sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

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"O homem andava apressado, investigando tudo ao seu redor, como se houvesse perdido algo e o estivesse procurando, farejando como um lobo, caçando pela noite. O fato é que havia se segurado mais do que podia e precisava se soltar naquele instante, deixar que seus instintos fizessem seu trabalho, agir como suas raízes ordenavam – era um animal, já não podia negar, não importava o quanto fosse inteligente, o quanto assimilasse, continuaria sempre sendo um animal.
Um barulho o fez parar instantaneamente. Por alguns segundos o homem fechou os olhos e sentiu sua respiração ecoar – estava mais bela do que nunca, soava como música; todos os pequenos sons da rua – como o gotejar de calhas de pequenas casas de baixo porte ou o vento movimentando papéis no chão – formavam uma simples e bela sinfonia, uma música em homenagem a alguém que por muito tempo esteve morto e agora finalmente voltara à vida.
Colocou a mão direita no interior de seu paletó e lá estava ela – sempre estivera lá – adormecida, esperando pelo momento de finalmente voltar a ser usada. Duvidamos de alguns sentimentos que são certos, mas simplesmente acreditamos em alguns que são duvidosos; o fato é que soava certo tocá-la naquele instante, o toque provocou-lhe a sensação de que sua mão estava no lugar certo, na hora certa; era hora de usá-la.
Abriu os olhos e sorriu; o garoto – algo em torno de dezenove anos – havia passado por ele fingindo indiferença, mas nem era preciso olhar em seus olhos para perceber a presença do medo, da desconfiança; talvez o garoto tentasse não admiti-la sequer a si mesmo e isso fosse o que a tornava tão gritante. O homem dobrou rapidamente uma esquina; precisava pegá-lo de frente, olhar em sua face enquanto ele sentia o que tinha por fazer.
Esperou os passos ficarem mais fortes e dobrou a esquina seguinte, parando bem em frente ao garoto – tão próximos que quase trombaram. Por um segundo que, se não houvesse sido criado um padrão para o tempo, poderia se dizer horas ou dias, eles se encararam, olho a olho – muito próximos – e, nesse segundo, um pôde entender perfeitamente o estado de espírito e as intenções do outro; apenas um deles sorria.
Com o braço esquerdo, o homem retirou um pano úmido do paletó e o pressionou contra o rosto do garoto, que se debateu em vão – não era forte o suficiente – até desmaiar.
A partir daí o homem se sentia cada vez menos consciente, como se seu próprio corpo fizesse seu trabalho agora; ficava parado, apenas observando seus braços agirem sozinhos.
Retirou de seu paletó uma bela faca que parecia brilhar, entender e responder ao luar. Virou o garoto de costas e, cuidadosamente, rasgou sua camiseta, a afastando e deixando suas costas a vista. De olhos fechados, enquanto movimentava a boca sem produzir sons, o homem, com a faca, desenhou habilmente uma partitura já preenchida por notas nas costas do garoto.
-Permita que esse cadáver utilize seu corpo para produzir vida – ele disse.
Repentinamente o homem se levantou, caindo para trás como se houvesse levado um susto; olhou para o garoto com indiferença enquanto se limpava (ou tentava se limpar) com um novo pano, ajeitou seu paletó e saiu andando novamente, tentando se lembrar onde havia estacionado seu carro."