ia ao seu patrão. Não possuía família. Não possuía grandes ambições. De certa forma, sequer possuía responsabilidades. Mas era incrível o poder do cansaço. Enquanto dançava, observava as pessoas ao seu redor e o constatava. Seu patrão, fumando um cigarro, conversava sorridente com um grupo de amigos, provavelmente a oferecia. Imaginava se ele sequer sabia seu nome, provavelmente pensava nela como a mulher de seios menores, ou da bunda maior, de acordo com seu humor. O tatuador mal assistia à dança, simplesmente tomava mais uma dose de cachaça. Provavelmente havia tirado pouco dinheiro naquela semana, ou estaria bebendo whisky. No balcão, mais próximo a ela, outro frequentador: mais bem vestido, sabia que este era viciado em jogos, compreendia sua infelicidade: quanto mais gostasse de algo, mais provável seria perdê-lo. Cabisbaixo, procurava finalizar sua bebida antes que a perdesse em alguma aposta. Para ele, era horrível pensar no amanhã.
Porém, já não sentia raiva daquelas pessoas. Sabia que cada um estava ali apenas por um motivo, pelo mesmo motivo que ela: o cansaço. Também já não a desprezava pela mesma razão; a idade comera sua arrogância, a possibilitara notar que não era tão diferente deles, e que suas posições também não eram de todo diferentes, desprezando-se o que socialmente se pensava. No fim das contas, eram apenas pessoas no final dos seus dias, de suas rotinas, cansadas demais para mudar, indiferentes demais para julgar. Não há certo ou errado quando se está cansado demais, apenas procura-se mover para frente, continuar o caminho que se construiu. Dançar, não importa a canção, não importa a companhia, se há qualquer companhia, se há qualquer sentido, se a música é boa ou ruim. Move-se para frente.
Ao finalizar sua dança, sem qualquer freguês que pretendesse com ela algo além, a mulher se vestiu e, na saída da espelunca na qual trabalhava, pensou em acender um cigarro. Mas não teve ânimo para tal. Não é de se estranhar que haja, na vida, vícios, sendo esta própria um vício. Mas que de tão viciosa, comia seus próprios vícios, e seu próprio amor por viver.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Grande inquisidor

É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A acção passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante1.Em França, os "clercs de la basoche"2e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espectáculos ingénuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste género, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam- se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles "de que até Deus se esquece" - expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?" -, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é justa!". Pois bem: o meu poemazito teria sido deste género, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: "Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores".

É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: "Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev3, que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda".

Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A acção passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, "como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei4.Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança - e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:

- És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez - diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.

- Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã - objectou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. - É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?

- Admite essa última hipótese - respondeu lvã, rindo - se o realismo moderno te tornou a esse ponto refractário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
- E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?

- Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos." Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. "Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?" - pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: "Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" - acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completámos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
- Não compreendo outra vez - interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma
troça?

- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objectivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
- Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
- Mas é o ponto capital do discurso do velho.

"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada - continua ele - falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te "tentou". É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as "tentações" que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o facto de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: "Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.

"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.

"Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: "Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?" Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. "Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!" Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: "Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram." Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: "Fazei de nós escravos, mas alimentai- nos." Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! Também se hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas que há-de ser dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se finalmente dóceis. Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo- nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade - indivíduos e colectividade - : "diante de quem se inclinar?" Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reuna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!

Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: "Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai." Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-to: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de chamá-Lo com desespero e esta blasfémia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfémia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exactamente Oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitámos Roma e o gládio de César e declarámo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objectivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.

No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter connosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra "Mistério!" Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua lib erdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão- de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-à tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.

Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por biliões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles.

Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvámos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o número". Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um
sorriso nos lábios.
Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes
tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.

- Mas... é absurdo! - exclamou, corando. - O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.

- Espera, espera - disse-lhe rindo lvã. - Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
- Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas
vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.

- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?

- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quase zangado. – Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
- Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça". Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército "ávido do poder apenas para os vis bens", não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia directriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o
ar de um autor que não suporta a tua crítica.

- Talvez tu sejas também mação - disse de súbito Aliocha. - Não acreditas em Deus - continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça. - Como acaba o teu poema? - prosseguiu ele, baixando os olhos. - Não há mais nada?

- Há. O fim que eu tinha pensado era este: "O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
- E o velho?
O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.

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Capítulo, "O grande inquisidor", da obra "Irmãos Karamazov" de Dostoievski.