terça-feira, 15 de setembro de 2009

Tabacaria - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

...

Sorte o ser humano possuir polegar opositor..
Caso contrário, eu levaria meses pra diferenciá-lo de um animal qualquer.

AA! UU!

"AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Estou ficando louco
De tanto pensar
Estou ficando rouco
De tanto gritar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Eu como, eu durmo
Eu durmo, eu como
Eu como, eu durmo
Eu durmo, eu como

Está na hora de acordar
Está na hora de deitar
Está na hora de almoçar
Está na hora de jantar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Estou ficando cego
De tanto enxergar
Estou ficando surdo
De tanto escutar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!

Não como, não durmo
Não durmo, não como
Não como, não durmo
Não durmo, não como

Está na hora de acordar
Está na hora de deitar
Está na hora de almoçar
Está na hora de jantar

AA! UU! AA! UU!
AA! UU! AA! UU!"


(Titãs - AA UU)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Lisa

Lisa no canto do quarto
Lisa observando a fumaça
Lisa desprezando o movimento
Lisa escutando o silêncio
Lisa sorri
Lisa chora
Lisa não pode ser vista
Lisa está morta

(Tem oito anos e sorri quando pisca a luz)

Envelhecer

Uma gota cai do céu
Em meio a muitas, mas esta é uma gota especial
Entre tantos céus, ela escolheu o mais nublado
Entre tantas nuvens, ela escolheu a que mais se parecia um sonho
Entre tantos prédios, escolheu o mais sujo
Entre tantas janelas, escolheu a mais antiga
Se chocou contra o vidro e desapareceu

No pequeno e desajeitado quarto, reinava o silêncio
Em sua porta, uma placa gritava:
"Aluga-se este espaço vazio"

domingo, 6 de setembro de 2009

Eloquência

A inteligência é o corpo nu
algum prazer e muita dor

É um curtametragem de ilusão
e um filme mudo de solidão

Inteligência é desinteressante
É a boca muda e a cabeça baixa

O silêncio é criativo

O culto e o poeta

Tinham medo de se olhar nos olhos.
Para o culto, o poeta era um mistério, e ele odiava se confrontar com o que não conhecia perfeitamente.
O poeta, porém, tinha medo de uma única pergunta - ficava branco só de pensar em seu ponto de interrogação e o silêncio que se seguiria a ele. Ele sabia que, quando olhasse o culto nos olhos, enxergaria conhecimento, enquanto o culto, quando encarasse os olhos do poeta, se depararia com a criatividade.
Quem sentiria inveja?

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Morte anterior à vida

Só quem já tocou em um cadáver sabe qual a sensação.
No início eles são moles, flácidos, como uma mulher que grita por socorro em vão enquanto é estuprada em um beco sujo por um homem nojento. Depois, porém, eles ficam rígidos - tão rígidos que, se fechar os olhos enquanto os toca, pode ter dúvidas quanto a quem está morto: você ou ele.
Dizem que uma pessoa só se sente viva quando em contato com outras pessoas; eu ouso discordar. A vida nada mais é do que um caminho em direção à morte - se você não se aproxima dela, não vive, e quanto mais se tem contato com ela, mais se sente vivo (experimente alguns segundos com uma arma carregada e apontada para sua cabeça).
Quando se toca uma pessoa viva, sente-se um pouco do que ela é: a textura de sua pele, a sensação provocada pelo toque - onde ela gosta (ou não) de ser tocada. Quando se toca um cadáver, tem-se a sensação do que é ser você: as unhas roídas se comprimindo contra a carne de seus dedos, suas doenças, hipocrisias, medos e desejos. É quase como tocar a si mesmo (e, de fato, talvez seja o mesmo, já que, para nós, nossas próprias vidas nunca são interessantes, o que não nos torna diferentes de uma pessoa morta).
Tocar um cadáver é como fazer com que seus dedos entrem em suas mãos, seu cérebro vire do avesso e se torne nítido, claro; tocar em um cadáver é nojento.
Já pensou em transar com um?

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

No meio de tudo, nada

No meio de um deserto, nasce uma flor
Cientistas questionam, debocham, ironizam
É impossível, mentira, sonho, mas é fato:

No meio de um deserto, nasce uma flor
E é realmente um sonho na cabeça dos poetas
Eles a descrevem: corajosa, ousada, brilhante e bela

No meio de um deserto, nasce uma flor
Ela exibe suas pétalas ao privilégio do sol
Balança, ao vento, como os cabelos de uma mulher
Única, maravilhosa, sábia, só
Milagrosa, forte, só
Feliz, só
só.

Quem vai dizê-la que é mais bela que todos os cactos à sua volta?

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Cego

As paredes possuem olhos
Procurei os amigos, me escondi em cada um deles

Os amigos possuem olhos
Procurei as mulheres, me escondi em suas bocas e seus sexos

As mulheres possuem olhos
Procurei as bebidas, mergulhei em todos seus copos

As bebidas possuem olhos
Procurei uma caverna, rastejei, me escondi

As cavernas possuem olhos
Em desespero, gritei, gritei, e depois silenciei

O silêncio possui tudo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Monólogo

Silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio, silêncio, silêncio, silêncio
Fumaça, silêncio
As palavras mandam.

(...)

"De que lar os tiranos de nosso mundo escaparam?
Nero queimou Roma duas vezes, então compôs uma melodia dissonante
e a tocou até que toda a cidade cantasse com ele
Holako, quem herdou esta melodia,
colocou fogo
na biblioteca do mundo, o rio
se encheu de tinta, e das cinzas nasceu o idioma dos gafanhotos
como um presente ao louco.
Depois das saudações à loucura, Hitler veio
(...) Mas não se satisfazendo,
teve de incluir o marem sua grande destruição,
e a guerra no mar, com o tumulto na terra,
se juntaram em sua conflagração raivosa.

Eu também já vi um tirano
O qual possui um poder maior do que os outros três.
Ele cometeu várias atrocidades
e ainda assim: em seus dias,
houve cinco poetas
que silenciaram"

Omar Dahbour

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Traduzido do Inglês para o Português (o original, em Árabe)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Gravetos na fogueira da solidão

Ele cozinhava para si mesmo; salivava diante dos melhores pratos e tremia perante a ansiedade do relógio, que não se continha e pedia, a cada segundo, para que a comida logo ficasse pronta e seus ponteiros pudessem assisti-lo comer.
Ele cozinhava para si mesmo; e era um banquete. Sorria enquanto fervia uma panela de rancor e via cozinhar outra de infelicidade. Em uma frigideira, suas lembranças e seu passado fritavam e tudo se tornava fumaça enquanto, na mesa, a solidão apertava os talheres contra o prato provocando um ruído insuportável, demonstrando seu incontrolável ímpeto de devorar. Serviu a mesa, mas perdeu a fome.
Ele cozinhava para si mesmo e, sozinho, alimentava sua solidão; e era um banquete!

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

No mundo dos espelhos

Lewis Caroll, falecido em 1898, foi um escritor e professor de matemática na faculdade de Oxford, na Inglaterra; Caroll possui, entre suas publicações, o clássico "Alice no país dos espelhos". Neste, a personagem Alice entra em um mundo fictício que habita o "interior" de nossos espelhos (mundo formado pelas imagens que vemos no espelho). Supondo que Alice encontre um espelho (que funcione para ambos mundos) que, de nosso ponto de vista (do ponto de vista de nosso mundo), seja convexo; caso ela se posicione entre o Foco e o Vértice deste espelho, quais serão as propriedades do objeto (Alice) em relação ao nosso lado do espelho e quais serão as propriedades de Alice em nosso mundo (sua imagem) em relação a ela própria?

GRANDES e pequenos jogadores

O Futebol é, sem dúvidas, um dos esportes mais belos do mundo; é porém, um esporte acompanhado por pessoas que o sabem apreciar e, infelizmente, pessoas que não têm nenhuma noção de como apreciá-lo. Este segundo tipo de pessoas é o que costuma confundir a grandeza de um clube com o número de títulos deste ou a grandeza de um jogador com números e estatísticas bestas, ou simplesmente com a habilidade, o que é completamente inaceitável.
O futebol está longe de ser passível de demonstração verídica em números, estatísticas, tabelas, assim como um jogador. Um time de futebol é um movimento cultural por si só, independente de seus títulos, ele carrega uma história que o torna um time grande; assim é, também, o jogador: independente de qual sua média de gols, quantos gols perde, quantas vezes falha dentro de campo e quantas vezes acerta, há diversos outros fatores que o tornam um grande ou um pequeno jogador.
Se o grande jogador fosse medido apenas por habilidade, por exemplo, Gattuso não seria um ídolo da seleção italiana tetracampeã mundial; o que o torna um grande jogador não é nem de longe sua habilidade, mas sim sua raça, sua emoção, o fato de vestir a camiseta da Itália e amá-la acima de qualquer coisa.

