quinta-feira, 24 de julho de 2008

O dom da ignorância

A respiração ofegante cessou ao sentir um esvaziamento que eliminava um peso maior que o aparente e, então, comemorou por aquela ser uma das boas vezes.
Nessa situação, sempre havia extremas possibilidades de sensação: a que sentia agora era a de ter eliminado (ao menos temporariamente) o único sentimento que o obrigava a conviver com outras pessoas: as necessidades carnais; como se de repente ele se sentisse feliz por estar sozinho e desejasse ficar assim pra sempre, se isolar e nunca mais estabelecer contato com ninguém; como se o mundo exterior não tivesse mais valor e tudo o que é importante fosse seu mundo interior, onde ele não desejava ninguém, apenas ele e o silêncio. Quando obtia esse resultado, ele costumava fechar a porta e todas as janelas de seu apartamento, tirar a TV e o computador da tomada, desligar o celular e telefone e simplesmente gabar-se mentalmente por ser mais inteligente que os outros por conhecer a natureza humana e, por isso, odiar o contato com ela; pensando e sorrindo enquanto deita em sua cama e permanece a observar o teto.
A outra possibilidade ocorria quando ele se lembrava que o que ele imaginava pra chegar a esse momento eram coisas que ele já havia possuído e perdera; então, sentia o isolamento queimar seu corpo, sentia as lágrimas arrombarem suas pálpebras e percebia que sua idade avançava sobre sua capacidade, embora se considerasse mais sábio agora, muito do que conquistara agora parecia impossível para ele. A saudade do real, do contato humano, da companhia sincera, corroía seu mundo interior e permitia que o mundo exterior jantasse seu corpo com uma onda de sentimentos enzimáticos. Então ele olha desesperadamente o telefone, liga pelo seu celular para seus amigos e percebe que as coisas não são mais as mesmas, procura conversar na internet, vê programas inteligentes na TV tentando massagear seu ego, abre as janelas e fuma até que a última luz do último apartamento do último prédio se apague. Percebe, então, que dom tamanho é a ignorância.
Pega o revólver no armário, o põe na boca e engole toda a saliva, percebe seu dedo travado no gatilho e que sua covardia em mudar não permite que ele enfrente o mundo lá fora e muito menos o desconhecido pós-vida. Então, ele guarda a arma, toma dezenas de remédios e dorme no chão.