O problema de enxergar o futebol dessa forma é ter de ler declarações como essa de Keirrison (retirada de uma entrevista coletiva do jogador realizada no dia 16/08/09):

“Sou grato ao Palmeiras, aos companheiros, à torcida, ao Vanderlei Luxemburgo. Minha passagem foi muito rápida, mas o futebol muda muito rápido. Apareceu a proposta do Barcelona e não tinha como recusar. Qualquer um na minha situação aceitaria”

É uma declaração que particularmente me irrita muito porque, antes de mais nada, é algo que ouço desde minha infância: "Faça isso, é ridículo, mas todo mundo faz, então não tem problema algum"; essa mania medíocre do ser humano de justificar suas ações em cima do que outras pessoas fariam em seu lugar, como se a sua existência fosse simplesmente algo inútil, já que todas suas decisões vão ser exatamente iguais às de qualquer um que estivesse decidindo por você. O que qualquer um faria no lugar dele, sem dúvidas, é ser grato aos companheiros e à torcida, que o apoiaram apesar de sua fase final ridícula no clube (fase na qual ele já tinha certeza que seria transferido ao exterior), gratidão que não chega a ser o preço mínimo e a qual ele se absteve de pagar para o Palmeiras. Quanto à proposta, eu concordo em partes com ele, mas para ser ideal, faria uma paráfrase: (...) Apareceu a proposta do Barcelona e não tinha como recusar. Qualquer medíocre sem conhecimento dos grandes ídolos do futebol de meu país e do clube no qual me encontrava aceitaria.
E isso é fato, eu não preciso pensar muito para responder a esse jogador que o que ele diz não é verdade; para não citar casos de fora do meu clube, como Nilton Santos (considerado um dos jogadores mais inteligentes de todos os tempos, um revolucionário da ponta-esquerda e que nunca vestiu outra camiseta senão a do Botafogo - com exceção da camiseta da Seleção Brasileira) ou, para não me acusarem de me utilizar apenas de exemplos antigos, Rogério Ceni (revelado, em 1990, pelo Sinop Futebol Clube, e vestindo a camiseta do São Paulo neste mesmo ano para não tirá-la até os dias de hoje, apesar das inúmeras propostas para sair do país), resolvi me ater a apenas dois ídolos da história do Palmeiras:

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Em primeiro lugar, Ademir da Guia - O Divino.
Ademir da Guia foi revelado pelo Bangu, onde atuou por dois anos (1960 e 1961). A partir daí, só vestiu a camiseta alviverde (sendo titular absoluto do time por mais de dezesseis anos). É conhecido por seu domínio de bola, visão de jogo, calma e elegância, além de ser considerado um dos craques mais injustiçados do futebol (por seu número de participações pela seleção brasileira).

"A gente brincava de 'bobinho' nos treinos e tentava fazer o Ademir ir para o meio. Todo mundo tocava para ele com efeito, mas não tinha jeito. Do jeito que a bola viesse ele dominava. Eu não me lembro de uma única vez em que o Ademir tenha ido para o meio da roda." - Leivinha, ex-jogador palmeirense e companheiro de clube do Divino.

Sua importância ao Palmeiras é comparada à importância do Pelé para o Santos; isso, além de vir de sua enorme habilidade, vem do primordial para tornar alguém ídolo de um clube: amor e fidelidade a este.

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Para não me alongar demais, um dos maiores goleiros da história e meu maior ídolo no futebol: Marcos Roberto Silveira Reis - o São Marcos.
Um dos maiores prazeres que existe em ser Palmeirense em minha geração é poder ver um ídolo do Palmeiras ainda em atuação. Marcos chegou ao Palmeiras em 1992, fazendo sua partida de estréia em jogos oficiais (já que foi titular, em 1992, do Palmeiras na partida contra o Guaratinguetá) contra o Botafogo-SP em 1996, já pegando um pênalti(http://www.youtube.com/watch?v=Z5CDO6qTJHg - reconhecer um ídolo é fácil, como o próprio narrador torna óbvio: o gol não faria nenhuma diferença, mas a comemoração de São Marcos é de encher os olhos de qualquer torcedor palmeirense; vídeo muito emocionante) (Palmeiras 4 x 0 Botafogo - SP)
Sua história de gigante realmente começa em 1999, quando se torna titular do Palmeiras na Taça Libertadores da América (pela contusão do goleiro na época titular, Velloso), Libertadores conquistada pelo Palmeiras. Um jogo histórico e marcante para sua carreira, foi a vitória do Palmeiras nos Pênaltis contra o rival Corinthians nas quartas-de-final do campeonato (http://www.youtube.com/watch?v=ID6zmQDM74I - não achei um vídeo com momentos do jogo e os pênaltis, portanto, acabei usando este que mostra exclusivamente os pênaltis) (Corinthians 2 (2) x (4) 0 Palmeiras - Pênaltis).
Pela Seleção Brasileira, Marcos foi titular no pentacampeonato de 2002, realizando, segundo a FIFA, a melhor defesa da competição (contra a Alemanha, na final, em cobrança de falta de Neuville).
Marcos recebeu inúmeras propostas para clubes internacionais e nacionais; um grande exemplo de sua fidelidade foi a recusa da proposta de transferência do clube inglês Arsenal em 2003, ano em que o Palmeiras disputou a Segunda Divisão, se mantendo fiel ao Palmeiras mesmo no momento mais baixo da história do Clube. Quanto a propostas nacionais, Marcos recebe, durante sua contusão, em 2007, uma proposta de empréstimo pelo Botafogo, também recusada pelo jogador.
Entre seus vários prêmios, vale destacar que Marcos foi o único goleiro a ser eleito melhor jogador na Taça Libertadores da América (em 1999).

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Existe, portanto, uma diferença entre os grandes jogadores e os pequenos jogadores que não está no futebol, mas na cabeça e no coração, é o que estes passam para a torcida, é o que faz com que esses produzam a verdadeira emoção de ver seu time jogar; é o amor que os liga ao time na vitória e na derrota, é o que os torna ídolos.
Quanto à gratidão, a torcida do Palmeiras não precisa de gratidão, já temos do que nos orgulhar e deixamos o ridículo de lado; vale lembrar, como diria Marcos em entrevista após o último jogo de Edmundo com a camiseta alviverde: "(...) Podem ter certeza de que a torcida do Palmeiras não grita o nome de qualquer um". E é isso, Keirrison, espero que a média de 1,33 gols por partida se transforme em uma média de 1,33 milhões de euros na Europa, pra que te agrade mais, já que você acaba de recusar o que há de mais valioso no futebol, os gritos de uma "Torcida que canta e vibra".

"O técnico Muricy Ramalho fez questão de elogiar o poder de reação de Marcos e o fato de ele não ter se abatido com o lance do gol. 'Os grandes são assim. Não se apequenam e aparecem no momento que você precisa. O Marcos é dessa maneira, ele faz a diferença', elogiou o treinador."
Muricy, técnico do Palmeiras, após empate por 1x1 contra o Atlético-MG pelo Campeonato Brasileiro, no Mineirão, em 09/08/09; jogo em que Marcos falhou no gol do Atlético, mas se redimiu ao defender um pênalti.

sábado, 15 de agosto de 2009

Diagnosticado

A felicidade em um comprimido
Empoeirado, perdido, em uma mesa
O homem comprimido
Fedido, vazio, em um quarto cheio

Isotretinoína, Valium e AZT
Algumas pessoas não nascem para viver

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Cafeína

Hoje me deitei na sujeira do mundo
Engoli desesperança e vomitei sorte
No hospital da nicotina, caçoei da morte
Nessa vida, já lambi de tudo

Transformo poeira em sonho
Luz em solidão
Arrasto as correntes pelas calçadas
Choro do grito uníssono da multidão

Lá vem o sol novamente, divisor das águas porcas
É quando os anjos, padres e prostitutas
Vêm me lembrar que ninguém faz merda de dia
Se enxerga demais

Toda porra é igual.

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http://www.youtube.com/watch?v=IW3Evz1Fcrg

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Dia-a-dia

Palavra fumaça fumaça palavra quarto fechado fumaça palavra palavra fumaça quarto fechado quarta palavra fumaça fechado palavra quarto fumaça fechada palavra fechada fumaça quarta palavra fechada fumaça fechado quarto palavra quarta fechado palavra quarto fumaça palavra quarta fechado fumaça fechada quarto palavra fumaça quarto fechado palavra quarto fumaça fechado fumaça fechado fechado fechado fechado fechado fechado fechado fechado fumaça

quarta-feira, 22 de julho de 2009

De volta ao lado de fora

Sonhar, sonhar, sonhar... o maior perigo e a maior necessidade da vida. Os sonhos te causam as maiores tristezas e as maiores felicidades, ambos em graus enormes somente enquanto estes se mantêm em sua cabeça, ainda não realizados.
Este andou sendo meu problema durante todo esse tempo: realismo demais. Por isso eu olho meus textos recentes e vejo vazio, péssima qualidade; olho e vejo quão pouco ando escrevendo (eu sempre escrevi à mão, mas agora me dói o pulso escrever meia página de caderno). Percebi que a desesperança me atacou como nunca e eu acabei desistindo de mim mesmo. Quanta coisa eu perdi pelo fato de nem querer assimilar o que se passava em minha frente, receber no meu cérebro as informações, mas simplesmente as guardar no peso e cansaço de meu olhar, que fica mais triste a cada dia que eu o encaro no espelho.
Mas hoje vejo que por ser um dos mais perdidos na vida, sou o que melhor a encontro; que me perco por acreditar nela.
O maior de todos os sonhadores: Marcelo Riceputi Alcântara





"(...)
Se um dia existiu esperança em algum lugar
foi ela quem te disse que sempre vale a pena sonhar"

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Canto de caderno

O vento empurra a folha
traz a lembrança morta
puxa, empurra, entorta

O suspiro traz o alívio ilusório
em meio à dor constante
em meio ao medo de ser

O ouvido nos fecha os olhos
Que, olhando a ave, nos intimida
Ouvindo, enxergamos a vida

.

Você dança valsa em meus pensamentos
Brilhante como uma rosa que se esconde no inverno
Ingênua como uma prostituta
Pervertida como uma criança
.
Sua motocicleta ronca em meus sonhos
Livre como Shakespeare em uma casca de noz
Egoísta como uma borboleta em seu casulo
Feliz como o solitário em um deserto
.
"Teu cheiro na rosa dos ventos"

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Search for me in 1968










"(...) Only a phase, these dark cafe days"

segunda-feira, 15 de junho de 2009

(...)

O que busca, então? Se quando se encontra em seu quarto, passa os dias esperando que o medo, a aventura, o desconhecido venha à sua porta; mas quando sai de casa, toca as ruas escuras da cidade, sente o pêlo arrepiar ao novo, corre e se esconde no velho, na memória de quando tinha a coragem de presenciar o novo. Quanto mais novidades, maior o medo, maior o pudor; ele chega a um ponto onde o novo está em sua memória, mas ele não se lembra do principal: a sensação de se encontrar com ele e encará-lo, prefere visualizar o antigo sem conseguir senti-lo.
Vida medíocre, passar sua vida reproduzindo sensações de sua vida passada em um papel, todas em várias situações diferentes, por não conseguir sair de casa e se arriscar novamente. Vida medíocre, que se passa em sua cabeça, no vôo de seu pensamento, que corre pela janela de seu quarto sem carregar consigo seu corpo, vai até a lua e a toca com sua mão invisível; mas ele só pode imaginar qual é a sensação que ela causa. Corre a vista por todos os livros e lê sobre as pessoas que pararam exatamente onde ele parou, se confortando por alguns serem mais inteligentes e descreverem de forma mais interessante e vívida algo que não lhe soa como novo, mas que o faz deitar a cabeça no travesseiro e pensar que, apesar de belo, não acrescentou nada ao seu dia, ao seu ano, à sua vida.
Onde há uma luz acesa? Não há, as pessoas são felizes, elas são ignorantes e ousadas, não ligam para as conseqüências perante a elas ou às outras pessoas, simplesmente agem sem pensar. Sensação estranha essa, sentar em um bar com vários amigos e esperar como se estivesse sozinho e alguma pessoa de verdade, com um diálogo natural e próprio, fosse aparecer e mudar as coisas, e soprar nele a vida por alguns segundos. Mas isso não vai acontecer, o novo se esconde dele nas coisas mais simples que ele já não tem mais paciência para observar, no olhar ingênuo ou na palavra simples e honesta; no mero dó maior ou na letra de rimas pobres e sem métrica; na rua mais suja ou no mendigo mais bêbado. Não está na ponta do cigarro que cai em seu quarto nem no copo sujo de bebida de ontem que o lembra de sua ressaca, mas na lembrança de sua mãe que estaria chorando ao vê-lo fazer isso ou na garota que ele deixou pra trás por não saber fazê-la feliz.
Aquelas saias levantadas, aquelas bocas fartas e aqueles belos companheiros com quem se embebedava e inventava um sentido pra tudo já não vão mais satisfazê-lo; com o tempo, a pele enruga, o cérebro enjoa, o sentimento exige, o mundo pesa, o novo corre e se esconde.
A tristeza é o velho a ver o nascer do sol.

sábado, 6 de junho de 2009

(...)

O amor é belo e frágil, como uma rosa
assim como o sempre.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Devaneio

Quero teu sangue quente em minha farta boca
Na raiva, te sinto amor
Na paixão, te sinto ódio
No inverno, desejo teu calor

Quero tua flecha afiada em meu peito
Em cada sonho, uma outra qualquer
Meu cheio se preenche com teu vazio
Em teu pudor, te vejo mulher

Quero cheirar teu corpo e vomitar desejo
Em teu sexo, recitar a canção de meus lábios
Em teu tesão, sinto desprezo
Em tuas carícias, me ponho a sonhar

Quero sentir teu beijo de boca torta
Dentro do teu peito, entrar em tua
dança de menina morta
E, farto do tédio, em teu seio adormecer

Em teu corpo, vejo teu rosto
Em teu rosto, vejo teus olhos
Em teus olhos, vejo tua alma
Em tua alma, te quero matar

sábado, 30 de maio de 2009

Down em mim




Eu não sei o que meu corpo abriga
nestas noites quentes de verão
E nem me importa que mil raios partam
qualquer sentido vago de razão
.
Eu ando tão down
Eu ando tão down
Outra vez vou te cantar, vou te gritar
te rebocar do bar
.
E as paredes do meu quarto vão assistir comigo
à versão nova de uma velha história
E quando o sol vier socar minha cara
com certeza você já foi embora
.
Eu ando tão down
Eu ando tão down
Outra vez vou te esquecer, pois nestas horas
pega mal sofrer
.
Da privada eu vou dar com a minha cara
de panaca pintada no espelho
E me lembrar, sorrindo, que o banheiro
é a igreja de todos os bêbados
Eu ando tão down
Eu ando tão down
...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

De alguém para alguém

http://www.youtube.com/watch?v=FQrhA6QtWOM
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Escrevo hoje para você porque você é a única pessoa que tenho para escrever. Por mais que você não pense tanto em mim quanto eu penso em você e talvez, na verdade, nem eu pense tanto em você quanto eu acho que penso.
O quarto em que você se encontra é indiferente; seja um hotel em um lugar maravilhoso, seja em um apertado quarto de uma cidade grande, a solidão consegue te encontrar e atacar. Você sai pelas ruas e, quanto mais pessoas passam ao seu redor, mais sozinho e pequeno você se sente.
O escritor é um paradoxo - ele não gosta de escrever, se sentiria eternamente feliz se nunca mais precisasse de um papel; exalta a arte por ser uma válvula de escape.
Eu me pergunto se você enxerga o mundo como eu, se sabe como é árduo ter de ir lá fora. Às vezes me pergunto se sairia se não precisasse comer ou de dinheiro, de vencer nessa batalha insana da vida. Para que sairia do quarto? Mas acontece que a lua e o ar da madrugada trazem o mundo para o escritor e mesmo que ele se tranque em seu quarto, vai estar em contato com as coisas como são. Enquanto houver mundo, mesmo de olhos fechados, o sentirei.
Então, quando a noite ataca mais fortemente, saio na varanda, olho a chuva, procuro nas janelas luzes e pessoas que se sintam como eu, mas não encontro. Penso em que você deve estar fazendo, se está deitada a olhar a luz de um abajur e a pensar nessas coisas, se está dormindo e tendo um sonho feliz, em outro mundo.
Será que realmente tenho o direito de lhe escrever? Alguém que enxerga as coisas dessa forma deve espalhar esse vírus? Será que eu não deveria simplesmente sumir? É por isso que sempre desapareço, mas ainda não encontrei o motivo pelo qual eu sempre reapareço - talvez seja porque, acima de tudo, sou humano; mais humano do que todos.
Sempre dizemos um ao outro que um dia vamos fugir, mas será que existe um lugar para onde fugirmos? Eu fujo de tudo quando vou até você, agora aguardo que você me mostre onde fica esse porto seguro que eu desconheço.
Escrever tudo isso é engraçado porque, quando estou próximo a você, não consigo nem chegar perto de pronunciar essas palavras - talvez nem precise pronunciá-las. Às vezes prefiro simplesmente olhar você, seus olhos, ou simplesmente saber que você está por aí, a te dizer algo.
Sinto saudades, espero que você esteja bem.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Trecho de "Noites Brancas", de Dostoiévski

"(...)
- Há, se não sabe ainda, Nastenka, há em Petersburgo muitos recantos estranhos. Nesses lugares, não penetra, dir-se-ia, o sol que brilha para todos os outros habitantes de Petersburgo: o que ali penetra é um outro, um novo sol enviado expressamente para esses recantos e que ilumina tudo com uma outra luz especial. Ali, minha cara Nastenka, se leva uma vida muito diferente, que não se parece com aquela que borbulha ao nosso lado, mas que pode se passar num mundo desconhecido, e não entre nós, em nossa época séria, ultra-séria. Essa vida é uma mistura de algo puramente fantástico, furiosamente ideal e, ao mesmo tempo - ai de mim, Nastenka! - enfadonhamente prosaico e ordinário, para não dizer inverossimilmente vulgar.
-Puxa! Ah! Meu Deus, que prefácio! Que me falta ouvir ainda?
-Ouvirá, Nastenka (parece-me que nunca me fatigarei de lhe chamar Nastenka), vai ouvir que nesses recantos habitam seres estranhos: os sonhadores. O sonhador, se quisermos defini-lo em todos os pormenores, não é um homem, mas sabe? Uma espécie de criatura do gênero neutro. Ele jaz na maior parte do tempo em algum canto inacessível, como se se escondesse da luz do dia e, uma vez retirado para o seu refúgio, gruda-se ao seu canto como o caracol, ou pelo menos parece-me muito, a esse respeito, com esse curioso animal, que é ao mesmo tempo animal e casa e que se chama tartaruga. Na sua opinião, porque ama ele de tal maneira suas quatro paredes pintadas obrigatoriamente de verde, sujas, tristes, enegrecidas de fumo além do permitido? Por que esse ridículo senhor, quando o vem visitar um de seus raros conhecidos (ele faz tantas que finalmente todos os seus conhecidos desaparecem), por que esse homem o acolhe com tanto embaraço, tanta perturbação no rosto, e confusão, como se acabasse de cometer um crime, lá, entre as suas quatro paredes, como se fabricasse notas falsas ou versinhos para mandar a alguma revista com uma carta anônima, precisando que o verdadeiro poeta morreu e que seu amigo considera como um dever sagrado publicar sua obra? Por que, diga-me, Nastenka, a convrsa custa tanto a travar-se entre esses dois interlocutores? Por que nenhum riso, nenhuma palavra mais viva surge, na casa onde esse amigo subitamente entrou e está inquieto, esse que em outra circunstância ama tanto o riso e as palavras brilhantes, e os discursos sobre o belo sexo, e outros assuntos divertidos? Por que então, enfim, esse amigo, provavelmente um conhecido recente, desde a primeira visita - pois em semelhante caso não haverá segunda, e ele não voltará mais -, por que esse próprio visitante está tão perturbado, tão arrefecido, com todo o seu espírito (se é que o tem), ao ver a expressão alterada de seu anfitrião, o qual, por seu turno, está agora completamente perdido e desprovido do seu último grão de bom senso, depois de esforços gigantescos, mas vãos, para aplainar e ornar a conversa, mostra-lhe também seu hábito da sociedade, falar também do belo sexo, e, ao menos por esta submissão, aprazer ao pobre homem extraviado, caído por engano em sua casa? Por que finalmente o visitante apanha o chapéu à pressa e se vai, rápido, ao se lembrar de repente dum compromisso absolutamente inevitável, que nunca existiu, libera sofrivelmente a mão dos quentes apertos de seu hospedeiro, encarniçado em manifestar seu desgosto em recuperar o tempo perdido? Por que, ao despedir-se, o amigo tem um largo sorriso, logo que chega à rua, e promete a si mesmo voltar à casa desse original - se bem que esse original seja no fundo um excelente rapaz -, e ao mesmo tempo é incapaz de recusar à sua imaginação uma pequena fantasia: comparar, mesmo de longe, a fisionomia do interlocutor de agora durante toda a entrevista, com o aspecto desse desgraçado gatinho enxovalhado, apavorado, torturado de todas as maneiras pelas crianças que o aprisionaram traiçoeiramente, e que, confuso ao extremo, fugiu-lhes enfim para debaixo da mesa na obscuridade, e lá deve com vagar, durante uma boa hora, se arrepiar, se molhar e lavar com as duas patas, pequeno focinho maltratado, e depois disto, com um olho hostil, olhar longamente a natureza e a vida, e mesmo os sobejos do repasto dos donos que lhe guargou uma cozinheira cariodosa?
-Escute um momento - interrompeu Nastenka, que todo o tempo me ouvia com espanto, olhos e boca abertos -, escute: eu não sei absolutamente por que tudo isso aconteceu e por que você me apresenta perguntas tão cômicas. Mas o que sei bem é que todas essas aventuras foram unicamente a você que aconteceram.
-Sem dúvida nenhuma - respondi, com expressão mais séria.
-Então, se não há dúvida nenhuma, continue, poios estou ansiosa por saber como isso terminará.
-Quer saber, Nastenka, o que fez no seu canto o nosso herói, ou para dizer melhor, o que fiz eu, pois que o herói de toda a aventura sou eu, na minha própria e modesta pessoa? Quer saber por que estive assim transtornado e perdido por todo o dia, depois da visita inesperada de meu amigo? Quer saber por que estive assim transtornado e perdido por todo o dia, depois da visita inesperada de meu amigo? Quer saber por que corri, tendo enrubescido assim quando se abriu a porta de meu quarto, por que não soube receber o visitante e sucumbi tão vergonhosamente ao peso de minha própria hospitalidade?
-Está bem, sim, sim! - respondeu Nastenka. - É isso que desejo saber. Escute: você sabe contar muito bem, mas não poderia contar com menos perfeição? De outro modo, quando você fala, dir-se-ia que lê num livro.
-Nastenka - respondi com voz grave e severa, mal podendo conter o riso -, minha cara Nastenka, eu sei que conto bem, mas perdoe-me, não sei contar de outro modo. Neste momento, minha cara Nastenka, eu me assemelho ao espírito do rei Salomão que ficou mil anos numa ânfora fechada a sete chaves, e que finalmente foi libertado. Neste momento, minha cara Nastenka, em que nos reunimos de novo depois de tão longa separação, pois eu a conheço há muito tempo, Nastenka, pois desde há longo tempo eu já procurava uma certa pessoa, e isto significa que eu procurava, a você, e que estávamos destinados a nos revermos agora - neste momento abriram-se na minha cabeça milhares de válvulas, e tenho que me exprimir numa torrente de palavras, se não sufocarei. Assim, suplico-lhe não me interromper, Nastenka, mas ouvir com submissão e docilidade; senão me calarei.
-Não, não, não! Não quero! Fale! Não direi mais uma palavra.
-Então continuo. Nastenka, minha amiga, há no meu dia uma hora que eu amo extraordinariamente. É aquela em que se acabam quase todos os afazeres, funções e obrigações, e em que todo mundo se apressa a voltar para casa, para jantar ou descansar, e ao mesmo tempo, a caminho imagina ainda outros motivos de alegria, para a noite, e para o tempo que fica livre. Àquela hora, nosso herói também - pois vou me permitir Nastenka, fazer meu relato na terceira pessoa, porque na primeira eu teria muita vergonha -, assim, a essa hora, nosso herói também, que aliás não é um ocioso, segue os outros. Mas uma estranha sensação de contentamento se espalha no seu rosto pálido, como se ligeiramente fanado. Não é indiferente ao pôr-do-sol, que lentamente se extingue no céu frio de Petersburgo. Se dissesse que ele o olha, eu mentiria; não olha para ele, contempla-o sem se dar conta, como um homem fatigado ou ocupado ao mesmo tempo com outro objeto mais interessante, de maneira que por instantes apenas, quase involuntariamente, ele pode conceder tempo àquilo que o cerca. Está satisfeito, pois acabou, até o dia seguinte, com assuntos que o aborrecem, e contente como um estudante que se libertou da escola e que corre para os jogos e brincadeiras prediletos.
Olhei-o furtivamente, Nastenka: verá logo que esse sentimento de alegria, felizmente, já lhe agiu sobre os fracos nervos e sobre a imaginação excitada de forma doentia. Atenção, ele pensa em alguma coisa... Você calcula: em seu janta? Na noite de hoje? Que olha ele assim? Aquele senhor grave, que acaba de saudar tão pitorescamente uma dama que passou por ele, não há senão um instante, em sua elegante carruagem, em sua brilhante caleche? Não, Nastenka, que tem ele agora a fazer de todas essas misérias? Neste momento ele é um homem rico de sua vida interior; ficou rico de repente, e o último raio do sol poente não brilhou inutilmente para ele, e fez surgir de seu coração reaquecido todo um enxame de impressões. Agora, mal repara no caminho no qual outrora o mínimo pormenor podia chocá-lo. Agora a deusa Fantasia (se leu Jukovski, minha cara Nastenka) teceu com mão caprichosa sua trama de ouro e desenvolveu diante dele os arabescos de uma vida maravilhosa, inaudita e - quem sabe? - talvez com mão caprichosa, tenha-o transportado ao sétimo céu de cristal, deste excelente passio de granito que o leva à sua casa. Procure detê-lo agora, pergunte-lhe de repente onde está ele nesse momento, por que ruas passou; estou certo, não se lembrará de nada, onde esteve, nem onde está no momento, e, corando de despeito, inventará não importa o quê para salvar as aparências.
Eis aí por que estremeceu tão fortemente, quase gritou, e olhou à sua volta com pavor, quando uma velha muito respeitável o fez parar cortesmente no meio da calçada e lhe perguntou pelo caminho, que ela havia perdido. Os supercílios franzidos de enfado, continua sua rota, mal reparando que mais de um transeunte sorriu, ao olhá-lo, e se voltou para o ver, e que uma menina, depois de se ter afastado dele com medo, se pôs a rir muito alto, olhando bem seu largo sorriso contemplativo e os seus gestos. Mas foi isempre a mesma Fantasia que levou no seu vôo jovial não só a velha, como também os transeuntes curiosos, e a menina risonha, e os homens que ceiam nos barcos que obstruem o Fontanka (suponhamos que o nosso herói passava justamente por lá nesse momento); ela envolveu maliciosamente tudo e todos no seu véu, como moscas numa teia de aranha, e com esta nova aquisição o original entrou enfim, em sua asa, na sua amada toca, sentou-se à mesa, há muito já acabou de jantar e só se deu conta do que o cercava quando a penstiva e eternamente aflita Matrena, que o serve, retirou a toalha e lhe estendeu o ca-chimbo; voltou a si e com espanto se lembrou que acabara de jantar, sem querer ter reparado como isto acontecera.
No aposento descera a obscuridade; sua alma está vazia e triste; todo um reino de fantasias se desmoronou à sua volta, desmoronou sem deixar vestígios, sem ruído num tumulto, passou como um sonho e ele nem se lembra que teve essas ilusões. Mas uma espécie de obscura sensação, que magoa e lhe agita ligeiramente o peito, uma espécie de desejo novo, seduz, afaga e irrita sua imaginação, e suscita furtivamente todo um enxame de novos fantasmas. No quarto exíguo reina o silêncio; a solidão e a preguiça lisonjeiam a imaginação; ela se inflama rapidamente, rapidamente atinge a ebulição, como a água na cafeteira da velha Matrena que, impertubável, se ocupa, na cozinha ao lado, em preparar-lhe o café. Ei-la que já se evola em ligeiras espirais, e o livro apanhado sem objetivo, ao acaso, cai das mãos do meu sonhador, que não chegou à terceira página. Sua imaginação de novo se sobreexcita, e subitamente, outra vez, um novo universo, uma nova vida encantadora, surge-lhe aos olhos em brilhante perspectiva. Novo sonho: nova felicidade! novo trago de um veneno delicioso, refinado! Oh! De que lhe serve a nossa vida? Ao seu olhar seduzido, você e eu, Nastenka, vivemos uma vida tão preguiçosa, tão lenta, tão largada! Ao seu olhar estamos todos tão descontentes com a nossa sorte, tão fatigados de nossa existência! E em verdade, considere, com efeito, como, à primeira vista, tudo entre nós é frio, amargo, como que hostil... "Os pobres diabos!" pensa o meu sonhador. Não admira nada que ele assim pense! Olhe os fantasmas feéricos que se formam diante dele, feiticeiros, caprichosos, largamente e sem limites, em um animado quadro fantástico, em que se encontra no primeiro plano, naturalmente, primeira figura, o nosso próprio sonhador em sua preciosa pessoa. Olhe: que aventuras variadas, que enxame infinito de sonhos exaltados! Você perguntará, talvez, com que sonha ele? Para que perguntar? Mas em tudo... no papel do poeta, primeiro desconhecido, depois glorificado; em sua amizade com Hoffmann; na matança de são Bartolomeu; em Diana Movbray; em Effie Deans; nos prelados em concílio, e em Huss diante deles; na revolta dos mortos em "Roberto, o Diabo" (lembra-se da música? Cheira a cemitério!); em Mina e Brinda; na batalha de Berezina; na leitura de um poema em casa da condessa V... a D... a; em Danton; em Cleópatra e i suoi amanti, na casinha de Kolomna; num cantinho para ele e, ao seu lado, uma criatura amada que o escuta, numa noite de inverno, sua pequena boca e os olhinhos bem abertos - como você me escuta neste momento, ó meu pequeno anjo!...
Não, Nastenka, que lhe importa, a ele, preguiçooso, voluptuoso, esta vida a que aspiramos de tal modo você e eu? Pensa que é uma pobre vida, miserável, sem adivinhar que, para ele também, talvez, um dia soará a hora lamentável em que soluçante e desesperada, sobre o seio, sem ouvir a tempestade desencadeada sob um céu lúgubre, sem ouvir o vento que arrancava e levava as lágrimas de seus cílios negros? É possível que tudo isto não tenha sido senão sonho, e este jardim melancólico, abandonado e selvagem, com suas alamedas forradas de musgo, solitário, intratável, onde tão freqüentemente passeavam os dois, esperavam, desespeeravam, amavam, amavam-se um ao outro, tanto tempo, tão longo tempo e tão ternamente! E essa velha morada ancestral, bizarra, onde ela viveu tantos anos solitária e triste com seu velho marido, rabugento, perpetuamente calado e bilioso, que os atemorizava, a eles, tímidos como crianças, que melancólicos e apavorados se secondiam um do outro seu amor? Como se atormentavam, como temiam, como era puro e inocente o seu amor e quanto (a coisa é muito natural, Nastenka) as pessoas eram malvadas! E, meu Deus, não foi ela que reencontrou em seguida, longe das fronteiras da sua terra natal, sob um céu estrangeiro, meridional, causticante, na maravilhosa Cidade Eterna, no tumulto de um baile, ao ruído da música, em um palazzo (obrigatoriamente um palazzo) mergulhado em um mar de fogos, sobre esse balcão enguirlandado de mirtos e de rsas, onde, tendo-a reconhecido, ela tirou tão apressadamente sua máscara e, sussurrando: "Eu sou livre", trêmula, soluçante, atirou-se em seus braços; então com um grito de entusiasmo, estreitados um contra o outro, esqueceram, num minuto, desgosto e separação e todos os tormentos da casa e o marido soturno e o sombrio jardim na pátria longínqua e o banco no qual, depois de um último beijo apaixonado, ela se tinha desprendido do seu amplexo, petrificada num sofrimento sem esperança... Oh! confesse, minha cara Nastenka, pode-se fugir, perturbar-se e corar como um colegial que acaba de introduzir no bolso a maçã furtada no pomar vizinho, quando um rapaz sadio e alto, alegre companheiro e belo conversador, seu conhecido, sem ser convidado abre a porta e grita como se fosse nada: "Sou eu, meu caro, chego neste momento de Pavlovsk!" Meu Deus, o velho conde está morto, eis finalmente a felicidade, uma indizível felicidade, e logo agora chega-lhe gente de Pavlovsk.
(...)"

domingo, 26 de abril de 2009

Fantasiado

A brasa do cigarro do músico não é a mesma do advogado ou do empresário; ela o busca no fundo de sua alma e o alivia de si mesmo o colocando mais próximo da morte.
O músico está sempre farto de si mesmo; cada pessoa vê o mundo com as cores que lhe convém - o músico o vê em preto e branco. Ele está nos falsetes de Thom Yorke, na cama solitária de Janis Joplin, na mescalina de Allen Ginsberg e na inquietação de Bob Dylan.
O músico não é naturalmente triste, mas a natureza quer que ele seja e o força a ser; ele escreve sobre o amor porque sabe que é incapaz de possuir o amor de uma mulher, escreve sobre a alegria porque a quer em sua vida e sabe que nunca a terá, escreve sobre a tristeza porque a vê o tempo todo e, finalmente, escreve sobre o medo porque é curioso - ele não tem nada a perder, não precisa sentir medo.
Quando se é feliz, a infelicidade é triste; quando se é infeliz, a felicidade se torna triste - não há saída. Ler e escrever são os piores hábitos viciosos; somados são o primeiro passo para a desesperança, sendo o segundo quando se vê esta na vida real.
Não há esperança em lugar nenhum, mas é bom que você viva acreditando nela.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Videotape

Hoje eu não acordei; o sol não tinha direito de subir ao céu e os carros movimentam as ruas porque são tolos. Talvez eu tenha acordado demais e por isso esteja aqui, no meu quarto, de pijama, com tudo fechado, escrevendo no escuro. É verdade que hoje não quero ver a luz, nao quero me ver ao reflexo do espelho, meus brincos, pulseiras, roupas, quero retirar tudo de mim; cabelo, sobrancelhas, quero raspar cada pêlo de meu corpo - retirar detalhe por detalhe que construí em minha personalidade até voltar a ser ninguém, voltar ao zero. Rasgar e queimar cada pequena lembrança desse caderno, desde um pedaço de pano de chão até uma flor tão destruída pelo tempo que já se tornou irreconhecível como uma. Fazer com que cada foto onde eu apareça no tempo simplesmente desapareça junto com os momentos nos quais elas foram tiradas. Junto com os momentos, que cada pessoa que esteve comigo me esqueça, me olhe e pense nunca ter me visto.
Quando tudo o que me liga ao mundo finalmente se apagar, quero que esse quarto se tranque para sempre e se mova para um lugar onde não exista nada além de meus CDs, livros, papés, lápis e o silênico da alma singular.
Que meu violão não se esqueça de mim, que eu não me esqueça dele e que eu não me esqueça de mim mesmo.

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http://www.youtube.com/watch?v=-kCKob1YKOU

terça-feira, 14 de abril de 2009

Poema interior

Quanto menos fede o corpo
mais fede a alma
.
A maquiagem não esconde o ser
O mar alcança até as pedras mais claras
E é nos pensamentos mais profundos
que encontramos os sentimentos mais imundos
.
Quanto mais pesa o copo
menos encara a cara
.
Porque é nos olhos mais bonitos
que encontramos os maiores desesperos reprimidos
No álcool do bar, o alívio imediato
No escuro do quarto, o sofrimento intacto
.
Quanto mais farto o troco
mais se perde a calma
.
Quando se tudo tem
tudo tem importância
Mas de mochila vazia
o silêncio preenche a esperança
.
Quanto menos a pele cora
menos a mente aflora
.
Barreira, cegueira, muro mudo
aço, embaraço, pensamento a fora
Acaso, descaso, embaralha tudo
fecha essa guarda, vai embora

terça-feira, 24 de março de 2009

Fim da viagem

Depois de quatro anos, o homem caminhava novamente só pela praia. Sentia, em seu rosto, o suor escorrer-lhe violentamente e, em seus músculos, a fadiga contrair-lhe dolorosamente - e isso era bom; era como se sua mente se dividisse entre a atenção ao exterior, à sua vida pessoal e ao seu esforço físico e, quanto maior fosse esse esforço, menos seu pensamento se voltaria às áreas restantes.
Enquanto andava, de cabeça baixa, notou que algo mudara totalmente de quatro anos para cá: antes andava sempre de cabeça erguida, observando as pessoas e procurando em seus olhos seus sofrimentos, indignações e, por que não, alegrias. Agora, ao erguer a cabeça, o homem olhava a todos com indiferença.
Nunca havia sido um comunista, pixado muros, participado de protestos ou lutado abertamente contra o sistema, mas ao mesmo tempo, em sua vida, nunca havia conhecido alguém tão subversivo quanto ele próprio.
O fato era que a mulher que amava havia o abandonado neste dia e ele se sentia como se estivesse reconhecendo o que restara de seu mundo. Se antes olhava ao seu redor e ansiava justiça, mudança, agora olha ao seu redor e nada sente; é como se antes de a conhecer ele amasse todos e se preocupasse igualmente com todos e, ao conhecê-la, tivesse reunido todo esse amor em uma única pessoa, a qual jogou tudo no lixo; nada mais restava para ele.
Percebeu, então, que o fato de ela o ter abandonado era indiferente; o amor é optar por uma vida de alguns anos entre esta e a eternidade.
Sorriu, parando ao lado de um lixo e retirando uma foto do bolso, onde ele e sua ex-mulher sorriam para a câmera. Porém, ao olhar para o lixo, ficou novamente melancólico, guardando a foto em seu bolso outra vez.
Há, na vida, caminhos dos quais não se pode voltar.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sinais de fumaça

Caminhando pela cidade eu vi sinais de fumaça
que, entre outras coisas, me trazem mensagens de casa.
No meio das cinzas que se formam entre o primeiro e o próximo trago,
sinais de fumaça irradiam de meu próprio cigarro.
.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
.
Na dicotomia entre mentira e sinceridade,
a opção mais sincera é que às vezes dispensa a verdade.
Mas como é um dia especial, precisamos comemorar;
vou brindar-lhes com a verdade, na verdade, nunca tive saudades de lá.
.
Mas eu preciso pensar que um dia eu tive um lar.
Mas eu preciso pensar que um dia eu tive um lar.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
E me fazem lembrar que um dia eu tive um lar.
Mas eu preciso pensar que um dia eu tive um lar.
.
Mas eram só sinais de fumaça.
Mas eram só sinais de fumaça.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Retrato

Misantropia e solidão.
Sou aquele que não tem passado,
o que está atrás é apenas uma página borrada.
Sou a desesperança esperançosa de Winston.
Sou a solidão de Raskolnikóf.
Sou a misantropia introspectiva de Jack Torrance.
Sou a falta de sentido da vida Meursault.
Sou a boca que te ama e há de te maltratar de Augusto dos Anjos.
Sou o delírio que te há de matar de Álvares de Azevedo.
Sou o vento que tudo traz de Arnaldo Antunes.
Não disperdiço papéis com negócios e afazeres,
o mundo é poesia, o mundo é tristeza.
Meu papel descreve o que já esteve na cabeça de todos
mas ninguém ousou escrever.
.
Café, estrada, mapas, acaso, papéis, solidão.
Sou aquele que ninguém vê, mas um dia todos hão de notar.
Porque é no nada que às vezes encontramos tudo.
Sou a dualidade paradoxal da personalidade humana
fichada, descrita, arquivada.
Sou a cortina que isola o sol.
Sou os olhos que observam a lua.
Sou as lágrimas que escorrem do desespero.
Sou a solidão das capitais.
Não fui, sou, nunca serei.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Por trás dos olhos firmes..

"E lá vai Deus
sem sequer saber de nós
saibamos pois
estamos sós.."
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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Companhia na solidão do espelho


"(...)
Cai a noite doce escuridão,
de madura vai ao chão.
Na hora da canção o que eles dizem, baby
eu não soube o que dizer.
Ah, vida real; tchau"

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Vida Meursault


Vida Meursault
Aqui vamos nós de novo
caminhando em meio à multidão.
Ao nosso redor, as vozes de um povo
soam de um único coração.
.
Não vais lembrar
de quando era possível e preciso lutar.
Não vais lembrar
que o desafio continua no ar.
.
Aqui vamos nós de novo
e a esperança a nos deixar.
Os riscos na maçaneta da porta
de um homem que quer escapar
de um quarto de tristezas
e a vida a lhe pesar.
Carrega nos ombros o peso do mundo
e um pesadelo no olhar.
.
Ele vai esquecer
que há ainda pelos cantos um motivo pra viver.
Ele vai esquecer
que para haver o impossível, basta crer.
.
Ele vai esquecer
que há ainda pelos cantos um motivo pra viver.
Ele vai esquecer
que para tocar o infinito, basta crer

(...)



Lápis, silêncio, papel, solidão.
Não quero ninguém por perto, cansei de espelhos que refletem o que não sou, mesmo que eu me entregue a seu julgamento.
Acaso, destino, descaso.
Na escolha entre conviver e ficar só, opto por não escolher.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

(In)felicidade

http://www.youtube.com/watch?v=IyCRJmerW1Q

"A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe."
Charles Chaplin

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Trecho de "O Estrangeiro", de Albert Camus

"(...)
E, com as horas de sono, as recordações, a leitura de minha ocorrência e alternância da luz e da sombra, o tempo passou. Tinha lido que na prisão se acaba perdendo a noção do tempo. Mas, para mim, isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros. E nisso perdiam o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam um sentido para mim.
Quando, um dia, o guarda me disse que eu estava lá há cinco meses, acreditei, mas não compreendi. Para mim, era sempre o mesmo dia, que se desenrolava na minha cela, e era sempre a mesma tarefa que eu perseguia sem cessar. Nesse dia, depois de o guarda ter saído, olhei-me na minha bacia de ferro. Pareceu-me que minha imagem ficava séria, mesmo quando tentava sorrir para ela. Agitei-a diante de mim. Sorri, e ela conservou o mesmo ar severo e triste. O dia acabava e era a hora de que não quero falar, a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão, num cortejo de silêncio. Aproximei-me da janela e, à última luz, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria, e que há de espantoso nisso, se nesse instante eu também estava sério. Mas ao mesmo tempo, e pela primeira vez nos últimos meses, ouvi distintamente o som da minha voz. Reconhecia-a como a que ressoava há longos dias aos meus ouvidos, e compreendi que, durante este tempo, falara sozinho. Lembrei-me, então, do que dizia a enfermeira no enterro de mamãe. Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões."

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"Somos quase livres, isso é pior do que a prisão"
Humberto Gessinger

domingo, 8 de fevereiro de 2009

..


A distância é insignificante para um poeta, afinal, ele não precisa ir à lua para flutuar;
Basta observá-la.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Que as mães sempre vivam

Sou um péssimo conselheiro, talvez o pior que exista; na verdade, uma pessoa nunca deveria fazer com sua vida o que faço com a minha; nasci assim, imutável, cheio de certezas - as mais incertas que se possa imaginar. Queria conseguir dizer para as pessoas o que sinto e penso e não guardar e empregar isso em formas disfarçadas de textos ou músicas; simplesmente jogar o fardo para o alto instantaneamente. Mas sinto demais, vejo demais, ouço demais e temo demais pôr para fora tudo o que sinto. Entalado, cheio, estufado, uma explosão que está sempre adiada e da qual tenho vontade de me livrar, mas não gritando, contando, me abrindo; simplesmente sair de mim, ir para um lugar onde eu simplesmente já não sinta mais nada.
Nós nascemos com a única certeza de que morreremos; por mais que a vida seja bela, ela leva à morte, como qualquer sentimento. Não há sentimento que seja eternamente bom - há simplesmente aqueles que se mantêm eternamente vivos - qualquer destes se converterão em uma dor, uma cicatriz. O amor, não é que não exista, mas implica, custa, em um grande sofrimento - que é necessário; sem ele, o amor não existiria.
O fato é que existe e o sofrimento é real, estará presente em toda sua vida; vivemos fadados a alegrias curtas e sofrimentos longa-metragens.
Eu não me expresso bem, mas não costumo mentir, costumo me calar - omitir. Mas há uma situação na qual alguém nunca conseguiu encontrar sinceridade e que a hipocrisia está sempre ligada - inclusive em mim.
Diversas vezes recebi ligações, já de madrugada, com pessoas ameaçando se matar - menti em todas as vezes. Confesso que talvez tenham sido meus piores conselhos. Não se encontra motivos para uma pessoa continuar viva; se ela não o possui, ninguém encontrará. Então o que dizer? Se você a ama, por ela ser importante para você, você a aconselha a ficar viva mesmo tendo consciência de que a vida dela é uma merda e que a morte seria o melhor para ela - ou todos nós; se você não dá a mínima para a pessoa, ainda assim a aconselhará a não fazê-lo por isso ser disseminado como o certo.
Quando recebia esses telefonemas, só conseguia pensar nas mães dessas pessoas e suas reações com relação ao suicídio - eu menti, por elas, para dar a elas a única razão que tenho para evitá-lo, disseminar meu medo para as pessoas assim como a mãe que mima demais o filho e passa a ele os seus.
A vida é um teste e admiro as pessoas que têm a coragem que não tenho, a coragem de ir até o fim.
Que suas mães vivam para sempre.

domingo, 18 de janeiro de 2009

"É preciso estar-se, sempre, bêbado.
Tudo está lá, eis a única questão.
Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-
os para a terra,
é preciso embebedar-vos sem trégua.
Mas de quê?
De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa.
Mas embebedai-vos.
.
E se, às vezes, sobre os degraus de um palácio,
sobre a grama verde de uma vala,
na solidão morna de vosso quarto,
vós vos acordardes,
a embriaguês já diminuída ou desaparecida,
perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo o que passa, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o
que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são;
e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão:
"É hora de embebedar-vos! Para não serdes escravos martirizados
do Tempo, embebedai-vos, embebedai-vos sem parar!
De vinho, de poesia ou de virtude: a escolha é vossa."
Charles Baudelaire
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"Juro nunca mais beber - e fez o sinal-da-cruz com os indicadores. Acrescentou: - Álcool.
O mais, ele achou que podia beber. Bebia paisagens, músicas de Tom Jobim, versos de Mário Quintana. Tomou um pileque de Segall. Nos fins de semana, embebedava-se de Índia Reclinada, de Celso Antônio.
- Curou-se 100% do vício - comentavam os amigos.
Só ele sabia que andava mais bêbado que um gambá. Morreu de etilismo abstrato, no meio de uma carraspana de pôr-de-sol no Leblon, e seu féretro ostentava inúmeras coroas de ex-alcoólatras anônimos"
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Abstrações de um mesmo tema

"Liberdade" - era o que dizia o adesivo daquele monza preto em uma parada de estrada em uma das paradas da vida. Voltei para Juiz de Fora em minhas férias como uma loucura e, sem entender bem e fazendo o errado, novamente a deixei, repentinamente. Acontece que nessa parada, tudo fez sentido; de uma forma louca, aquele carro estava ali, esperando por mim, naquele segundo - e eu precisava estar ali.
Liberdade é um conceito que precisa de revisão. Varia de pessoa para pessoa, mas de certa forma, segue uma constânciaa. Uma pessoa que mora em uma pequena cidade, isolada do mundo, que possa se locomover para onde quiser nessa cidade, talvez sinta-se livre - no nosso conceito, não é, mas ela sente a liberdade que nós buscamos e, nesse caso, o que pensamos não importa; ela é livre. A evolução, globalização, tornam a liberdade algo mais amplo e, para a maioria das pessoas, distante. Se essa pessoa nessa pequena cidade descobrisse uma praia maravilhosa do outro lado do mundo, sendo considerado provável que ela não tivesse condições de chegar até ela, talvez não se considerasse mais livre. E quando isso acontece, precisamos ter um carro, comprar passagens aéreas; depois termos o carro dos nossos sonhos, uma passagem para um lugar ainda mais distante - a imagem de liberdade que criamos em nossa cabeça muda. Os fatores aos quais somnos expostos hoje em dia não destroem a liberdade, mas a cada dia que passa, a tornam mais maravilhosa e inalcançável. O mesmo sentimento de milhares de anos atrás, para ser atingido, começa a formar cada vez mais e maiores exigências até chegar o dia em que ele será tão maravilhoso que nunca será alcançado.
Mas toda essa digressão pura e simplesmente - repleta de perguntas, mas sem nenhuma resposta - me leva a uma questão ainda maior.
Chutando alto, talvez pela pouca divulgação, talvez pelos temas abordados ou talvez pela falta de qualidade, imagino que algo em torno de dez pessoas lêem esse blog com freqüência; dessas dez, sete são pessoas que considero inteligentes; por um momento, me pergunto o que essas sete continuam fazendo aqui.
Nós não conseguimos encontrar sequer respostas pequenas, normalmente nos vangloriamos ao encontrar perguntas pequenas, mas estamos sempre procurando grandes respostas com esperança e convicção de que as encontraremos. Pessoas que encontram grandes perguntas normalmente são consagradas como gênios na história, poucas são as que encontraram grandes respostas (se é que há alguma; no momento, não consigo citar); na verdade, grandes respostas se convetem em perguntas ainda maiores, tornando o mundo das idéias uma grande avalanche.
Acho que eu sou puramente um questionador, levanto perguntas e raramente acredito na certeza, mas a busco avidamente. Por exemplo, um dos dias mais tristes de minha vida foi quando acordei e percebi que já não conseguia mais acreditar em Deus; mas enquanto muitos simplesmente acreditam porque é algo que está em nossas raízes culturais (e mesmo porquie a natureza humana pede a crença), eu busco sinais e informações que não precisam ser necessariamente concretos, mas que me façam sentir que sua existência seja concreta (agora mesmo o alcorão viaja comigo em minha mochila).
Quando eu afirmo que o artista tem de ser infeliz para que as outras pessoas sejam felizes, estou presumindo que, através do sofrimento, o artista vá encontrar respostas. Eu sou infeliz - nunca encontrei nenhuma. Minha afirmação se baseia na crença de que um dia, em meio a tantas perguntas que lancei, consiga encontrar ao menos uma resposta.
Metade do café se vai, metade da viagem se vai, várias abstrações, nada concreto.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Ego revolucionário - as revoluções "porção única"

Não posso afirmar que Russeau estava certo ou errado com relação à sociedade, mas tenho consciência de que esta corrompe o homem mais e mais a cada dia que passa, talvez por cada vez mais oferecer a este um ambiente ideal para que ele se revele, se deixe levar por seus instintos mais internos.
Essa gradação afasta cada vez mais o homem de seu lado idealista e o aproxima de seu ego; às vezes eu olho ao meu redor e me sinto sozinho. Não parece haver mais revolucionários idealistas como os vistos em toda a história, como os vistos no século XX, o que eu vejo são pessoas que simplesmente querem ser vistas como aquelas do passado, admiradas por serem considerados revolucionárias, mas visando seu ego e não seus ideais - se é que possuem algum realmente.
É o que vemos a cada dia que passa; não há espontânea vontade, é preciso que um policial mate um adolescente e isto apareça na televisão para as pessoas se revoltarem; é preciso que setecentos palestinos morram e bombas explodam na Faixa de Gaza para que as pessoas se revoltem - é preciso que até os jornais se escandalizem para que as pessoas se assustem um pouco.
É aí que surgem os heróis porção única, que nunca haviam sequer ouvido falar no assunto, mas que lêem desesperadamente sobre ele, falam sem parar coisas que às vezes nem sequer sabem se estão certas ou têm algum embasamento para afirmá-las; repassam belos e-mails, muito bem escritos, com opiniões alheias, sem sequer terem certeza do que estão repassando. Informação, idealismo? Zero. Ego? Mil - olha como ele fala bonito e tem a barba grande.
A revolução não está morta, mas dorme na ignorância desses jovens "politizados".

sábado, 10 de janeiro de 2009

Rock n' roll nunca será passado

Estou ficando velho. Triste e precoce, mas é a realidade. Impressionante o que um CD que há muito você não ouvia pode resgatar e trazer para você; é o que o "Panela do Diabo" - Raul Seixas - está fazendo comigo agora.
Me lembro de minhas duas primeiras bandas, meus tempos "Raul Seixas"; como eu mudei, como eu me sinto diferente.
Envelheci, mas de uma forma engraçada, muito do que foi ainda é - o rock ainda corre em minhas veias; amadureci, mas ainda acredito em meus sonhos. Olho para pessoas que passaram por minha vida musical de maneiras diversas em minha adolescência e sinto que neles o sonho de uma banda, mudança, ficou para trás, apagou-se perante as obrigações e preocupações da maturidade; esses sonhos não adormecem em meu coração; idéias amplamente diferentes, mas os sonhos se mantêm e se mantêm também a garra e a vontade de realizá-los.
Quando o rock n' roll se torna passado, descobre-se que ele nunca foi presente; uma descoberta que nunca experimentarei.

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"Carpinteiro do universo inteiro eu sou.
.
Não sei por que nasci
pra querer ajudar a querer consertar
o que não pode ser.
Não sei, pois nasci para isso, aquilo
e o enguiço de tanto querer.
.
Carpinteiro do universo inteiro eu sou.
.
Estou sempre
pensando em aparar os cabelos de alguém
e sempre tentando mudar a direção do trem.
À noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
pra que você não tropece na escada quando chegar.
.
Carpinteiro do universo inteiro eu sou.
.
O meu egoísmo é tão egoísta
que o auge do meu egoísmo é querer ajudar.
.
Mas não sei por que nasci
pra querer ajudar a querer consertar
o que não pode ser.
Não sei, pois nasci para isso, aquilo
e o enguiço de tanto querer.
.
Carpinteiro do universo inteiro eu sou.
Carpinteiro do universo inteiro eu sou, assim;
no final, carpinteiro de mim."

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

(...)

"O homem andava apressado, investigando tudo ao seu redor, como se houvesse perdido algo e o estivesse procurando, farejando como um lobo, caçando pela noite. O fato é que havia se segurado mais do que podia e precisava se soltar naquele instante, deixar que seus instintos fizessem seu trabalho, agir como suas raízes ordenavam – era um animal, já não podia negar, não importava o quanto fosse inteligente, o quanto assimilasse, continuaria sempre sendo um animal.
Um barulho o fez parar instantaneamente. Por alguns segundos o homem fechou os olhos e sentiu sua respiração ecoar – estava mais bela do que nunca, soava como música; todos os pequenos sons da rua – como o gotejar de calhas de pequenas casas de baixo porte ou o vento movimentando papéis no chão – formavam uma simples e bela sinfonia, uma música em homenagem a alguém que por muito tempo esteve morto e agora finalmente voltara à vida.
Colocou a mão direita no interior de seu paletó e lá estava ela – sempre estivera lá – adormecida, esperando pelo momento de finalmente voltar a ser usada. Duvidamos de alguns sentimentos que são certos, mas simplesmente acreditamos em alguns que são duvidosos; o fato é que soava certo tocá-la naquele instante, o toque provocou-lhe a sensação de que sua mão estava no lugar certo, na hora certa; era hora de usá-la.
Abriu os olhos e sorriu; o garoto – algo em torno de dezenove anos – havia passado por ele fingindo indiferença, mas nem era preciso olhar em seus olhos para perceber a presença do medo, da desconfiança; talvez o garoto tentasse não admiti-la sequer a si mesmo e isso fosse o que a tornava tão gritante. O homem dobrou rapidamente uma esquina; precisava pegá-lo de frente, olhar em sua face enquanto ele sentia o que tinha por fazer.
Esperou os passos ficarem mais fortes e dobrou a esquina seguinte, parando bem em frente ao garoto – tão próximos que quase trombaram. Por um segundo que, se não houvesse sido criado um padrão para o tempo, poderia se dizer horas ou dias, eles se encararam, olho a olho – muito próximos – e, nesse segundo, um pôde entender perfeitamente o estado de espírito e as intenções do outro; apenas um deles sorria.
Com o braço esquerdo, o homem retirou um pano úmido do paletó e o pressionou contra o rosto do garoto, que se debateu em vão – não era forte o suficiente – até desmaiar.
A partir daí o homem se sentia cada vez menos consciente, como se seu próprio corpo fizesse seu trabalho agora; ficava parado, apenas observando seus braços agirem sozinhos.
Retirou de seu paletó uma bela faca que parecia brilhar, entender e responder ao luar. Virou o garoto de costas e, cuidadosamente, rasgou sua camiseta, a afastando e deixando suas costas a vista. De olhos fechados, enquanto movimentava a boca sem produzir sons, o homem, com a faca, desenhou habilmente uma partitura já preenchida por notas nas costas do garoto.
-Permita que esse cadáver utilize seu corpo para produzir vida – ele disse.
Repentinamente o homem se levantou, caindo para trás como se houvesse levado um susto; olhou para o garoto com indiferença enquanto se limpava (ou tentava se limpar) com um novo pano, ajeitou seu paletó e saiu andando novamente, tentando se lembrar onde havia estacionado seu carro."

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Morte

Libertem-se desses corpos, seus ignorantes! Deus não existe; se existisse, estaria rindo da inocência de vocês. Libertem-se desses corpos, seus ignorantes! Vocês não são mais que ninguém e nem sequer são algo, são simplesmente algo feito a imagem e semelhança do corpo de Deus, algo que não existe! Vocês nem sequer existem! Se matem, todos! Todos são inúteis, todos são pedaços em decomposição andando pelo planeta, são meros seres que se sentem vazios e tentam justificar o vazio acreditando que exista algo. Não existe nada! Se matem, todos, todas as carnes em decomposição nesse instante nesse planeta. Se joguem pelas janelas, quebrem o que houver ao seu lado, se matem, matem ao outro. Nada existe. A morte é a única existência concreta, é a única esperança pra quem procura existir: se você quer existir, a única forma é abandonando o corpo putrefato no qual você habita. Não tema mais a morte, ela é o único caminho, a única esperança. Se jogue dessa janela, rápido, se mate, é a única forma de talvez se tornar algo vivo.

domingo, 4 de janeiro de 2009

"Quando o Bourbon é bom, toda noite é noite de luar"

"(...)
Já freqüentei grandes festas
nos endereços mais quentes.
Tomei champagne e cicuta
com comentários inteligentes.
Mais tristes que o de uma puta
no Barbarella, às quinze pras sete
(...)"

Bom gosto, inteligência, sabedoria, merda; são todos sinônimos, inutilidades. Odeio pessoas inteligentes, finalmente percebi; tão vazias e retóricas, sempre procurando algo além para saber e poder preencher o espaço que sobra em suas falas por não terem nada a dizer sobre si mesmas. Não é necessário acreditar que o silêncio diga mais que as palavras, mas ao menos perceber que ele às vezes valhe a pena pelo valor que as palavras possuem, por mais que soem bonitas e alimentem seu ego perante pessoas que, além de burras, também são vazias.
Fale feio, escreva errado, não saiba os autores de livros consagrados, fodam-se os grandes cineastas, não decore o nome daquele bom ator, esqueça tudo que não tenha prática (não necessariamente mundana) - livre sua mente da estupidez desses nojentos inteligentes.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Mais um ano

É, a gente sobrevive mais um ano se estressando, esfolando, até chegar ao tão cobiçado fim de ano; festas, alegria, amigos, foguetes, champagne, felicidade..
Ai ai ai; essa merda de vida é realmente uma grande utopia.

Antes que me esqueça, feliz ano novo.

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"Eu roubei esses versos como quem rouba pão
com a mão urgente, com urgência no coração.
Eu contei estórias, inventei vitórias
como quem tem preguiça
como quem faz justiça com as próprias mãos.
.
Eu roubei quase tudo que eu tenho só pra chamar tua atenção
e quando cheguei em casa, vi que lá morava um ladrão.
Eu perdi quase tudo que eu tinha
a paz, a paciência
a urgência que me levava pela mão.
.
Uma noite interminável numa cela escura.
Sentido!
senhores..
censores sem poder de censura.
O ruído dos motores em uma sala de torturas
Senhoras e senhores
Censores sem talento censorial
.
Nunca mais saiu da minha boca o gosto amargo da palavra traição.
Nunca mais saiu da minha boca nenhum elogia a nenhuma paixão.
Uma noite mal dormida, um porre sem maus lençóis.
Sem sono.
Sem censura.
100% de nada não é nada
é muito pouco.
.
Sem sono.
Sem censura.
100% de nada não é nada
é muito pouco."

sábado, 13 de dezembro de 2008

Albergue espanhol

Eu não sou brasileiro; não sou boliviano, chileno, argentino, estado-unidense; não sou francês, inglês ou espanhol; não sou sírio, búlgaro, chinês, russo, angolano ou congolense. Cada pessoa é uma pessoa e cada pessoa é tudo. Sou Marcelo, brasileiro, argentino, búlgaro, sírio, francês, angolano.
Cada pessoa é uma, mas cada pessoa deve experimentar e sentir as dores e os prazeres de todos os povos. Tentar focar e limitar-se a uma cultural local é uma tentativa intelectual inútil, a cultura pessoal prevalece, a cultura local é a cultura que avassala todo o mundo e a cultura que ataca cada pessoa individualmente; abandone o aprisionamento local e a indução à prisão de uma cultura estrangeira; todas as culturas são uma só, os costumes de uma só raça, os hábitos de um só coração que se divide em diversas batidas ao redor do mundo.
Hoje caminho em meu país, em meu estado, minha cidade, e me vejo um estrangeiro em meio a diversos estrangeiros, um povo dividido em singularidades, mas um povo com limitações artificiais que não os permitem notar que somos diferentes, mas somos iguais. Carregamos dores, felicidades, admirações, medos, todos diferentes, mas indiferentemente os carregamos.
Caminhamos e caminharemos sempre dotados de preconceitos e muros de vidro ao nosso redor, nos livrando de encarar o fato de que estamos todos em um albergue espanhol.
Visto a camisa do mundo e paradoxalmente brindo àquele que se reconhece: um estrangeiro em meio a estrangeiros.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Conselho de um poeta

Minha insônia hoje é uma coisa meio louca, vem da voz de Robert Smith, não muito de lembranças do que já passou, mas de uma expectativa e animação do que virá. De coisas boas que podem vir a acontecer em lugares que tenho um carinho especial.
Essa semana, esse mês, eu não sei dizer direito o quanto dormi e o quanto fiquei acordado. Quando deito, me perco em meus pensamentos e, às vezes, durmo, mas sonho comigo mesmo deitado em minha cama, ainda sem dormir, pensando e quando acordo, já de madrugada, não sei dizer se dormi a noite toda ou passei a noite toda em branco, acordado, perdido em pensamentos.
Hoje escrevo, mas por não ter outra opção, queria ter alguém aqui agora simplesmente para jogar conversa fora, conversar sobre coisas sadias, me perder em palavras e simplesmente esquecer um pouco as coisas lá fora. Mas diferente do que costuma acontecer, não estou triste, deprimido ou pessimista, estou puramente introspectivo e pessoal, simplesmente pensativo.
Por mais que digamos que não nos apegamos a objetos, lugares, a velha história de simplesmente estarmos com quem gostamos em qualquer lugar, que não ligamos para roupas etc; tudo isso não é verdade. Todo mundo tem aquela jaqueta já velha e gasta que nunca vai deixar de usar, todo mundo sente falta daquele parquinho que ia brincar quando criança, da primeira escola, do seu quarto, sua casa, aquele lugar que você ia tanto e que nunca tinha nada pra fazer, sempre te deixava entediado e te levava a pensar que você precisa encontrar um novo lugar pra freqüentar.
Há um ano não moro mais em Varginha e esse mês fará seis meses que não visito minha cidade natal. Minha vontade e ansiedade em voltar lá não se dá tanto pelas pessoas (apesar de sentir muitas saudades de algumas), mas sim em rever coisas, lugares, ver como eles devem ter mudado (minha casa mesmo está totalmente diferente), sentar nesses lugares e simplesmente deixar a cabeça trabalhar nas lembranças, olhar como eles estão agora, sentir dentro de mim um pouco da vida que já passou.
Ah, Varginha, acho que se uma pessoa nasce no inferno, sente saudades ao sair dele. Não importa aonde eu vá ou onde eu esteja, sempre sentirei imensas saudades dessa cidade que me proporcionou tantas alegrias e inúmeras tristezas, inesquecível.
Apesar de achar que alguém não pode se autoconhecer sozinho, acho que deve haver uma fase intermediária onde a pessoa fica sozinha e, sem muitas coisas acontecendo em sua vida, sobra tempo para parar e olhar para o passado, analisá-lo e, através de tudo o que viveu com outras pessoas, se entender melhor. Minha fase foi esse ano, sem dúvidas, mas sem dúvidas também está na hora de essa fase passar, sem dúvidas já estou preparado para voltar à vida, e me alegra muito finalmente ouvir isso de mim mesmo; espero que as coisas dêem certo para mim.
E quanto a você, ouça um conselho de um humilde poeta e escritor: só há vida fora dos livros.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

S.O.S. Santa Catarina

Antes de qualquer coisa, queria deixar o mais claro possível que esse texto tem a intenção de levar a pensar de forma sadia, estou amplamente comovido com a situação calamitosa de Santa Catarina, assim como estaria se essa situação estivesse ocorrendo em qualquer parte do Brasil.
Em partes, é de se compreender o porquê do separatismo sulista; o sul não tem ampla participação na colonização do país, tendo uma integração a partir do Tratado de Madri em 1750, com a aderência forçada do Sete Povos da Missões, e em 1777, com o Tratado de Idelfonso que adquire algumas partes do atual estado de Santa Catarina. Tudo isso vem a se concretizar em 1801, com o Tratado de Badajós; mas os tratados não significaram o fim dos conflitos.
Porém, economicamente, desde por volta de 1703, quando a Intendência das Minas foi criada e a mineração começou a tomar força, o sul passou a ter uma integração pela pecuária, sustentando a mineração em Minas Gerais.
Por ter passado um tempo amplo como colônia espanhola, sustentando missões jesuíticas, por ter recebido diversas etnias, é óbvio que a cultura sulista possui uma imensa diferença da cultura do restante do país. Mas esses mesmos sulistas mais conectados à cultura espanhola, se procuram algum embasamento ou estudam a situação, deveriam enxergar que um dos grandes problemas da independência das colônias espanholas, como já frisava Simón Bolívar, com o Congresso do Panamá, antes mesmo da ocorrência, são as divisões, que tornaram os Estados fracos e vulneráveis. Ao incentivar os separatismos, os sulistas estão indo contra suas raízes. Lembre-se também de que uma das razões de o Brasil ter uma certa voz internacional e liderar movimentos do "Terceiro Mundo" (Perdão, odeio esse termo) é a sua dimensão territorial.
O Brasil é um país repleto de culturas diferentes, já houve movimentos de cunho separatista na Bahia, em Pernambuco, Maranhã, Pará, São Paulo, mas todos foram deixados para trás e isso manteve a esperança de surgir um espírito nacional que vá além de copas do mundo de futebol.
Estive duas vezes em Santa Catarina e posso dizer por experiência própria o quão certos estão os catarinenses de se orgulharem de seu estado, tão certos quanto eu estou de me orgulhar por esse estado fazer pate de meu país, assim como me orgulho da Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará e São Paulo.
Se hoje visto a camiseta de ajuda à Santa Catarina, é por ver que o Brasil ainda é um país, ainda há caminhões que partem do Acre para Santa Catarina buscando amenizar a situação, é com dúvidas por pensar em com que ajuda Santa Catarina estaria contribuindo caso a tragédia fosse no Acre, mas é com certeza por saber que a grande e esmagadora maioria, se não totalidade, dos brasileiros que estão sofrendo com a tragédia não compõem movimentos separatistas e nem compartilham desses ideais.
Olhem para Santa Catarina, há brasileiros lá que precisam de ajuda.

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http://www.youtube.com/watch?v=LxR0wCcB5Vo

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Muros e grades

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Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia
o medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
de que morreremos cheios de uma vida tão vazia
Erguemos muros...
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Nas grandes cidades de um país tão violento
os muros e as grades nos protegem de quase tudo
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada
e nada nos protege de uma vida sem sentido
O quase tudo quase sempre é quase nada...
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Um dia super
uma noite super
uma vida superficial
entre sombras
entre as sobras
da nossa escassez
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Um dia super
uma noite super
uma vida superficial
entre cobras
entre escombros
da nossa solidez
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Nas grandes cidades de um país tão irreal
os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal
Levamos uma vida que não nos leva a nada
Levamos muito tempo pra descobrir
que não é por aí, não é por nada não
não, não pode ser, é claro que não é
será?
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Meninos de rua, delírios de ruína
Violência nua e crua, verdades clandestinas
Delírios de ruína, delitos e delícias
Violência clandestina faz seu trottoir
Em armas de brinquedo, medo de brincar
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear
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Um dia super
uma noite super
uma vida superficial
entre as cobras
entre escombros
da nossa solidez
.
Uma voz sublime
uma palavra sublime
um discurso subliminar
entre sombras
entre as cobras
da nossa escassez
.
Viver assim é um absurdo, como outro qualquer
como tentar o suicídio ou amar uma mulher
Viver assim é um absurdo, como outro qualquer
como lutar pelo poder, lutar como puder